Paraíba

LUTA PELA TERRA

Usina Maravilha é acusada de abuso de poder e destruição de propriedade privada em processo de reintegração de posse em Caaporã-PB

Ação contra os moradores do acampamento foi ilegal e violenta, diz Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Foto: Arquivo Pessoal

Em uma reunião ocorrida na manhã desta terça-feira (19), envolvendo a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV), Ministério Público Federal (MPF), Incra, Polícia Militar da Paraíba, moradores do Acampamento Nova Esperança e a Usina Maravilha, constatou-se uma série de ilegalidades em ação realizada nessa segunda-feira (18), promovidas pela empresa. A ação foi acusada de abuso de poder e destruição de propriedade privada em processo de integração de posse do terreno em Caaporã-PB.

“Foi uma reunião importante, porque ela teve a capacidade de citar um esclarecimento de que a versão judicial que foi apresentada não era contra as famílias, portanto, não se aplicava à elas. Isso ficou registrado, inclusive, nas atas das reuniões. E foi encaminhado ao Ministério Público da Paraíba e de Pernambuco para que adotem providências, especialmente, no campo penal, pelas ilicitudes praticadas, com derrubada de casas sem que a ordem judicial determinasse isso, sem que as pessoas fossem objeto da ordem judicial, com exercício de arbitrariedade das próprias razões, entre outros”, explica José Godoy, procurador do MPF da Paraíba.


Foto: Carla Batista / Reunião no Incra

O Procurador apontou para um fato que chamou bastante atenção: a participação de policiais oficiais da Polícia Militar de Pernambuco, fora das suas funções e fora da sua área de atuação.

“Também foi determinado encaminhamento para o estado de Pernambuco, porque isto é algo que nos preocupa muito, esse tipo de atuação que se assemelha quase a uma milícia privada”, comentou ele.

Outro encaminhamento da reunião foi o acionamento da Comissão de Conflitos Fundiários do Incra para que atue no caso.

Foto: Carla Batista / Reunião no Incra

Entenda o caso 

Na  manhã dessa segunda-feira (18), famílias do acampamento Nova Esperança, em Caaporã-PB, foram surpreendidas com a Polícia Militar e seguranças privados por parte da antiga Usina Maravilha, munidos de uma integração de posse. 

O acampamento Nova Esperança conta com 133 famílias, distribuídas em 286 hectares. As famílias produzem macaxeira, inhame e batata doce, feijão, côco, mamão e banana, dando significado e vida para um espaço onde, antes, só se cultivava cana-de-açúcar.

Os moradores relataram que a polícia militar, juntamente com seguranças privados, ainda chegaram a derrubar quatro casas de alvenaria, quando foram impedidos de continuar o serviço de demolição.

Após a reunião no Incra, ocorrida na manhã desta terça-feira (19), foi comprovado que a reintegração de posse é parte de um processo de desapropriação da prefeitura para a empresa. Após o declínio da prefeitura pela posse do terreno, o patrimônio deveria voltar para a empresa. No entanto, a ordem judicial para o despejo das 133 famílias, que estão habitando a área há 10 anos, nada fala sobre essas famílias, não é um processo de reintegração de posse: é um processo de integração da Prefeitura de Caaporã com a Usina Maravilha como ré.

“Nós recebemos, com surpresa, a forma absolutamente estranha - ou à margem da lei - pela qual as famílias estavam sendo despejadas sem serem citadas, notificadas ou qualquer coisa dos autos do processo. É preciso entender que o ser humano é um sujeito de direitos, ele não é um objeto de direitos, em que decisões judiciais passam ao largo dele, que ele não toma conhecimento, que ele não tem oportunidade de se defender, não afeta as pessoas que não tiveram essa possibilidade. Então, o devido processo legal é um direito constitucional, não é à toa. É para que processos que os outros tratam e que você não é chamado não possam lhe afetar, isso é fundamental. Acho que isso foi esclarecido e providências precisam ser tomadas”, explica Godoy.

Ele também comenta sobre as possíveis milícias privadas atuando para cumprir decisão de forma ilegal. “Temos conhecimento de que policiais do estado vizinho, Pernambuco, estiveram nesta ação, onde houve destruição de patrimônio privado, exercício abstrato das próprias razões, e tudo isso precisa ser apurado pelo Ministério Público da Paraíba, tomar as providências, e é óbvio, que a Polícia Militar de Pernambuco também precisa tomar conhecimento de que membros da sua corporação estão vindo para a Paraíba praticar esse tipo de violência, isso é inadmissível”, ressalta o Procurador.

Também presente na reunião estava o Major Jonathan Gomes Fortes, responsável pelo Gerenciamento de Crises. Ele conta que a Polícia Militar da Paraíba foi acionada de forma deliberadamente manipulada pela empresa: “De fato, a Polícia Militar não foi formalizada, a questão do judiciário, para que nós déssemos o apoio como força policial no local. Então, nós ficamos sabendo apenas do ofício da Prefeitura dizendo que seria cumprida essa imissão de posse. Nós informamos à Prefeitura que nós não iríamos participar porque não fomos acionados pelo judiciário, motivo pelo qual nós não enviamos tropas para o local. Mas, como se fez presente no local um Oficial de Justiça, juntamente com a força privada do próprio exequente da ação, então foi solicitada a presença de uma guarnição, através do 190, e encaminhamos para que fosse feita uma averiguação no local. Ao verificarmos que estavam tentando executar essa imissão de posse, nós determinamos que a guarnição presente no local se retirasse imediatamente, porque temos um protocolo a seguir, que envolve as comissões de conflito agrários, que é do executivo estadual, e de soluções agrárias, que pertencem ao Tribunal de Justiça. Então, nós passamos pelo crivo dessas duas comissões antes de iniciarmos um possível planejamento de uma execução de imissão de posse”, informa o Major Fortes.

Casas derrubadas

Os moradores contaram que a polícia militar e seguranças privados chegaram a derrubar quatro casas de alvenaria quando, então, foram impedidos de continuar o serviço de demolição.

Givanildo Pereira, que mora no acampamento há quase oito anos, conta como recebeu a notícia da sua casa no chão:

“Eu não estava lá no momento, eu estava em outro roçado, aí me ligaram. Eles chegaram, aliás, ninguém viu, só escutaram o estrondo. Eles vieram com dois tratores, uma retroescavadeira e uma van cheia de seguranças. E eu cheguei lá, já tinham derrubado a minha casa, que não tinha móveis, e as duas casas próximas da minha, inclusive a do meu vizinho Tonho. Eles não falaram nada e também não ameaçaram ninguém”, conta ele.

Seu Joãozinho é outro morador que teve a sua casa destruída: “Eu sou pré-assentado no loteamento, na minha parcela; eu construí uma casa e ligaram para mim que tinham botado tudo abaixo, no chão, inclusive uma casa de madeira usada para guardar meu material. Eu não pude chegar na hora, porque eu estava no trabalho, mas quando larguei, fui lá e estava tudo no chão, tudo revirado. Eu acho que foi ilegal porque teve uma reunião com a gente e o Incra  e disse que estava tudo legalizado”.

Joãozinho conclui seu relato com palavras de luta e resistência: “Eu acho assim, que no meio do conflito, alguém tem que levar o primeiro tiro para que, mais na frente, o restante possa ter uma vitória”.

Natasha Batusich, integrante da COECV, reforça que as determinações legais existem para garantir os direitos humanos de envolvidos nas áreas de conflitos pela terra: “As ações de despejo forçado, como as que assistimos ontem, são um tema de grande preocupação, pois foi uma medida ilegal, uma vez que desrespeita a Lei Estadual 11.614, de 2019, que institui a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade - COECV, que tem a prerrogativa de mediar as situações de conflitos fundiários, assim como fere a determinação do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 828, que determina a atuação e parecer da Comissão de Soluções Fundiárias, nos casos de reintegração de posse. Essas determinações legais existem para garantir os direitos humanos de todos os envolvidos nas áreas de conflitos. Quando o despejo acontece, sem a possibilidade de mediação, através do uso da força de empresa de segurança privada, é uma grave violação de direitos, sem contar que é uma medida que contribui com a intensificação da violência no campo”, comenta ela, que é gerente Operacional de Proteção e Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano e secretária executiva da Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade. Natasha acrescenta que a COECV, a partir dos encaminhamentos da reunião ampliada, deverá produzir um relatório técnico para apurar os fatos e encaminhar aos órgãos competentes.

Direito de Resposta para a Empresa

A empresa NOVA MARAVILHAS EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIAOS exigiu Direito de Resposta ao Jornal Brasil de Fato PB, destacando a importância de que fosse veiculada na matéria original de 18/12/2023, ao que atendemos prontamente na matéria anterior, editando-a. Segue a nota na íntegra:

NOTA OFICIAL

'A NOVA MARAVILHAS EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS agradece a oportunidade de reestabelecer a verdade, o que faz nos seguintes termos:

1. A área foi objeto de desapropriação pela prefeitura de Caaporã a qual nunca pagou o valor e após vários anos de disputa judicial entrou em acordo para devolução.
2. Após o acordo foi expedido mandado de reintegração de posse em favor da Maravilhas.
3. Na área existem plantações esparsa de lavoura branca (macaxeira, mandioca) que são exploradas por 40 famílias.
4. As famílias sabem que a área seria devolvida a Maravilhas, tanto que marcaram reunião na última sexta feira com a prefeitura do município de Caaporã na tentativa de disponibilizar outras áreas públicas.
5. A Maravilhas permitiu que os ocupantes promovessem a colheita das plantações a fim de evitar danos.
6. Não há moradia na área.
7. O mandado não foi integralmente cumprido, pois um dos oficiais de justiça sentiu-se mal durante a operação em razão do calor.

A Maravilhas se reunirá na próxima sexta com os ocupantes para fazer a transição da posse da forma mais pacífica possível.'

Notas sobre a nota

Segundo apuramos com os diversos agentes de justiça e de direitos humanos que citamos nesta matéria, os itens elencados na Nota Oficial da Empresa padecem de veracidade e coerência jurídica. Veja alguns contrapontos apresentados pelas nossas fontes:

1- Correto;
2-  Imissão de Posse não é reintegração;
3-  Lá existem 133 famílias que cultivam lavoura branca e de raiz;
4 - No processo, só se devolve a propriedade da área a usina, mas a posse não, pois as famílias não são parte no processo, não sendo afetadas por ele;
5-  Não podem fazer isso. Não estão autorizados legalmente para despejar as famílias. Não existe reintegração de posse;
6-  Evidentemente que existe moradia na área, contabilizando 133 famílias;
7- Não há mandato contra as famílias. Só contra a prefeitura que não tem a posse da área. Esse mandato só pode ser cumprido contra as partes do processo, neste caso o município é a usina;

Dívidas trabalhistas

Em uma análise rápida do processo, verificamos que o juiz mandou bloquear os valores da empresa, que devem ser pagos por dívidas trabalhistas em Goiana-PE. Portanto, o dinheiro que está sendo devolvido para a propriedade, para a Usina Maravilha, deverá ser usado para pagar os direitos trabalhistas e tributários que a empresa deve. Sendo assim, o dinheiro volta para o patrimônio da empresa para saldar as suas dívidas.

Negociação da área para Assentamento

Na reunião, também foi apresentado o interesse das famílias pelo assentamento definitivo na área, que possui um total de 450 hectares.  

“Nós, Incra e MPF, entregamos à usina a proposta e procuramos saber se a empresa não teria interesse de iniciar negociação de uma área desse tamanho, e que parece adequada para o assentamento definitivo das famílias, sem que elas fiquem nessa situação de insegurança jurídica. A empresa disse que, neste momento, não está interessada, mas que seguirá nas tratativas buscando negociar da melhor forma possível”, explicou José Godoy.

Segundo ele, será aberto um processo normal de Reforma Agrária, proposta pela Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade ao Incra e aos representantes da Usina Maravilha.

Marcos Faro, da Divisão de Desenvolvimento e Consolidação do Incra, destaca a importância da mediação através dos poderes: “À comissão, é preciso registrar todas as situações de conflito que teve no estado, porque isso também ajuda do ponto de vista do Judiciário a estar atento a essas situações, e coibir os processos violentos aqui no estado. E a gente vai avançar para tentar criar acordos e ampliar para que a gente pacifique a área”.

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Edição: Cida Alves