Paraná

REPORTAGEM ESPECIAL

Despejos costumam ocorrer no início e no final de cada ano?

Em peça jurídica recente, a empresa chega a sugerir que os ocupantes podem ser responsáveis por situações como incêndios

Curitiba (PR) |
Também no final do fatídico ano de 2020, em dezembro, ocorreu outra situação que abusou de uso de armas não-letais, no bairro Caiuá - Giorgia Prates

O final de cada ano é um momento de confraternização, do reforço dos laços afetivos, da solidariedade e do espírito comunitário, passado um ano marcado por muitas situações difíceis. Nas áreas de ocupação urbanas e no interior dos movimentos sociais, esse sentimento fica ainda mais forte e presente.

E essa sensação certamente se intensifica porque, se o final de ano exige um balanço de todos os desafios enfrentados, por outro lado também carrega incertezas sobre o novo (velho) futuro que se apresenta na virada de cada ano.

No imaginário popular, das entidades de defesa dos direitos humanos e dos movimentos populares, as áreas de ocupação costumam vivenciar o assédio das forças policiais, pressão jurídica e situações de despejo muitas vezes justamente nessa época do ano.

Trata-se de uma mera coincidência? Os vários episódios autorizam a pensar que não. No período quando o Judiciário está de recesso, intervenções políticas aproveitam a situação e a desmobilização social própria desse período? Trata-se de um cálculo político de governos e municípios para ter o mínimo desgaste possível?

Em Curitiba, no período de grave crise social da pandemia, alguns fatos não abandonam a memória popular, como aconteceu durante o despejo de 311 famílias da ocupação Guaporé, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), no dia 17 de dezembro de 2020, o que marcou fortemente a opinião pública, que foi crítica ao prefeito Rafael Greca (PSD).

Também no final do fatídico ano de 2020, no dia 7 de dezembro, outra situação de despejo abusou de uso de armas não letais, no bairro Caiuá, quando cerca de 300 famílias foram comunicadas de que teriam 30 minutos para deixar o terreno, pertencente à prefeitura. A notificação apenas verbal foi feita por um grande efetivo aglomerado da Guarda Municipal, que não apresentou decisão judicial ou documentação.

Os moradores preferiram deixar o terreno e esperar em frente à calçada a chegada de advogado com orientações. Porém, sem permitir que voltassem para recolher seus pertences, e usando balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray pimenta, a guarda disparou contra manifestantes. Alguns tiveram que ser hospitalizados, com ferimentos nas mãos, ombros e cabeça.

Se, por um lado, aparentemente não há estudos específicos sobre a relação de execução dos pedidos de reintegração de posse e o período do ano, no entanto há vários fatos e episódios que reforçam a preocupação. Num resgate da História no plano nacional, é sempre recordado o despejo da ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), em 22 de janeiro de 2012. As imagens à época rodaram o mundo devido à organização de autodefesa dos moradores e, sobretudo, da violência do aparato estatal contra uma ocupação estimada entre 6 a 9 mil moradores.


Reforço policial e uso do espaço da empresa de água (Sanepar) foram táticas para retirar as 311 famílias da Guaporé / Pedro Carrano

Já em 2023, o dia 10 de janeiro ficou tristemente marcado por despejo dos moradores da ocupação Povo Sem Medo, no bairro Campo de Santana, em terreno reivindicado pela construtora Piemonte. Com isso, gera-se um contexto de receio, um patamar negativo, reforçado pela situação de pressão vivida pelas comunidades em conflito fundiário.


Em comum, famílias ficam na madrugada sem terem para onde ir após ações de despejos / Giorgia Prates

Doze meses depois, em dezembro de 2023, a campanha Despejo Zero acompanhou a situação de retirada forçada de comunidades caiçaras em Paranaguá. Bem como houve o despejo de cerca de 80 famílias instaladas na ocupação Prainha (PR), em Pontal do Paraná. Embora a resolução 510 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomende a necessidade de plano de realocação para as famílias atingidas, os casos acima mencionados tiveram a madrugada com pessoas dormindo nas ruas, na casa de parentes ou em instalações precárias oferecidas pelo poder público. A simbologia do Natal se reforça pelo lado negativo. O despejo ocorre, com isso, sem dúvida no período mais doloroso do ano.

“A época de festas de fim de ano é explorada por governos para aplicar medidas danosas à população. Aprovação de determinadas leis, repasses de recursos públicos para projetos questionáveis, pacotes de bondades para autoridades, além da realização de despejos, são realizados com mais frequência entre novembro e janeiro. A Procuradora do Tribunal de Contas do Paraná, Valéria Borba, já defendeu que houvesse regras constitucionais que proibissem a aprovação de certas medidas nessa época, ressaltando que a aprovação da lei que autorizou a venda da Copel, por exemplo, foi realizada em 24 de novembro de 2022”, afirma Bruno Meirinho, advogado ligado à defesa de causas populares.

Conflitos permanentes

Em Curitiba, neste momento, a campanha Despejo Zero tem acompanhado a situação de mais de 10 ocupações, em Curitiba e região, organizadas durante o período de pandemia da covid-19. Dentre essas comunidades, pelo menos quatro delas apresentam situação mais arriscada de execução da reintegração de posse, já exigida pelo Judiciário. São elas: Tiradentes II, Vila Domitila, Graciosa (Pinhais) e Britanite. Esta última, no entanto, ainda conta com etapas de mediação junto à comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). Domitila e Graciosa tem experimentado a situação incerta do despejo individual, muitas vezes casa por casa. No Paraná, a Defensoria Pública do Estado identificou 367 casos de conflitos fundiários com risco de despejo, no campo e na cidade.

São áreas que, ao longo de 2023, conviveram com o risco e se mobilizaram para evitá-lo.

Neste momento, o caso mais grave talvez seja o da ocupação Tiradentes II, que envolve 64 famílias, em área na Cidade Industrial de Curitiba ao lado do aterro do grupo transnacional Essencis/Solví. Somente no mês de dezembro, o corpo jurídico da empresa já elaborou três petições solicitando à 17ª Vara Cível de Curitiba remoção urgente das famílias da ocupação, bem como do acampamento de vigília diante dos portões do grupo, que movimenta a principal quantia de lixo hospitalar e industrial da cidade.

Na peça jurídica mais recente, datada de hoje (27 de dezembro), a empresa chega a sugerir que os ocupantes podem ser responsáveis por incêndio ocorrido na madrugada na mesma semana no interior do lixão. Ou, no mínimo, poderiam ocasionar acidentes. A partir do episódio do foco de incêndio, chega a pedir retirada das famílias. “Claramente, a situação das partes tratadas nesta demanda está muito perigosa devido às atitudes dos invasores, que podem ocasionar uma tragédia”, afirma a Essencis em petição. No curto espaço da semana do Natal, há divulgação por parte do movimento popular de tiros na região, intimidação e rondas policiais na madrugada.

“As razões para aproveitar essa época do ano para medidas assim é que existem menos instâncias judiciais disponíveis, em razão dos recessos que obrigam os interessados a buscar juízes de plantão, que precisam ser convencidos da situação excepcional da questão, bem como menos atividade em geral na sociedade, exausta das atividades do ano e focada no período de descanso”, aponta Meirinho.

Madianita Nunes da Silva, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR, integrante do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles, aponta que, embora no temário de estudo do grupo não tenha se identificado possíveis relações entre a intensificação dos despejos e o período do ano, a pesquisadora reconhece essa possibilidade conjuntural, no contexto de um problema estrutural na cidade que é a ausência de políticas públicas de moradia.

“É possível afirmar que os despejos, materializados pela prática de remoção desses espaços de moradia popular, marcam a atuação estatal ao longo da trajetória de execução das políticas urbana e habitacional em Curitiba. Esta prática teve início com as políticas de erradicação e desfavelamento em 1964, a partir da instituição do Banco Nacional de Habitação (BNH), em nível federal, e da Cohab, em nível municipal, e tem se mantido de modo predominante desde então, apoiada em discursos e justificativas que foram sendo renovados ao longo do tempo, segundo a conveniência política e os diferentes contextos sociais e históricos”, pondera.

Na ótica da pesquisadora, a ausência de políticas públicas, do que chama de urbanização "integrada e integral", torna a execução do despejo uma medida de certa forma conivente para o Estado.

“O despejo, justificado por meio desse conjunto de regras e princípios, é instrumental, eximindo o Estado da sua obrigação de enfrentar as causas do problema da habitação no país: a impossibilidade de acesso à terra urbanizada e bem localizada e à habitação adequada pela população empobrecida. Tal omissão produz mais marginalização e a intensificação das injustiças sócio espaciais a que os grupos sociais mais empobrecidos estão historicamente sujeitos no Brasil”, aponta.


Despejo violento ocorrido no final de 2020 / Giorgia Prates

Edição: Lucas Botelho