Rio Grande do Sul

LUTA QUILOMBOLA

Prefeitura de Porto Alegre destrói casas de quilombo urbano em processo de regularização

Ação a mando da PGM no Quilombo da Vila Kédi, em área nobre da Capital, foi suspensa após intervenção do Incra

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |
Manhã de tensão no Quilombo Kédi mobilizou comunidade e apoiadores; suspenção da ação ocorreu após diálogo entre Incra e PGM - Foto: Alberto Terres/Mandato Reginete Bispo

O clima de tensão envolvendo o início da demolição de casas no Quilombo Vila Kédi, localizado em região nobre de Porto Alegre, na manhã desta segunda-feira (13), revela os distintos entendimentos sobre a situação da área, que está sob reivindicação de demarcação territorial quilombola no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária no Rio Grande do Sul (Incra). A ação foi autorizada pela Procuradoria-Geral do Município, mas após mobilização da comunidade e intervenção da Superintendência do Incra, foi suspensa no início da tarde.

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Moradora do quilombo, Juliana Dutra presenciou a ação e diz que a comunidade ficou muito apreensiva. “Chegaram de manhã com a máquina, muitas pessoas, e já nos ameaçando. Pessoal demolindo as casas que foram acordadas pelo dinheiro. 'Se bater de frente tem pau pra todo mundo', o cara falou... deu um bafafá”, conta. Segundo ela, a situação seguiu tensa até a chegada do advogado da associação dos moradores do Quilombo Vila Kédi e da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, Onir de Araújo, da deputada federal Reginete Bispo (PT/RS) e do superintendente do Incra Sebastião Henrique dos Santos Lima.

Duas casas chegaram a ser totalmente demolidas e outras duas parcialmente destruídas. Conforme a PGM, foram casas de quatro famílias que deixaram o local após assinarem acordo com município, Ministério Público e Defensoria Pública do Estado. Esse acordo ocorreu “no âmbito de ação ajuizada pelo MP que condenou o município a reassentar e proporcionar moradia digna a todos os moradores”, afirma em nota.

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Cada família teria recebido indenização de R$ 180 mil para a aquisição de novas moradias e estas são “as primeiras de um grupo de cerca de 80 famílias que manifestaram interesse em deixar o local”. Ainda segundo a PGM, “parte da área ocupada tem gravame de via pública, cuja execução integra conjunto de ações para melhorar a trafegabilidade na região. O traçado liga a avenida Nilo Peçanha à Frei Caneca”.

Ação sem mandado judicial

O advogado Onir de Araújo esteve no local e confirma que a ação fui “muito tensa, com ameaças inclusive, lideranças quilombolas sendo afrontadas e ameaçadas por esses supostos moradores que estariam negociando”. Para ele, o caso foi “uma tentativa de esbulho, um crime contra a comunidade Kedi implementado pela empresa Country Empreendimentos Imobiliários em conluio com a PGM (Procuradoria-Geral do Município)”.

“Um ato criminoso totalmente arbitrário, uma vez que aqui é um território quilombola que está em estudo, já está certificado pela Fundação Cultural Palmares. Entretanto, a prefeitura, sem oficial de justiça, sem uma determinação judicial, entra aqui e faz esse absurdo. Por sorte, a comunidade se mobilizou”, critica a deputada Reginete Bispo.

Onir confirma que tudo ocorreu sem ordem judicial. “Não havia nenhuma determinação legal que justificasse a ação, segundo eles a mando da PGM e a serviço da empresa”. Ele aponta ainda “a demolição chegou a afetar o encanamento da comunidade, que ficou praticamente toda a manhã sem água”, que só foi restabelecida após acordo da suspensão da ação de demolição.


Comunidade observa casa demolida / Foto: Alberto Terres/Mandato Reginete Bispo

O chefe do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas na Superintendência do Incra no RS, Sebastião Henrique dos Santos Lima, foi chamado ao local. Quando verificou a inexistência de mandato, disse que exigiu que a ação fosse suspensa. O que foi conquistado “após muita pressão”, em diálogo com o procurador do município Nelson Marisco, que também se deslocou ao quilombo.

Sebastião Henrique disse que o procurador sustentou a legalidade da ação e argumentou “que as pessoas tinham direito de vir, tinham feito um acordo para receber um valor e sair, e a prefeitura por garantia tinha derrubado as casas e cercado para que ninguém invadisse o terreno”. O superintendente rebateu afirmando que “a área está em estudo, um adiantado processo aberto no Incra de regularização de território quilombola, já com o relatório técnico sócio-histórico antropológico em conclusão, e que aquela ação de alguma forma afetaria os trabalhos”.

Futuro incerto

Conforme o superintendente, depois de muita conversa, chegou-se a um acordo de que Incra, prefeitura, Fundação Cultural Palmares e representantes da comunidade vão se reunir para discutir a questão. “Eu adiantei para ele que a posição do Incra é de concluir o relatório técnico e que a aççao da prefeitura compromete esse trabalho, por isso nós somos contrários. Ele aceitou o acordo, agora ficamos de marcar uma data para a reunião”, diz Sebastião Henrique.


Onir (esquerda), Sebastião Henrique (centro) e Reginete Bispo (direita) mobilizaram-se junto à comunidade para suspender a ação / Foto: Alberto Terres/Mandato Reginete Bispo

Segundo Onir, o acordo contempla que as casas fiquem como estão e que não haja nenhuma intervenção do município de Porto Alegre, e que as pessoas que acordaram em sair saiam. Contudo, “essas áreas vão ficar em aberto sobre zelo da comunidade quilombola, até a conclusão do relatório técnico de identificação e delimitação da área, e aí a comunidade titulada vai definir coletivamente qual vai ser o uso dessas áreas”.

Contatada na tarde desta segunda-feira pela redação do Brasil de Fato RS, a assessoria de comunicação da PGM negou a existência de acordo e disse que a ação foi suspensa “na data de hoje porque estava muito tensionada a situação”. Disse ainda que “se combinou que o que não foi demolido não será reocupado”.

Especulação imobiliária

Para a deputada Reginete Bispo, não é surpresa para quem mora em Porto Alegre “os absurdos que a prefeitura tem feito sobre os territórios quilombolas, mas também sobre as comunidades vulneráveis, entregando para a especulação imobiliária. Aqui é o Country Club, junto com a Savarauto, junto com o Zaffari”.

Ela pontua que a comunidade está unida e respeita quem quer sair. Contudo, ressalta que o território é quilombola e “não pode ser espalhado e dividido pelo poder público municipal”. A deputada cobra da prefeitura “postura e a dignidade de preservar a comunidade quilombola”.

Mais de 100 anos de história

As famílias que compõem o Quilombo da Vila Kédi ocupam o local há mais de 100 anos. O território fica ao lado do Country Club, uma região que com o tempo foi ficando cada vez mais valorizada, tornando-se uma das áreas mais nobres da capital gaúcha, e com alto custo aquisitivo.

A especulação imobiliária fez com que o território da comunidade fosse perdendo espaço, encontrando-se atualmente esmagado entre prédios comerciais e residenciais, e o Country Club. Uma única rua dá acesso ao local. A comunidade está a poucos metros de dois grandes shoppings, Iguatemi e Bourbon.


Edição: Katia Marko