Rio Grande do Sul

Coluna

Não em nosso nome 

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"Nós somos a geração que, crescida em meio ao conceito e defesa dos direitos humanos, tem sobrevivido, vocalizado e aguardado" - Imagem: Carl Court/Getty Images
Gaza poderia ser aqui, e isso não é uma metáfora

Há quatro semanas, nesta coluna, escrevemos sobre o genocídio em curso na faixa de Gaza. Constatamos que não é possível falar sobre outro tema enquanto assistimos, pela televisão e redes sociais, o holocausto promovido por um Estado fundado a partir da ideia de reparação pelo sofrimento do próprio holocausto judeu. Mas, ao contrário do que se sucedeu no continente europeu ao longo da Segunda Guerra, vivemos o paradoxo da barbárie tornada espetáculo, de um lado, e da denúncia e testemunho em ação de outro, na tentativa de sensibilizar a comunidade global sobre a anatomia das superestruturas de poder no mundo. Somos Davi contra Golias: civis contra o Estado bélico, povos tradicionais contra o capitalismo predatório, crianças contra bombas e territórios devastados. Não podemos silenciar, ainda que o horror nos emudeça. Contra as pedagogias da violência, a didática da indignação e a micropolítica dos afetos, as pedagogias da memória. 

Gaza poderia ser aqui, e isso não é uma metáfora. As discussões e análises sobre onde um moderno Estado judeu poderia ser implantado passaram, ao longo do tempo, por considerar territórios em África, Ásia e América do Sul. A decisão de ocupar o território palestino ao invés da Patagônia, realizada em uma assembléia da ONU em 1947, teve forte participação do Brasil, a ponto do embaixador Osvaldo Aranha, que nomeia a famosa avenida em Porto Alegre, também ser homenageado da mesma maneira em Tel Aviv. Mas é preciso dizer que aquela não era uma decisão propriamente diplomática, mas colonialista: Inglaterra, que se tornou um dos países mais ricos do mundo às custas de tratativas de financiamento de conflitos bélicos e invasão de territórios, negociava quais das “suas terras” iria ceder. Me pergunto se essa negociação estivesse acontecendo hoje certamente Javier Milei, o candidato da extrema direita argentina para eleições presidenciais deste ano, proporia a venda deste território ancestral como a “saída” para o pagamento da dívida externa do país vizinho. 

Uso este exemplo na tentativa de ilustrar quanto o sofrimento coletivo acumulado ao longo da história é sequestrado e usado estrategicamente como argumento para justificar o injustificável. O capitalismo patriarcal colonizatório se funde com a ideia de Estado democrático e soberano para legitimar massacres contra os povos e comunidades que, à margem e resistindo à máquina de guerra, se opõem às forças hegemônicas. Essa é a gênese do conceito de Estado moderno alicerçado sobre o conceito de propriedade, supremacia étnico-racial e desenvolvimento tecnológico. Nada novo sob o sol, senão a letalidade do arsenal bélico que precisa ser testado e desovado para seguir sustentando uma estrutura econômica baseada na exploração de recursos naturais e conflitos territoriais por consequência. Ao fim e ao cabo, o surgimento de organizações como o Hamas são uma resposta orgânica à política de confinamento e tortura em massa perpetrado pelo Estado de Israel ao longo das últimas décadas.

A crítica a este modelo de organização social - o Estado bélico, sua burocracia e espaços decisórios pautados em valores defendidos por homens, em sua maioria brancos, em sua maioria cis - é feita pelos movimentos feministas há tempos. Nós não gestamos, parimos e criamos nossos filhos, filhas e filhes para vê-los serem transformados em soldados de guerra, em máquinas de estuprar, cercear e matar com autorização de Estado algum, assim como médicos e profissionais de saúde se recusam a deixar Gaza para dar a assistência possível, sob as condições mais desfavoráveis, aos milhares de inocentes feridos pelos ataques e garantir o mínimo de direitos humanos nesse contexto, a saber: o direito ao cuidado. Milhares e milhões de pessoas, tantas delas de ascendência judaica, se levantam dentro e fora de Israel para exigir o fim da matança e a responsabilização de Benjamín Netanyahu pelo mais rápido e cruel genocídio visto até hoje. Bombardear hospitais sob o argumento de eliminar terroristas, após semanas de destruição de residências, escolas e edifícios necessários à sustentação da vida não é senão outra coisa que crime de lesa humanidade. 

Aqui é necessário fazer a distinção: não se trata de crimes de guerra - aqueles cometidos em contexto de conflitos armados, mas de eliminação sistemática e intencional de determinados grupos humanos, no caso, a população palestina. Assim como foi crime de lesa humanidade a negligência intencional do Estado brasileiro, sob o governo Bolsonaro, em relação aos povos indígenas no contexto da pandemia de covid-19. Em Abya Yala, este lindo e vasto continente que conhece, há cinco séculos, como a colonização opera, temos discutido e difundido o conceito de Estado plurinacional como a via de reconhecimento e coexistência dos povos que vivem em territórios comuns. A saída parece ser por aí, o que significa reconhecer as falhas históricas do processo de criação do Estado de Israel: não houve consulta ao povo originário daquela região que, expulso, também não pode retornar às suas casas e territórios conforme a resolução 184 da ONU, vivendo desde então no maior e mais duradouro campo de concentração a céu aberto do mundo e, agora, seu genocídio. Ainda assim, o povo palestino não deseja a expulsão de israelenses, mas o reconhecimento do seu Estado e territórios do rio ao mar, um Estado laico e pluriétnico onde convivam todas, todos e todes, o que confronta com o modelo de Estado militarizado e supremacista de seus algozes.

Nós somos a geração que, crescida em meio ao conceito e defesa dos direitos humanos, tem sobrevivido, vocalizado e aguardado, não de maneira inerte, que os organismos internacionais julguem e condenem esses dois genocidas da nossa época. Para que nunca mais se repita. E apenas a partir disso será possível pensar em políticas de reparação de maneira inédita: escutar e aprender, das crianças e jovens que sobreviveram à barbárie, que formas de organização são necessárias para que outros mundos, diferentes desse, sejam possíveis. 

* Benke Yelene é ativista por direitos humanos.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.   

Edição: Marcelo Ferreira