Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

'Os partidos estão preparados para a questão racial, mas não abrem a distribuição do poder', diz cientista político

Estudando há 30 anos a presença do negro na política, Airton Araújo vê avanços na representavidade mesmo que lentos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (1) um projeto que cria a Bancada Negra na Casa - Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Desde 2014, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) começou a registrar o quesito raça/cor dos candidatos e candidatas às eleições, aumentaram as candidaturas negras. Mas tanto o Legislativo quanto o Executivo continuam sendo de difícil acesso para a população negra.

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Nas últimas eleições, 49,49% dos candidatos ao Congresso se autodeclararam negros, segundo o TSE. Em 2018, eram 46,5%, e, em 2014, 44,24%. O crescimento tem a ver com a luta pela democratização dos espaços de governança pública, promovidos pela maior pressão dos movimentos sociais, em particular do movimento negro, por maior representação política.

Porém, ao se comparar os dados entre os eleitos, a sub-representação do grupo ainda permanece. No ano passado, dos 513 candidatos eleitos, 23,9% diziam-se pretos ou pardos. Em 2018, eram 26,1%, e em 2014, 19,9%. Muitas são as razões apontadas por historiadores e cientistas políticos para tamanha discrepância na representatividade política de negros. Para o cientista político Airton Fernandes Araújo, um dos fatores é a pouca estrutura material e a falta de apoio financeiro do partido ou da campanha.


Infográfico que demonstra a desigualdade nas últimas eleições entre deputados(as) federais brancos(as) e negros(as) do Rio Grande do Sul / Arte BdF / Maria Helena dos Santos

Em 2020, o TSE aprovou a reserva proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de propaganda na TV e no rádio para candidatos (as) negros(as). Mas a medida só começou a valer no ano passado. Na visão de Araújo, “precisamos falar de uma cota de candidatos negros dentro da lista partidária. Para além da reserva de verba, são necessárias ações afirmativas que façam lideranças negras serem consideradas pelos partidos políticos como candidaturas viáveis”.

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Tal medida, porém, já foi avaliada pelo TSE. Em resposta à consulta apresentada pela deputada Benedita da Silva e pelo instituto Educafro, a corte eleitoral respondeu negativamente a este quesito. Descartando a imposição de reserva de vagas nos partidos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres, que têm direito legal a 30%. No Brasil, o sistema de cotas afirmativas para candidatos aos postos do legislativo municipal e/ou estadual não é regulamentado em nível federal. Significa que cabe a cada estado ou município decidir se implementa ou não tal política e de que forma. 


Infográfico que demonstra a desigualdade nas últimas eleições entre deputados(as) estaduais brancos(as) e negros(as) do Rio Grande do Sul / Arte BdF / Maria Helena dos Santos

O cenário das candidaturas negras no Rio Grande do Sul não difere muito dos dados levantados em todo o território nacional. Desde 2014, dos 31 deputados federais eleitos somente nas eleições de 2022 surgiram representações negras e apenas três se elegeram. Algo que ocorreu, também, nas candidaturas à Assembleia Legislativa no mesmo ano. Dos 36 representantes do parlamento gaúcho, apenas quatro se autodeclaram negros.

Para Araújo, isso se deve a chegada à Assembleia, em 2022, da maioria da bancada negra eleita em 2020 para a Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Na ocasião, seis candidatos que se autodeclararam negros foram eleitos - Karen Santos (PSOL), Matheus Gomes (PSOL), Laura Sito (PT), Bruna Rodrigues (PCdoB), Daiana Santos (PCdoB) e Reginete Bispo (PT). Antes, apenas em 1996 Porto Alegre elegeu uma mulher negra à vereança, Teresa Franco (PTB), conhecida como “Nega Diaba”. 


Infográfico que demonstra a desigualdade nas últimas eleições entre vereadores brancos(as) e negros(as) do Rio Grande do Sul / Arte BdF / Maria Helena dos Santos

Conversamos com Araújo que, desde a década de 1990, estuda a participação dos negros na política gaúcha. Airton possui graduação em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil (2000) com mestrado (2004) e doutorado (2015) em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sua pesquisa tem como ênfase os partidos políticos, o comportamento politico, as eleições, os movimentos sociais, as elites e a burocracia na administração pública.

O ex-diretor de Formação Política da Frente Negra Gaúcha analisou o cenário das candidaturas negras nas últimas eleições, confira como foi:

Brasil de Fato RS - Comenta sobre a tua trajetória, a tua formação acadêmica. Ela parte do movimento negro e vai para a academia? Ou começa na academia e vai para o movimento?

Airton Araújo - As duas se relacionam. Costumo dizer que nós, negros, já partimos desde crianças do movimento negro. Sempre temos que nos defender. A questão do racismo, tu sofres desde pequeno, desde adolescente. Depois com o tempo, amplias a consciência com a literatura. Então, essa corrida no movimento a gente sempre tem.

No meu caso, eu me interessei mais pela questão racial quando cursei a graduação em Ciência Política em 1995, por meio do historiador Roberto Santos. Através da sua linguagem, de toda a literatura que ele me apresentou, fui me apegando mais. Também me despertou estudar os negros dentro do Partido dos Trabalhadores, principalmente as campanhas, a questão do marketing político.


"As igrejas evangélicas estão nas periferias, os negros estão nessas igrejas e também os partidos da direita", afirma o cientista político Airton Fernandes Araújo / Foto: Luis Ferreira Rocha

Foi quando conheci a Maria Conceição Lopes Fontoura. Fiz campanha com ela desde o primeiro ano em que se candidatou pelo PT em 1998. Ela disputou vários pleitos e participei de quase todos. Ali fui aprofundando meu olhar diante das correlações de força dentro do PT e a questão da negritude. Via que, dentro do próprio partido, mesmo sendo de esquerda, centro-esquerda, voltado para as bases sociais, os negros tinham dificuldades.

O partido era muito preso em relação à melhor distribuição de poder com os negros. Era o reflexo. O PT levava para dentro o racismo que tinha na sociedade. Durante o mestrado na UFRGS me debrucei ainda mais sobre essa questão. 

Seria importante termos as cotas de negros, como tem para as mulheres

BdF RS - Os partidos políticos estão preparados para trabalhar a questão racial?

Araújo - Preparados, eles estão. Mas não abrem ainda a questão da distribuição do poder, da maior diversidade e representatividade. Mas estão preparados principalmente o PT e o PDT, que tem mais tradição nessa questão racial. Desde os anos 1980, o próprio estatuto do PDT tem uma parte ali direcionada para a temática. Eles têm esse conhecimento mas, na prática, não o exercem ainda. Permanecem as mesmas hierarquias, o mesmo racismo que se vê na sociedade.

Mas tem mudado, ainda que a passos lentos. Vejo que existem grandes avanços, principalmente entre os partidos de esquerda como o PSOL e o PCdoB. A gente está vendo que o voto negro e a questão da diversidade, da representatividade do negro é importante. E a comunidade no geral, mas principalmente a comunidade negra, está percebendo isso. E os partidos também.

O PT poderia estar fazendo essa corrida muito mais rápido até pela sua trajetória, pela história dos negros dentro do partido, que sempre teve o núcleo dos negros. A secretaria dos negros do partido discutiu muito internamente essa questão mas estacionou.

Não apenas falando de dinheiro, mas que os partidos reservem cotas mínimas. Isso já foi cogitado pelo movimento negro mas o TSE barrou as cotas de participação dos negros. Seria importante termos as cotas de negros, como tem para as mulheres. Mesmo sem as cotas, as candidaturas de negros e negras vem aumentando.  

Os negros nas periferias, pensam: 'Se o Matheus e a Daiana estão lá, então eu posso'

BdF RS - Como avalias a questão da institucionalização da Bancada Negra na Câmara dos Deputados. Isto vai apontar outros candidatos negros na próxima eleição? Poderá aumentar o número de negros eleitos?

Araújo - É importante, sim e porquê? O aumento na visibilidade para a luta do movimento negro. Deu uma visibilidade enorme o fato de termos uma bancada negra em Porto Alegre. Cinco negros. Nunca tinha acontecido. Então, vários negros nas periferias, pensam: ´Se o Matheus, se a Daiana estão lá, então eu posso`. Encoraja a participarem da política.

Outro fator importante é que a bancada negra pode colocar a questão racial em pauta. Por exemplo, políticas públicas de moradia para a população negra. Algo que não se tinha antes. Tínhamos um ou outro deputado ou vereador branco, que era parceiro nessa luta e que defendia essas causas. 

A bancada negra briga não somente pelas questões raciais. Tem uma visão mais ampla das desigualdades sociais. No momento que lança políticas públicas, acabam abrangendo também a juventude branca e desfavorecida. Nas próximas eleições, possivelmente candidaturas dentro do PT terão o apoio da Laura Sito, que assumiu a presidência do partido no estado. E dentro do PCdoB terão o apoio da Daiana Santos e da Bruna Rodrigues. Então, os futuros candidatos terão mais força dentro do partido. Os partidos, as estruturas começam a ser mais maleáveis por conta dessa presença dos negros.

O Movimento Negro não tem o poder para fazer do Matheus o candidato da frente de esquerda

BdF RS - O Movimento Negro Unificado indicou o Matheus Gomes para que concorrer como candidato na majoritária da Coligação de Esquerda. Como você avalia essa indicação do MNU e que pode levar outras entidades do movimento negro gaúcho a tomarem a mesma decisão, como, por exemplo a Frente Negra Gaúcha? Como encaras essa indicação do movimento para pautar os partidos em relação às candidaturas negras?

Araújo - É louvável a postura do MNU, da Unegro, de outros movimentos em função de apoiar uma candidatura para o Executivo. Mas só o MNU, que eu saiba, tomou essa frente. Mesmo reconhecendo toda a luta e a trajetória do MNU, creio que ele não tem esse poder para fazer com que o Matheus Gomes seja o candidato de uma frente de esquerda. Por que digo isso? Porque essa indicação do Matheus, se tiver essa indicação, vai depender muito mais das relações das forças dentro do partido.

Matheus tem feito uma boa trajetória, fez um bom mandato como vereador e agora como deputado também foi bem, teve uma votação bem expressiva. Mas vai depender mesmo é das correlações de força dentro do partido que já tem outros nomes sendo discutidos, casos da Luciana Genro, da Fernanda Melchionna, do Pedro Ruas. Tem a própria Karen Santos que não foi cogitada também, mas é um nome expressivo.  

Tem outra questão: ainda está sendo discutida a PEC da Anistia que quer tirar a verba para candidaturas negras, de 50%, que é proporcional, e quer transformar em 20%. Sem dinheiro não se faz campanha. 

A campanha ´Não deixe a sua cor passar em branco` motivou os negros a votarem nos negros

BdF RS - Fala dessa questão da PEC da Anistia, como é popularmente conhecida a PEC 9/23, do deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) e outros...

Araújo - Ela não passou porque, quando chegou no Senado, os senadores resolveram trancar a pauta. Não discutiram, não foi votada, muito em função da disputa entre o presidente do Senado e o da Câmara. Por enquanto, para a eleição de 2024, segue valendo a lei anterior. 

Vejo como fundamental o fundo eleitoral para as candidaturas negras. Não tem como ter uma alta taxa de sucesso sem verba disponibilizada. A maioria dos candidatos negros é pobre com pouca ou nenhuma estrutura financeira. Ainda que candidatos negros recebessem 47% menos de verbas do que os brancos, nesses partidos em que a verba chegou, foi fundamental para elegermos vários candidatos.

Claro que tem outros fatores que colaboraram como, por exemplo, um forte apelo nas redes sociais para o voto étnico. O que me lembra dos anos 1980, quando teve a campanha ´Não deixe a sua cor passar em branco`. Isto motivou os negros a votarem nos negros. Agora, com as redes sociais amplia-se o alcance de campanhas como essa. E o fato também da comunidade negra agora já estar mais consciente da importância de votar em candidatos negros.

Sem falar do eleitorado branco mas antirracista que também está votando em candidaturas negras. Para 2024, acho que esses fatores também vão colaborar. Não sei se, em Porto Alegre, teremos cinco eleitos novamente mas temos chances de termos dois ou três mais eleitos.


BdF RS - Pensando nas eleições de 2024 em Porto Alegre, consideras que a alta burocracia partidária pode impedir candidaturas negras?

Araújo - A burocratização dentro dos partidos, principalmente da esquerda, é muito forte. Os negros ainda estão na base ainda dessa hierarquia. Então, isso pode impedir.
O que temos a favor é que, agora, temos alguns políticos com influência e poder. Votam e são deputados. Podem tentar quebrar um pouco essa correlação de forças. Há dez anos não tinha esse cenário. Mas as dificuldades existem. 

Na Frente Negra Brasileira, dos anos 1930, o fundador era ligado ao integralismo, portanto de direita

BdF RS  - Conversamos até agora sobre partidos de esquerda. E quando colocamos essa mesma situação para os partidos de direita? Vemos nomes que estão ganhando destaque na política. Por exemplo, o Partido Novo, tem uma candidata negra que, na sua campanha, utilizou o slogan ´Não sou uma capitã do mato`. Dentro dos partidos de direita também ocorre uma certa visibilidade para as candidaturas negras. Como você enxerga essas candidaturas?

Araújo - Esse fenômeno dos candidatos negros na direita não é recente. Já vem de muito tempo. Não com esse nome de direita, porque a gente não tinha essa referência. Assumimos isso durante o regime militar quando quem era a favor do regime era de direita e quem era contra o regime era de esquerda. O fenômeno dos negros se colocando numa posição a favor de estado mínimo e menos ligados à questão racial remonta de muito tempo, praticamente desde o início da história do Brasil. Se pegarmos os negros do Brasil-Colônia, os negros nos Quilombos, já existia uma disputa entre Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares.

Quando os nossos antepassados são trazidos da África vêm de vários grupos étnicos com várias divergências. Aqui não apareciam essas disputas porque aqui tinham que lutar pela sobrevivência, sair da posição de escravo. Então, lutaram contra o regime escravocrata, contra os donos de terra. Com a abolição, os negros foram jogados na mesma estrutura escravagista. Tiveram que arranjar outras maneiras de sobreviver e de tentar se colocarem naquela sociedade que continuava discriminando e marginalizando, ou seja, sendo racista. Criam os clubes sociais e aí você já vê algumas diferenças.

Na própria Frente Negra Brasileira, lá nos anos 1930, o fundador Arlindo Veiga dos Santos era ligado ao integralismo, portanto de direita, uma ligação ao nazi-fascismo.

As igrejas evangélicas estão nas periferias, os negros estão nessas igrejas e também os partidos da direita

Com a democratização e, depois, com maior acesso ao poder econômico, foram surgindo negros com essas posições ideológicas. Surgem políticos como o Sérgio Camargo (presidente da Fundação Palmares no período Bolsonaro), o (vereador) Fernando Holiday, o (deputado bolsonarista) Hélio Negão e essa moça aqui de Porto Alegre, a Sâmia Monteiro. Não é novidade.

E por que eles vão para os partidos da direita? Como eles já têm essa ideia de negação da questão racial, afirmam que isso é vitimismo, que é a mesma ideia, em outras palavras, que o Arlindo Veiga dos Santos tinha nos anos 1930.

Vão para partidos da direita que não têm em pauta a questão racial. Também a religiosidade é um fator de destaque. As igrejas evangélicas estão muito mais nas periferias e os negros estão dentro dessas igrejas, assim como os partidos da direita estão dentro dessas igrejas.

Não vejo problema nenhum nisso, porém desde que não destruam as políticas antirracistas que já foram construídas. Assim, eu não vejo problemas porque é importante termos negros nos legislativos. E como te falei, não é um fenômeno recente o fato de se ter negros conservadores, reacionários e liberais. Sempre se teve. Agora se aflorou mais em virtude de mais negros participando da política, melhores condições de escolaridade, renda e a participação dos negros nas igrejas onde a direita está presente. Cabe aos nossos deputados negros de esquerda promoverem uma melhor discussão e um acordo, algo do tipo ´Não ajudem mas também não atrapalhem`. Porque eles têm atrapalhado muito, como o próprio Sérgio Camargo. 

É um fenômeno com que a gente, infelizmente, tem que se acostumar. Há facilidade dos negros se filiarem aos partidos de direita. Nos partidos de esquerda era mais restrito. O candidato tinha que ter um bom conhecimento de política, ou da questão racial, ou tinha que ser indicado. Na direita, os partidos são mais frouxos nessas questões. São ´partidos ônibus`. Pegam tudo.

BdF RS - Uma colocação final?

Araújo - Sou otimista em relação a 2024 em função desse panorama que citei. Mas temos um longo trabalho. Aquela campanha de 2020, afirmando o quanto é importante o voto dos negros e das negras, tem que (novamente) ser bem difundida nas redes e movimentos sociais. Entra aí também a influência das entidades negras. O papel do MNU é muito mais primordial lá nas comunidades, nas bases, conscientizando, formando politicamente.

Aí sim vejo muito mais a função do MNU. Os movimentos sociais não podem ser confundidos com os partidos. Suas lideranças foram para os partidos e se fragilizaram os movimentos. Acho que o MNU, a Frente Negra Gaúcha, a Unegro, entre outras entidades, devem fortalecer, nas comunidades, questões como a formação política, a escolaridade, os cursinhos pré-vestibulares, a moradia, o saneamento básico. É mais importante do que tentar influenciar dentro do partido.


Edição: Ayrton Centeno