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"No rock de Roger Waters persiste algo que nos renova e convoca a existir, e a resistir" - Foto: Leonardo Melgarejo
Um show convocatório, político, coerente com a fonte de onde veio aquele que é o verdadeiro rock

Nesta quarta-feira fui ao show do Roger Waters.

Minha primeira ida ao estádio do Grêmio, desde que o Paulo Odone encaminhou aquela negociata que nos tirou do Olímpico, da Azenha, e do coração dos gaúchos de Porto Alegre.

Fui. Empurrado pelo fato de ter conhecido o Pink Floyd através de um disco com uma vaca leiteira na capa, misturado entre os discos gauchescos da casa Moogem, no Alegrete dos anos 70. Fui no show do Beira Rio em 2018, fui no Olímpico em 2002, e me obriguei a ir, agora, na Arena.  

Foi um choque, naquela época do primeiro contato, encontrar aquele som, naquela caixa de discos gaudérios. Algo assemelhado a entrar naquele estádio, depois de passar pelo caminho que nos leva até lá. Arena é tão linda como falsa, e isso dói. E penso que por ser linda, mas ordinária, não agrade a boa parte dos gremistas. Perdemos, com o Olímpico, nossas bases e nossa fonte. E não nos cai bem aquela arena luxuosa, encravada numa área em disputa que pode até parecer uma terra de ninguém, mas que tem donos, e eles são podres como o porco voador.


Show do Roger Waters na Arena do Grêmio em Porto Alegre / Foto: Leonardo Melgarejo

Aquele estádio não é nosso e nunca o será. Aquelas cadeiras estofadas estarão em cacos antes de passarem ao controle do Grêmio, coisa que só ocorrerá num futuro distante e após aquele bairro ser incorporado aos serviços públicos e às condições mínimas de urbanidade que –tomara – possa ressurgir com a recuperação da democracia.  

A Arena não é nossa, não é dos gremistas. E também não é espaço amigável para os que moram no seu entorno. O filtro dos preços, a pose dos guardiões que defendem os portões e o cinturão de miséria que a cerca, afugentam qualquer adulto de suas luzes. O brilho, ali, é um atrativo tão falso quando aquele dos shoppings onde não há lugar para o povo.

Pois bem, para mim o show começou fora do estádio. Uma obra e tanto. Se estivesse em local mais adequado, ou se fosse feita de pedras capazes de resistir ao tempo e aguardar a incorporação daquela região abandonada, à vida moderna de um futuro que Porto Alegre merece, seria de enorme valia para todos desta cidade.

Porém, ali onde está simboliza apenas o desvario da especulação e da falta de escrúpulos de lideranças que deram base (e ainda alimentam) a onda fascista que vem mudando a nossa história. Por isso, mesmo antes de começar a esfarelar, a Arena mais assusta do que atrai.

Creio que isso talvez explique, em parte, os vazios e a escassa energia da plateia, naquele show monumental. Ao menos para mim, MONUMENTAL. E ainda assim, com menos de 50% dos espaços ocupados por um grupo que misturava velhos e jovens, via de regra com os braços abaixados ou segurando copos de cerveja... nem de maconha senti cheiro, ali onde estive sentado. 


Como explicar os espaços vazios e a escassa energia da plateia, naquele show monumental? / Foto: Leonardo Melgarejo

Talvez o medo de caminhar por aquela região abandonada pelos serviços públicos ajude a entender as ausências e a atitude dos que ali estavam. E se fosse no Olímpico, na nossa Bombonera, seria muito diferente? Com toda a certeza! Até porque, o Grêmio seria outro, Porto Alegre seria diferente, o público iria a pé e todos os custos seriam menores.

Ingressos a preços inalcançáveis afugentam, atuam como cerca de arame farpado em campo de guerra. Só isso já esclarece a respeito da quase ausência de jovens, assim como a dificuldade de autodefesa e o medo de ter que explicar um baseado no bolso, explicariam a ausência de muitos dos velhos que gostariam, mas não puderam, neste dia de novembro, comparecer ao que foi uma espécie de chamado da alma que bruxuleia, lutando para não apagar, dentro de todos nós.

Mas o show... Ah, este foi inesquecível.


Um show convocatório, político, coerente com a fonte de onde veio aquele que é o verdadeiro rock / Foto: Leonardo Melgarejo

Um show convocatório, político, coerente com a fonte de onde veio aquele que é o verdadeiro rock. O grito gutural que quase esquecemos existir em nós, e que se esvazia nesta onda de oportunismos empenhados em transformar tudo em mercadoria, ali estava, como os tambores da selva. Naquele rock persiste algo que nos renova e convoca a existir, e a resistir. As guerras, os mártires de todos os povos e o apelo à irmandade global que precisa deixar de agir como ovelha solitária e resistir ao capitalismo, em bandos, com luzes, força e poesia.

Ali estavam aqueles que fomos e podemos voltar a ser.

Talvez o último grande show destes tempos, e por isso, talvez a última vez em que colocarei os pés naquela Arena.

Saí de lá com vontade de chorar, de impotência, pelos dramas que se estendem do bairro onde fica aquele estádio até a Palestina, passando pelo Rio de Marielle Franco, pela Amazônia de Bruno, pelas crianças de todas as espécies, queimadas vivas em defesa do capitalismo que destrói o planeta.

Uma música? Pedro Munhoz: Somos Palestina!

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko