Rio Grande do Sul

Coluna

O populismo antipopular de Melo: o prefeito que usa chapéu de palha

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"A pergunta que se impõe é esta: se é para fazer empréstimo, por que beneficiar apenas os bairros de classe média e alta, onde as pessoas não usam chapéu de palha?" - Arquivo pessoal
As periferias estão abandonadas porque a prioridade é investir nos bairros privilegiados

Após anos de paralisia das assembleias do Orçamento Participativo (OP) em Porto Alegre, desde o governo Marchezan até a pandemia da covid-19, a Prefeitura resolveu retomar a participação nas regiões do Orçamento Participativo. As assembleias em cada uma das 17 regiões que compõem a divisão territorial da cidade constituem historicamente a modalidade mais popular da participação no orçamento e na seleção das obras e projetos a serem priorizados em cada ano.

Desde a criação do OP as assembleias territoriais – e posteriormente as de caráter temático - adquiriram duas funções importantes: escolha dos setores prioritários de políticas e das obras que devem receber os recursos em cada região e no conjunto da cidade (p. ex: saneamento, habitação, saúde...), e a eleição dos representantes para compor as instâncias permanentes de funcionamento do OP, na cidade e em cada região, respectivamente os conselheiros municipais e os delegados regionais. A escolha de prioridades orçamentárias e a seleção dos representantes populares ao Conselho do OP e aos Fóruns de Delegados Regionais e Temáticos, originadas nas Assembleias de base, mediante eleições diretas, demonstram a relevância desses momentos na arquitetura da participação construída pelo OP em Porto Alegre, desde 1989.

O OP de Porto Alegre cresceu e se consolidou nos anos 1990, a ponto de se tornar uma referência nacional e internacional no campo das inovações democráticas e dos modelos de boa governança. Foi reconhecido como a inovação que mais viajou no mundo, estando presente hoje em todos os continentes e em países muito díspares em termos políticos e econômicos. Todavia, sofreu um primeiro abalo na última gestão administrada pelo PT (2001-2004), quando uma crise financeira dificultou a execução das demandas populares até então efetivada. Com a alternância do poder político, em 2005, ocorrida com a promessa de manutenção do OP, por Fogaça (MDB), o programa ingressou numa nova fase, não sendo mais considerado central na gestão. À sua falta de resolutividade agregou-se a criação de outro projeto paralelo a ele mediante parcerias com setores privados. Além de ilusórias, as parcerias da “Governança Solidária Local” falharam redondamente.

O atendimento de demandas básicas por bem-estar urbano continuou subvalorizado no período seguinte, concorrendo também, nos anos 2010, com a priorização dos recursos para grandes obras no contexto dos megaeventos esportivos do qual o Brasil foi anfitrião. Mais de 2.350 demandas aprovadas pelas comunidades das periferias no OP acumularam-se sem execução pelo governo municipal, agora não mais na situação de precariedade fiscal da Prefeitura, que recuperou a capacidade de ação orçamentária e de novos investimentos com recursos próprios e externos.

O enorme passivo de demandas populares – expressando a condição ainda existente de precariedade em infraestrutura e serviços públicos dos territórios das periferias – continuou se ampliando nos governos abertamente neoliberais de Marchezan (PSDB) e de Melo (MDB), a partir de 2017. Nessa nova fase, o governo Marchezan não escondeu suas preferências pela gestão privatista do New Public Management e pela implementação do modelo de desenvolvimento urbano vinculado às ideias neoliberais do empreendedorismo urbano e da “cidade-mercadoria”. Sem poder extinguir a tradição participativa da cidade, Marchezan adotou o confronto com as instâncias de participação, como a tentativa de retirar o papel de controle social dos Conselhos Municipais, por meio de projeto de lei que previa esta mudança da Lei Orgânica Municipal.

A sua aversão à participação ficou celebremente conhecida pela confissão pública que fez ao empresariado do setor comercial, algo que entrará na história do pensamento elitista de Porto Alegre (Nelson Marchezan Jr., prefeito de Porto Alegre, 30/11/2017, entrega do 34º Troféu Carrinho Agas). De forma clara, tratava-se de paralisar o OP, objetivo que foi viabilizado em 2017 com a ajuda de conselheiros capturados pelos partidos tradicionais na Câmara de Vereadores e no Executivo. Isso foi possível porque o OP já estava descaracterizado, quando a fraca representação popular abriu espaço para lideranças comunitárias pouco independentes e combativas.

Foi neste contexto político que Melo assumiu a Prefeitura, em 2021, quando a pandemia da covid-19 o ajudou na suspensão das assembleias do OP até 2022. Diferentemente do estilo tecnocrático de seu antecessor, entretanto, Melo percebeu que a melhor estratégia não era a do confronto com o OP. Por um lado, a sua longa carreira política local – em geral não identificada com os setores mais conservadores da direita - foi suficiente para mostrar que a história do OP ainda é bem guardada na memória social das periferias, as quais ganharam um status político inédito na disputa do conflito distributivo dos recursos.

Melo é sabedor do quanto esta memória tem potencial de ativação política na cidade. Por outro lado, como político competente, sabe que a simples extinção do OP teria um alto custo a pagar, tanto local como nacional e até internacionalmente, já que o OP de Porto Alegre é saudado e recomendado inclusive por instituições de financiamento, como o Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Melo certamente não quer entrar para a história como o prefeito que acabou com o OP mais conhecido do Brasil e do mundo. Diante desse custo político, a melhor estratégia é manter o OP, mas em banho maria, sem poder real de influência nas prioridades orçamentárias, sem transparência, sem controle social, sem critérios redistributivos para as regiões mais carentes de infraestrutura e serviços. Enfim, um simulacro de OP.

Mantendo o OP assim é possível implementar o projeto de cidade orientado pelo neoliberalismo sem sofrer grandes contestações dos setores populares. A Prefeitura argumenta que não há recursos. Mas os dados mostram uma recuperação. Além disso, se esconde o principal, que é como os recursos são utilizados hoje, quais são as prioridades escolhidas longe das decisões do OP. Conforme mostrou o Observatório do Orçamento Participativo (ObservaOP) a situação da Prefeitura melhorou.

Em 2021 o superávit foi de quase R$ 800 milhões e em 2022 foi de R$ 516 milhões. Mas é nos novos investimentos que ficam claras as prioridades do governo. Em 2022 a Prefeitura investiu R$ 460 milhões, equivalente a cerca de 5% das despesas. As projeções para 2023 são em torno de R$ 800 milhões, representando cerca de 8% das despesas. Entretanto, desse total para investir em 2023, mais da metade serão empréstimos para executar grandes obras na Área Central, Orla do Guaíba e no 4º Distrito. Enquanto isto são destinadas migalhas para o OP, equivalentes aos míseros 2,1% e 1,8% dos investimentos nesses anos (R$ 10 milhões em 2022 e R$ 15 milhões em 2023), e isto para repartir entre as 17 Regiões e as 06 Temáticas.  Além desses parcos recursos, foram executados apenas 20% do previsto em 2022.

Nas assembleias desse ano ao exibir em tela grande os R$ 20 milhões que serão destinados ao OP em 2024, em nenhum momento se diz que isto representa apenas pouco mais de 1% do total do total previsto para os investimentos neste ano. As periferias estão abandonadas porque a prioridade da Prefeitura é investir nos bairros privilegiados, ou então em regiões em que se pretende expandir o mercado imobiliário. A Prefeitura está fazendo empréstimos para grandes projetos, como os R$ 60 milhões para pavimentação das ruas que já contam com infraestrutura. E R$ 548 milhões do Banco Mundial para grandes obras na área central e no 4º Distrito.

A pergunta que se impõe é esta: se é para fazer empréstimo, por que beneficiar apenas os bairros de classe média e alta, onde as pessoas não usam chapéu de palha? Por que não um plano acordado com as comunidades das periferias para recuperar as mais de 2.350 obras não executadas do OP, que afetam dezenas de milhares de pessoas que moram em área precárias da cidade?

* Luciano Fedozzi, Professor de Sociologia da Ufrgs, Coordenador do Observatório do Orçamento Participativo (ObservaOP), pesquisador do Observatório das Metrópoles.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko