Rio Grande do Sul

Em memória

Enrique Dussel, Presente!

Permanece vivo, assim como o sangue que pousa nas veias e coração da alteridade América Latina

Brasil de Fato | Vitória (ES) |
Fundador do conceito da Filosofia da libertação, Enrique Dussel faleceu em 4 de novembro - Foto: Foto: Antonio Nava / Secretaria de Cultura do PR

Através da militância orgânica, podemos continuar a semear, espalhar e compartilhar teorias revolucionárias, escritas que pensam um “nós” e não o “eu”, e ao pensar um “eu”, pensamos no “eu” que não existe isoladamente sem o “nós”. Por isso na Filosofia da Libertação de Enrique Dussel pude encontrar sentido na filosofia acadêmica atrelado a militância e vida que é pessoal, mas é coletiva. Pude encontrar corações que pulsam e bombeiam sangue para um continente que existe porque nossas memórias resistem.

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Ideias e pensamentos que vão sendo mantidas por gerações, alcançando espaços que até outro dia eram ocupadas apenas pelo conhecimento mediterrâneo grego, assim como ocidental, central e europeu. Não que sejamos contra o conhecer esses, mas olha a grandeza de nossa América Latina, nossa diversidade afro-ameríndia, como não ver saberes aqui?

É sobre olhar nossa ancestralidade e buscar forças para formular e evidenciar esses saberes, essas teorias do conhecimento que são vestidas de muitos sangues derramados em nossas terras sob ordens de impérios europeus. É sobre continuar escrevendo nossa história com nossas próprias mãos, pois as mãos dos exploradores já escreveram até de mais sobre nós, os outros, tudo a partir do “eu” deles.

E como escreveu lindamente nas palavras preliminares do livro “Filosofia da Libertação”, entre final dos anos 1970 e nascimento dos anos 1980, esta “é uma filosofia pós-moderna, popular, feminista, da juventude, dos oprimidos, dos condenados da terra, condenados do mundo e da história”.

Enrique Dussel escreveu para a alteridade, ou seja, para nós outros e outras, escreveu sobre uma ética da responsabilidade para conosco, povo latino, para o ser com o outro. Isso não significa estar no lugar de se vitimizar na história, mas é olhar a face negada na história e dar a ela seu lugar, denunciar as formas de violência que nos cercam e matam nossos povos até os dias de hoje, não é um ponto que ficou na história da colonização, as violências continuam tentando silenciar o povo pobre, preto, periférico, jovens, sem-terra, indígenas, mulheres.

Demorei escrever desde a notícia de sua morte, em 4 de novembro, pois tive medo de me atropelar nos pensamentos. E não é porque fiquei triste, ou coisa do tipo, mas pela surpresa de saber que a morte veio mais uma vez desse modo dela de ser, surpreendentemente, surpresa. E mesmo sendo ela a única certeza que temos na vida e por mais que em algumas crenças ela não seja vista como a vemos no Brasil - como no próprio México (país que Dussel escolheu como abrigo), que tem a morte como uma passagem ritualística tão encantadora - ela ainda é a morte do seu jeito de ser e considero sempre um tanto difícil lidar com ela. Mais difícil ainda quando se trata da morte de alguém que admiramos e respeitamos.

É reconfortante saber que pessoas como você, Enrique Dussel, e outras que nem cheguei a lê-las em vida, como Ana Carolina de Jesus e Paulo Freire, podem continuar sendo conhecidas através de suas obras e escritos. É através dessas produções que suas memórias, mas em especial suas teorias escritas para a nossa gente, vocês continuam vivas e presentes entre nós. É importante que vozes que pensam nosso território, nosso povo latino-americano e nossa produção de conhecimento que é forjada na práxis, na carne, no rosto, na dor, na revolta, na teimosia e na ousadia de sermos latinos.

Comecei falando da militância orgânica, e finalizo dizendo que nessa semeadura do compromisso com nós-outros-outras, espero nas andanças e escritas da vida, mesmo que singelamente, poder compartilhar suas ideias e pensamentos, as teorias de nosso povo. Pois como bem sintetizou Dussel em suas obras: não são apenas corpos e mãos de obras, fomos exploradas mas não aniquiladas. Logo somos também: pensamentos, sonhos, resistências e esperança, somos a alteridade, somos América Latina e em nossas veias pulsam os ritmos de corações que ousam lutar.

Carta em memória do Filósofo de nossa América. Hasta la vista, Enrique Dussel!

* Filósofa, comunicadora popular, doutoranda em Filosofia na UFAL.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 


Edição: Marcelo Ferreira