Rio Grande do Sul

Coluna

O risco de uma cidade ser sacrificada pelo seu plano diretor

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Tudo leva a crer que a próxima eleição para o CMDUA, como já se antecipa pelo edital de convocação respectivo, siga na mesma trilha de manipulação e desrespeito ao princípio democrático da nossa Constituição Federal" - Foto: Vanessa Marx
Não se pode descartar a hipótese do Judiciário ter de intervir para assegurar a defesa da cidade

O modelo de cidade como o prometido pelo senhor Claudio Teitelbaum, presidente do Sinduscon e “porta voz do Movimento Porto Alegre+”, resumido no que ele publicou na ZH de 14 deste novembro, sob o título de “Avança, Porto Alegre”, indicando o plano diretor da cidade como uma das “ferramentas impulsionadoras para esta conquista”, já pode ser considerado o oposto do direito à cidade e às garantias devidas aos direitos sociais e ambientais do povo que aí vive.

Do alto do poder que “46 entidades representativas do comércio e varejo, indústria, serviços, turismo, urbanismo, empreendedorismo e inovação, o modelo de cidadã lá descrito, merece mais atenção pelo que omite do que pelo que louva, especialmente sobre o atual processo de elaboração do Plano Diretor da cidade.

Não diz uma palavra sobre uma decisão judicial que considerou nulas todas as deliberações do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), da juíza Andreia Terre do Amaral, da 3ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, datada de 20 de outubro passado, em uma ação popular (processo 5205519-19.2023.8.21.0001/RS), justamente pelo provado desrespeito que a sua direção, a cargo do atual secretário municipal Germano Bremm, da Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre, prorrogou arbitrariamente os mandatos de composição daquele Conselho, sem possibilitar nova eleição do mesmo há mais de dois anos.

Não há como dissimular o fato de essa flagrante e danosa violação da democracia, pela qual a nossa Constituição Federal vige e o Estado de Direito é o maior responsável, não tenha sido proposital, já que a representação empresarial em conluio visível com o Poder Público do Município, na pessoa do referido secretário, aprovou o que quis durante esse período vago de eleições para “justificar” exigências suas à disciplina do solo urbano.

Conservar essa cômoda maioria no CMDUA, portanto, constituía e constitui prioridade para impor um modelo de cidade “sustentável” segundo sua própria concepção, como o senhor Teitelbaum afirma ser de “sucessos ao redor do mundo”. Tão insustentável que, por responsabilidade empresarial e do Poder público nesse mesmo mundo, já recebeu de José Lutzenberger, o mais conhecido defensor do meio ambiente brasileiro, a seguinte e macabra descrição dos seus maus efeitos:

“Já não é necessário ser naturalista para ver que nossas cidades são monstruosas. Todos começamos a sentir que o que chamamos ‘progresso’ é, na verdade, uma corrida grotesca que nos torna cada dia mais neuróticos e desequilibrados.” (“Manual de Ecologia. Do jardim ao poder”. Porto Alegre: LPM, 2002, p. 17). Também não é preciso ser especialista em ecologia e urbanismo constatar que essa monstruosidade, essa neurose e desequilíbrio, foram construídas e reproduzidas por planos diretores fiéis “a “empresas consolidadas” como as que o artigo elogia e aos “bons servidores” que a elas prestam os seus serviços, como acontece com o atual secretário Germano Bremm.

Em sentido bem diferente a tais poderes econômico-políticos, portanto, é ainda nos fundamentos da decisão judicial supra lembrada que se podem acrescentar outras razões ao que ela condena como violação da democracia, no caso, em meio urbano. É coisa típica do saber autovalorizado como exclusivamente técnico desprezar opiniões alheias à sua como inferiores e inadequadas, simulando uma democracia de respeito às demais previamente vetada pelo conhecido “discurso competente.”

Esse vício aparece claramente no texto do senhor Teitelbaum quando acusa de “vanguarda do atraso” que emperra “o desenvolvimento” tudo quanto diverge do modelo de cidade por ele defendido. Certamente por isso, ele “esqueceu” a decisão judicial supra lembrada, para não enquadrá-la também no que considera “atraso”. Que o chamado livre mercado não é dado a exame de consciência sobre seus abusos e irresponsabilidades, arrogância e prepotência, isso dispensa prova, pois é fato notório, mas no caso do plano diretor de Porto Alegre, o presidente do Sinduscon exagerou.

O Estatuto da Cidade, por exemplo, em obediência a Constituição Federal, determinou em seu primeiro artigo que essa lei “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.”

Esse interesse social, essa propriedade em prol do bem coletivo e esse bem-estar dos cidadãos, se é que preocupa o presidente do Movimento Porto Alegre+, não aparece na sua publicação como pressuposto, como condição prévia de todo o avanço que ele promete ser garantido pelo plano diretor. “Empresas consolidadas”, como ele enfatiza, lidam preferencialmente com outros objetivos, mercadorias que garantam lucro, e é isso que transparece constituir-se no “sujeito oculto” do seu artigo, bem diferente, então, do que o Estatuto da Cidade prevê.

Rualdo Menegat, Professor Associado do Instituto de Geociências da Ufrgs, geólogo, Mestre em Geociências (Ufrgs), Doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem (Ufrgs), Doutor Honoris Causa (UAB, Peru), em linha nitidamente harmônica com o Estatuto da Cidade, não hesita em chamar de democracia cínica, aquela que, no âmbito das cidades, transfere para o Estado-nação e à só possibilidade de se eleger governantes a solução das crises urbanas, um fato que, por sua gravidade, não mereceu igualmente qualquer lembrança na opinião do presidente do Sinduscon, talvez até por considerá-lo irrelevante:

“A maioria das grandes cidades do mundo se constituem como mosaicos urbanos-socio-ambientais segregados. Quer dizer, na cidade, embora todos tenham o mesmo direito de votar nos governantes, nem todos têm o mesmo direito de habitar um local saudável. Todo o território urbano, em qualquer lugar do mundo, se estrutura em termos de lugares que são tidos como paradisíacos, outros que são purgatórios e outros, ainda, que são horrendos. O problema crucial é que por mais que os habitantes dos lugares horrendos votem, eles não conseguem melhorar o local em que vivem. Por quê?” {...} “Isso ocorre porque costumamos associar a cidade em duas: uma que é a sociedade atópica que nutre a cópia cultural; outra, que é a estrutura física, as construções e edificações do aparato urbano. Na primeira, decidem-se as questões com a democracia cínica. E, na segunda? Ora, na segunda não há decisões a serem tomadas, pois elas seguem os ditames da técnica, isto é, ela é o resultado de um planejamento, de uma concepção de idade-física, como se todas as cidades devessem ser iguaizinhas.” (In “Desenvolvimento sustentável e Gestão ambiental das cidades. Estratégias a partir de Porto Alegre”, coletânea de artigos organizada por ele e Gerson Almeida, Porto Alegre: UFRGS Editora, p.295/296. Grifos do autor).

Como já se pode concluir por tudo isso, vai muito mal o processo de elaboração do plano diretor de Porto Alegre, tudo levando a crer que a próxima eleição para o CMDUA, como já se antecipa pelo edital de convocação respectivo, siga na mesma trilha de manipulação e desrespeito ao princípio democrático da nossa Constituição Federal. Não se pode descartar a hipótese de o Poder Judiciário ter de intervir novamente para assegurar a defesa da cidade e do seu povo, sobre o lugar onde vive. Não aquela do tipo apoiada pelo Ministério Público e pelo acórdão de uma Câmara do Tribunal de Justiça do Estado, no caso do esbulho oficial que foi praticado sobre o Parque Harmonia, mas sim da muito justa, constitucional e corajosa decisão liminar da juíza Andreia Terre do Amaral.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko