Rio Grande do Sul

Coluna

Da Espanha ao STF: as moradias sob ameaça dos bancos

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"Se o Estado, em seus diferentes poderes, não resguardar travas institucionais que protejam o direito à moradia da população, a tendência será inevitavelmente a insegurança habitacional das famílias e a ampliação das desigualdades sociais" - Foto: Gibran Mendes
Nossas moradias e nossas cidades precisam ser defendidas do interesse dos abutres do mercado

O que a decisão do STF que permite que bancos e instituições financeiras tomem imóveis financiados inadimplentes aponta na perspectiva do direito à moradia?

No último dia 26 de outubro, o Supremo Tribunal Federal autorizou bancos e instituições financeiras a tomar imóveis financiados em inadimplência, sem a mediação de processo judicial, ainda que se trate de único imóvel de moradia. Agora, basta um registro cartorial para que bancos coloquem estes imóveis, via de regra, à leilão.

A decisão se apoia em lei de 1997, sobre Sistema de Financiamento Imobiliário, que criou a cláusula contratual da alienação fiduciária, em que o imóvel que está sendo financiado serve como garantia. Segundo a Federação Brasileira de Bancos, este é o caso de 99% dos 7,8 milhões de contratos ativos no Brasil.

Num país em que historicamente a população trabalhadora recebe salários médios baixos, situação agravada no período pandêmico e com o advento dos empregos inseguros e precarizados, o acesso à moradia da classe trabalhadora passa por assumir financiamentos imobiliários que se estendem por praticamente toda uma vida laboral. 

Na prática, com a medida, os direitos constitucionais à moradia digna (artigo 6) e a função social da moradia e da cidade (artigos 182 e 183) - regulamentada no Estatuto das Cidades, de 2001 - e o direito a não ser privado de seus bens sem o devido processo judicial (artigo 5), são ameaçados.

No entendimento da corte, a medida não fere a Constituição, já que o cidadão endividado não fica impedido de buscar a justiça. Para além de questionar como a decisão afeta direitos fundamentais, é preciso olhar para contexto mais amplo - um processo global que a literatura chama de alinhamento ultraliberal da gestão das cidades - e os riscos que ela representa para a maior parte da população hoje e para gerações futuras.

Nesse processo ultraliberal, o solo urbano e a moradia, assim como equipamentos de saúde, educação, saneamento, transporte e outras infraestruturas que compõem a cidade tornam-se alvo de atores de mercado que, cada vez mais, têm por trás grandes fundos de investimentos.

Porto Alegre tem sido um caso exemplar deste processo como visto nos ajustes do Plano Diretor segundo interesse do mercado imobiliário, licenças extraordinárias para construção de prédios completamente fora dos padrões idílicos nas áreas próximas a orla, privatizações ou concessões da prestação de serviços essenciais como saúde, transporte e saneamento até parque e áreas de grande valor por seus atributos naturais.

Nessa esteira de canalização dos recursos fundamentais à manutenção da vida para o mercado, à medida que facilita o despejo de famílias e o leilão de suas moradias financiadas são um prato cheio para os investidores interessados em acumular imóveis para especulação. E os fundos de investimentos, proprietários de grande número de moradias, passam a ter o poder e controle do mercado de moradia, especialmente nos valores dos aluguéis.

O caso espanhol - conhecido como crise hipotecária - é ilustrativo de uma despossessão massiva de moradias via despejos promovidos por bancos credores, com três momentos bastante definidos, decorridos em menos de duas décadas.

O primeiro momento foi marcado por um amplo processo de promoção imobiliária, com a concessão de crédito hipotecário facilitados às famílias das camadas populares, tendo o imóvel como garantia.

No segundo momento, a partir da crise financeira global de 2007 - que justamente teve o crédito imobiliário no epicentro – e o aumento do desemprego, as famílias espanholas viram-se no dilema entre comer, garantir as contas de água e luz ou pagar a hipoteca. Três meses de atraso eram suficientes para o processo de despejo e leilão dos imóveis para quitar a dívida bancária. Os imóveis eram leiloados por 60 ou 50% do valor que haviam sido contratados.

Com isso, famílias que haviam pagado por 10 anos ou mais, ainda permaneciam endividadas com os bancos, porque o valor do imóvel leiloado não cobria o capital financiado e mais os juros contratados para 30 anos ou mais. Ou seja, além de perder a única moradia, ficavam com uma vida falida por dívidas. Para se ter uma dimensão da amplitude do problema social gerado, para cada mil lares, uma média de 8,96 sofreram despejos no território da Catalunha, uma das regiões mais afetadas.

Os fundos de investimentos não compraram apenas imóveis, mas também as carteiras de créditos a receber. Por isso, são conhecidos em toda a Europa como fundos abutres, uma vez que se beneficiaram da desgraça de milhares de famílias. O mais famoso destes é o fundo de investimentos norte-americano Blackstone, conhecido como “a maior imobiliária do mundo”.

Graças a esse processo de concentração de imóveis nas mãos de poucos grandes proprietários coorporativos, foi se configurando um terceiro momento, os ajustes dos preços de aluguéis. Entre os anos de 2015 e 2018, os valores na Espanha tiveram incrementos na ordem de 52%, chegando a aumentos mais elevados em algumas regiões, como é o caso da Catalunha e Valência, na ordem 60% e 68%, respectivamente.

Do caso espanhol é importante entender que, de parte do sistema financeiro, não há escrúpulos em primar pelo interesse econômico que beneficia uma parcela ínfima dos grandes investidores que compõem o 1% da fatia mais rica do mundo. Se o Estado, em seus diferentes poderes, não resguardar travas institucionais que protejam o direito à moradia da população, a tendência será inevitavelmente a insegurança habitacional das famílias e a ampliação das desigualdades sociais. Nossas moradias e nossas cidades precisam ser defendidas do interesse dos abutres do mercado.  

* Marcia Falcão, Doutora em Geografia pela Ufrgs e pesquisadora do Observatório de Metrópoles

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko