Rio Grande do Sul

Mudar é preciso

A 'República' foi pensada para quem?

Partilha deste legado com a população que integra a 'pátria amada' não ocorre para todos, todas e todes

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |
Cenário de desigualdade permanece 134 anos depois
Cenário de desigualdade permanece 134 anos depois - Óleo sobre tela de Benedito Calixto / Reprodução

Mês de novembro é um mês que tem muitas datas importantes, feriados e tudo o mais. Cabe a nós lembrarmos de uma entre tantas datas comemorativas na História do Brasil e do significado político por detrás de cada uma delas. Gostaria, nesse sentido, de enfatizar uma específica que suscita debates e questões multifacetadas: dia 15 de novembro, a Proclamação da República.

:: "Não há democracia plena com desigualdade", afirma historiadora Luciana Brito ::

Essa data é considerada um dia importante e é comemorada com festividades cívicas e oficiais. No entanto, apesar de toda a “festa” e importância conferida à data, a partilha deste legado com a população que integra a “pátria amada” não ocorre para todos, todas e todes. Basta lembrar, revirando os arquivos e registros históricos, a maneira aristocrática pela qual ocorreu a troca de regime, uma vez que tenha sido protagonizada por “alguns oficiais” em 1889 de alta patente, com zero participação popular, que por sinal nem cidadãos, e até nem gente, eram considerados da nova “pátria brasileira”.

É importante ressaltar aonde esteve a população negra, ameríndia e mestiça, a classe trabalhadora e periférica, as pessoas LGBT, as mulheres, os deficientes entre outras grupos e minorias excluídas da “nação” em formação e do quanto os legados de luta e reivindicação foram se modificando, ainda que certamente haja muito a ser feito. A totalidade dos segmentos sociais mencionados ocupavam um lugar a partir de um condicionamento muito amplo que teve o “paradigma da inferioridade” como cerne do que estruturou e moldou essas dinâmicas. Exclusão, falta de reconhecimento, destituição, subalternização, submissão, violências de diferentes tipos, tratamento desigual nos setores da vida pública e privada/doméstica, cada qual com especificidades que na sua definição como “diferentes”, permaneceram a margem como “Outro”, “fora da lei”, desumanizados e em muitos casos “demonizados”.

Pensando mais um pouquinho nas pontes deste passado com o presente, a situação da população negra e mestiça recém havia se alterado com a abolição da escravatura em 1888, mas de qualquer maneira, não aconteceram mudanças que os tirariam da condição de miséria e destrato e tampouco o racismo afrouxou suas garras genocidas. Não obstante, a população indígena não esteve incluída ou respeitada em sua integridade, tendo em vista as ações de tutela e destituição de terras e práticas ancestrais, além do genocídio propriamente dito, de dezenas de etnias. Com toda a certeza, houve progressos muito estimados, fruto de batalhas e disputas para população negra, ameríndia e mestiça nas áreas da política, como as ações afirmativas, estatutos da igualdade racial e indígena, entre outras melhorias que proporcionaram uma saída da subalternidade e desumanização como condição absoluta, ainda que haja muito a alterar-se da própria cultura de “inferiorização” como condicionamento de que está posto.

A população LGBT, por outro lado, geralmente ficava às sombras dos “bons costumes” patriarcais, pairando sobre as mentalidades de demonização, devassidão e patologização, de como que eram categorizados como “loucos” e “anormais”, segundo os parâmetros científicos e eugênicos em vigor na época. Os resultados das mobilizações políticas trouxeram resultados, à medida que em 1973 a homossexualidade deixou de ser considerada uma doença, além dos avanços de proteção jurídica e descriminalização da união homoafetiva.

As mulheres, de forma assombrosa, foram paulatinamente conquistando seus direitos e deixando a condição de “propriedade” de seus maridos. O reconhecimento como iguais somente deu-se na constituição de 1988. Além da lei contra o feminicídio e outras garantias de acesso melhoradas e expandidas.

Quanto às questões relacionadas à pobreza, seguiu-se e segue-se de muitas greves, lutas por direitos trabalhistas e melhora na possibilidade de mobilidade social. Como os movimentos do início do século XX que proporcionaram hoje se falar em “salário mínimo”, entre outras garantias atuais.

A despatologização dos PCDs segue-se ainda hoje, tendo em vista os progressos nas políticas de acessibilidade, direitos e proteção, o que demandará muito para que essa realidade seja melhorada de fato.

De todo modo, há muito a percorrer e reformular no âmago do legado colonial, racista, patriarcal, LGBTfóbico, classista, capacitista, entre tantos outros fatores de exclusão, criminalização e genocídio da política, da cultura, da educação, da saúde e outras áreas nos rumos subsequentes e tecidos pela história brasileira. Certamente, já contamos com um legado fortalecido e regado a muitas dores e tortuosos caminhos que se abriram à muito custo, sangue e disputas vencidas com superação, amor, alegria e alívio por cada conquista gerada.

Que seja cada vez mais de empoderamento pela identidade, pela cultura e pela política. Refazendo e reescrevendo as linhas e espirais do por vir histórico de um país que se sabe o quanto as mudanças são mais que urgentes para a manutenção da vida dos excluídos de outrora e do presente.

* Doutoranda em História pela PUCRS

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira