O final de cada ano é um momento de confraternização, do reforço dos laços afetivos, da solidariedade e do espírito comunitário, passado um ano marcado por muitas situações difíceis. Nas áreas de ocupação urbanas e no interior dos movimentos sociais, esse sentimento fica ainda mais forte e presente.
E essa sensação certamente se intensifica porque, se o final de ano exige um balanço de todos os desafios enfrentados, por outro lado também carrega incertezas sobre o novo (velho) futuro que se apresenta na virada de cada ano.
No imaginário popular, das entidades de defesa dos direitos humanos e dos movimentos populares, as áreas de ocupação costumam vivenciar o assédio das forças policiais, pressão jurídica e situações de despejo muitas vezes justamente nessa época do ano.
Trata-se de uma mera coincidência? Os vários episódios autorizam a pensar que não. No período quando o Judiciário está de recesso, intervenções políticas aproveitam a situação e a desmobilização social própria desse período? Trata-se de um cálculo político de governos e municípios para ter o mínimo desgaste possível?
Em Curitiba, no período de grave crise social da pandemia, alguns fatos não abandonam a memória popular, como aconteceu durante o despejo de 311 famílias da ocupação Guaporé, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), no dia 17 de dezembro de 2020, o que marcou fortemente a opinião pública, que foi crítica ao prefeito Rafael Greca (PSD).
Também no final do fatídico ano de 2020, no dia 7 de dezembro, outra situação de despejo abusou de uso de armas não letais, no bairro Caiuá, quando cerca de 300 famílias foram comunicadas de que teriam 30 minutos para deixar o terreno, pertencente à prefeitura. A notificação apenas verbal foi feita por um grande efetivo aglomerado da Guarda Municipal, que não apresentou decisão judicial ou documentação.
Os moradores preferiram deixar o terreno e esperar em frente à calçada a chegada de advogado com orientações. Porém, sem permitir que voltassem para recolher seus pertences, e usando balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray pimenta, a guarda disparou contra manifestantes. Alguns tiveram que ser hospitalizados, com ferimentos nas mãos, ombros e cabeça.
Se, por um lado, aparentemente não há estudos específicos sobre a relação de execução dos pedidos de reintegração de posse e o período do ano, no entanto há vários fatos e episódios que reforçam a preocupação. Num resgate da História no plano nacional, é sempre recordado o despejo da ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), em 22 de janeiro de 2012. As imagens à época rodaram o mundo devido à organização de autodefesa dos moradores e, sobretudo, da violência do aparato estatal contra uma ocupação estimada entre 6 a 9 mil moradores.
Já em 2023, o dia 10 de janeiro ficou tristemente marcado por despejo dos moradores da ocupação Povo Sem Medo, no bairro Campo de Santana, em terreno reivindicado pela construtora Piemonte. Com isso, gera-se um contexto de receio, um patamar negativo, reforçado pela situação de pressão vivida pelas comunidades em conflito fundiário.
Doze meses depois, em dezembro de 2023, a campanha Despejo Zero acompanhou a situação de retirada forçada de comunidades caiçaras em Paranaguá. Bem como houve o despejo de cerca de 80 famílias instaladas na ocupação Prainha (PR), em Pontal do Paraná. Embora a resolução 510 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomende a necessidade de plano de realocação para as famílias atingidas, os casos acima mencionados tiveram a madrugada com pessoas dormindo nas ruas, na casa de parentes ou em instalações precárias oferecidas pelo poder público. A simbologia do Natal se reforça pelo lado negativo. O despejo ocorre, com isso, sem dúvida no período mais doloroso do ano.
“A época de festas de fim de ano é explorada por governos para aplicar medidas danosas à população. Aprovação de determinadas leis, repasses de recursos públicos para projetos questionáveis, pacotes de bondades para autoridades, além da realização de despejos, são realizados com mais frequência entre novembro e janeiro. A Procuradora do Tribunal de Contas do Paraná, Valéria Borba, já defendeu que houvesse regras constitucionais que proibissem a aprovação de certas medidas nessa época, ressaltando que a aprovação da lei que autorizou a venda da Copel, por exemplo, foi realizada em 24 de novembro de 2022”, afirma Bruno Meirinho, advogado ligado à defesa de causas populares.
Conflitos permanentes
Em Curitiba, neste momento, a campanha Despejo Zero tem acompanhado a situação de mais de 10 ocupações, em Curitiba e região, organizadas durante o período de pandemia da covid-19. Dentre essas comunidades, pelo menos quatro delas apresentam situação mais arriscada de execução da reintegração de posse, já exigida pelo Judiciário. São elas: Tiradentes II, Vila Domitila, Graciosa (Pinhais) e Britanite. Esta última, no entanto, ainda conta com etapas de mediação junto à comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). Domitila e Graciosa tem experimentado a situação incerta do despejo individual, muitas vezes casa por casa. No Paraná, a Defensoria Pública do Estado identificou 367 casos de conflitos fundiários com risco de despejo, no campo e na cidade.
São áreas que, ao longo de 2023, conviveram com o risco e se mobilizaram para evitá-lo.
Neste momento, o caso mais grave talvez seja o da ocupação Tiradentes II, que envolve 64 famílias, em área na Cidade Industrial de Curitiba ao lado do aterro do grupo transnacional Essencis/Solví. Somente no mês de dezembro, o corpo jurídico da empresa já elaborou três petições solicitando à 17ª Vara Cível de Curitiba remoção urgente das famílias da ocupação, bem como do acampamento de vigília diante dos portões do grupo, que movimenta a principal quantia de lixo hospitalar e industrial da cidade.
Na peça jurídica mais recente, datada de hoje (27 de dezembro), a empresa chega a sugerir que os ocupantes podem ser responsáveis por incêndio ocorrido na madrugada na mesma semana no interior do lixão. Ou, no mínimo, poderiam ocasionar acidentes. A partir do episódio do foco de incêndio, chega a pedir retirada das famílias. “Claramente, a situação das partes tratadas nesta demanda está muito perigosa devido às atitudes dos invasores, que podem ocasionar uma tragédia”, afirma a Essencis em petição. No curto espaço da semana do Natal, há divulgação por parte do movimento popular de tiros na região, intimidação e rondas policiais na madrugada.
“As razões para aproveitar essa época do ano para medidas assim é que existem menos instâncias judiciais disponíveis, em razão dos recessos que obrigam os interessados a buscar juízes de plantão, que precisam ser convencidos da situação excepcional da questão, bem como menos atividade em geral na sociedade, exausta das atividades do ano e focada no período de descanso”, aponta Meirinho.
Madianita Nunes da Silva, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR, integrante do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles, aponta que, embora no temário de estudo do grupo não tenha se identificado possíveis relações entre a intensificação dos despejos e o período do ano, a pesquisadora reconhece essa possibilidade conjuntural, no contexto de um problema estrutural na cidade que é a ausência de políticas públicas de moradia.
“É possível afirmar que os despejos, materializados pela prática de remoção desses espaços de moradia popular, marcam a atuação estatal ao longo da trajetória de execução das políticas urbana e habitacional em Curitiba. Esta prática teve início com as políticas de erradicação e desfavelamento em 1964, a partir da instituição do Banco Nacional de Habitação (BNH), em nível federal, e da Cohab, em nível municipal, e tem se mantido de modo predominante desde então, apoiada em discursos e justificativas que foram sendo renovados ao longo do tempo, segundo a conveniência política e os diferentes contextos sociais e históricos”, pondera.
Na ótica da pesquisadora, a ausência de políticas públicas, do que chama de urbanização "integrada e integral", torna a execução do despejo uma medida de certa forma conivente para o Estado.
“O despejo, justificado por meio desse conjunto de regras e princípios, é instrumental, eximindo o Estado da sua obrigação de enfrentar as causas do problema da habitação no país: a impossibilidade de acesso à terra urbanizada e bem localizada e à habitação adequada pela população empobrecida. Tal omissão produz mais marginalização e a intensificação das injustiças sócio espaciais a que os grupos sociais mais empobrecidos estão historicamente sujeitos no Brasil”, aponta.
Edição: Lucas Botelho