Rio Grande do Sul

ARTIGO

As crianças não sabem que estão morrendo

'A cada dia fico indignado e triste com a morte das crianças que vivem na Faixa de Gaza. Morrem aos milhares'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A humanidade assiste omissa e perplexa este genocídio infantil, como também ocorrem em tantos lugares, mas por outras razões" - Agência Wafa

Samuel Adler tinha 5 anos no dia 9 de novembro de 1938. Era um violonista talentoso, mesmo com tão pouca idade. Era filho único do casal Rudolf/Rachel, da burguesia secular e culta de Viena. Ele encantava a todos pelas boas performances no ambiente familiar com músicas clássicas de grandes compositores como Beethoven, Mozart, Bach, Strauss e outros tantos.

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Neste dia, ele viveu o grande trauma que o perseguiria e definiria a sua vida para sempre. Alemães e austríacos furiosos, já vivendo a plenitude do nazismo e o amor incondicional e doentio por Adolf Hitler, saíram às ruas para destruir, quebrar e incendiar propriedades e sinagogas judaicas, na histórica Kristallnacht, ou Noite dos Cristais. Era uma resposta ao assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath, em Paris, por estudante judeu da Polônia de 17 anos.

O apartamento dos Adler no centro de Viena foi invadido, revirado e destruído. A mãe e o menino Samuel conseguiram se salvar graças a um vizinho e ex-oficial austríaco, herói da Primeira Guerra. O pai, a caminho do trabalho para casa, nunca mais foi visto. Foi preso e posteriormente morto. Depois disso, Rachel foi convencida a mandar o seu menino para o exterior através do kindertransport (transporte de crianças). Ele foi para Londres e nunca mais viu a mãe. Foi criado por uma família Quaker (organização religiosa que vivia em recolhimento e pregava a prática do pacifismo, solidariedade e filantropia).

Cresceu, se tornou um grande músico da Orquestra Filarmônica de Londres e depois foi para São Francisco, na Califórnia, para trabalhar na Orquestra Filarmônica local. Silencioso, quieto, solitário, mesmo nos tempos de casado. Foi gigante na sua arte e viveu muito. Tinha 86 anos quando começou a pandemia do coronavírus, em 2020. Esta é uma das histórias/estórias de Isabel Allende no seu último livro, lançado há poucos meses, ‘O vento sabe meu nome’, mais uma obra belíssima e emocionante da escritora chilena, nascida no Peru, e desde 1987 imigrante nos Estados Unidos. ‘Sou uma eterna estrangeira’, costuma dizer.

Fecha a cortina e passamos para Gaza, atual flagelo no Oriente Médio.

Já não me importo mais com as razões históricas deste eterno confronto entre Israel e palestinos. A cada dia fico indignado e triste com a morte das crianças que vivem na Faixa de Gaza. Sem água, leite, comida, carinho, morrem aos milhares. Já passam de 7/8 mil. Suas casas estão sendo destruídas. Já sobram poucas. Os bombardeios não escolhem as suas vítimas. Pega a todos de roldão, inclusive hospitais, maternidades, creches e escolas.

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A humanidade assiste omissa e perplexa este genocídio infantil, como também ocorrem em tantos lugares, mas por outras razões. Lá, as crianças são as grandes vítimas. Não poderão sonhar, estudar, viver, viajar ou sequer ter esperança. Não poderão jogar futebol ou brincar de casinha ou de boneca. Não poderão se abraçar, rir, nem sequer terão tempo de chorar. Elas estão feridas, mortas, sem qualquer amor para acalentá-las.

Nada justifica esta crueldade. Nada justifica esta loucura. É hora de salvar as crianças da Palestina com um kindertransport, aquele mesmo que salvou o menino judeu Samuel Adler dos nazistas. As crianças judias na Segunda Guerra não sabiam que estavam sendo mortas. As crianças palestinas não sabem porque estão morrendo.

* Jornalista

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 


Edição: Katia Marko