Rio Grande do Sul

Coluna

Ninguém nos apaga

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Chuy e Carol seguirão vivas e flamejantes, porque como diz a camiseta de Chuy Solo “la desobediencia nos hará libres” - Foto: mariam pessah
Sempre haverá uma voz, um punho, muita raiva que vai vir tirar a palavra do opressor

Nesses dias li que foi preso o homem suspeito de ter assassinado a Carol.

A primeira emoção que me surgiu foi em forma de pergunta, terei que ficar feliz? Não. Feliz é muito, contente também. Não consigo deixar de pensar que depois de Carol já houve outros lesbocídios e, o fato de terem encontrado o possível assassino, não significa que a violência contra nós, tenha chegado ao seu fim.

Vocês lembrarão que ela foi brutalmente assassinada pelo fato de ser lésbica e, provavelmente, lésbica masculina, o que gera mais fúria ainda nos patriarcas. As lésbicas “femininas”, quer dizer, as mulheres cujas corpas não falam tão alto sobre a sua existência lésbica, são menos violentadas.

A sociedade lesbofóbica se indigna não só com a rebeldia à norma, mas também com o fato da gente sair gritando numa linguagem corporal que não quer ser parte do instituído. Muitas de nós fugimos do hetero-patriarcado. Lembremos que ser parte de uma sexualidade dissidente não é ideologia, por isso eu utilizo muitas vezes o termo lesbianismo feminista, para marcar essa diferença e politizar nossas existências rebeldes.

Nós não saímos de uma costela de Adão, mas eles, os Adões, vêm do nosso útero. Frase lida em alguma manifestação feminiSta.

Escrevo feminiSta, com um S bem grande e visível, para ninguém se enganar e confundir com feminina.

Dias atrás faleceu no México Chuy Tinoco. Uma grande ativista lésbica feminiSta da corrente do FeminiSmo Autônomo, da qual fiz parte até 2012 quando me afastei do ativismo. Embora o ativismo nunca tenha se afastado de mim.

Conheci a Chuy há 20 anos, no México. Ela era indígena, gorda, rebelde e, sobretudo, muito irreverente e a gente dava muitas gargalhadas.

Dias atrás foi o seu velório. Imagino que a família sanguínea tenha decidido fazê-lo dentro da Catedral de Águas Calientes, cidade onde ela viveu seus últimos anos junto a Ivonne, sua companheira. Imaginar a Chuy dentro do caixão, dentro da igreja é algo muito difícil. Contudo, em um vídeo que várias amigas e companheiras postaram e repostaram, quando o Padre termina seu discurso, Ivonne pega o microfone e com a voz tremendo (de raiva e indignação?), complementa a fala: Chuy não só era filha, tia, tivô, ela também era esposa e por sobre todas as coisas era uma lesbiana de raíz diz ela aumentando o tom de voz.

Nesse momento começa toda uma movimentação. As bandeiras que, até então, estavam semiescondidas, e as pessoas muito bem-comportadas, pegam os símbolos de luta que tanto caracterizaram a vida da nossa companheira e as estendem em cima do féretro (porque com certeza os conserva-dores não devem ter deixado cometer tamanha indecência). Foi emocionante ver o caixão sendo vestido com as cores do arco-íris, com o violeta segurando o labrys (maior símbolo lésbico feminiSta), acomodando-se na casa de deus. As pessoas aplaudiam e se escutavam gritos de apoio às palavras de Ivonne.

Até esse momento eu me perguntava por que aí? Então eu vi o sorriso áspero de Chuy como se fosse um raio X, escapando do caixão. Uma alegria de seguir em luta que veio a incomodar até depois de morta. Por isso aí, porque as corpas falam sua língua não verbal. Agora sim podia entender por que Chuy estava dentro da igreja.

Esse ato de rebelião, que veio fazer jus com a vida e o pensamento de nossa amiga, me lembrou as palavras da Annie Ernaux, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, “... nesse primeiro livro, publicado em 1974, sem que eu tivesse consciência disso na época, estava definindo o espaço tanto social quanto feminista. Vingar minha raça e vingar meu sexo se tornariam a mesma coisa dali em diante”.

Quando eu vi a Chuy nesse espaço tão branco, tão pulcro, um próprio centro de opressão que, obviamente, nada tinha a ver com o que ela tinha sido em vida, me despertou várias raivas. Também todas nossas conversas sobre família sanguínea. Na época líamos e comentávamos e amávamos muito a Margarita Pisano, grande referência do feminismo autônomo e grande rebelde, ao ponto de esse ter sido o nome do seu grupo Las rebeldes del afuera. Aqui deveria de dizer que ela era chilena, ou de toda Abya Yala? Nossas ideologias não têm fronteiras. Não somos deus/as, mas estamos em todas partes.

Eu me pergunto, quantas formas tem o hetero-patriarcado de nos matar e, até, tentar nos apagar depois de mortas. Em um comentário nas redes sociais, Ivonne fala da força que sentiu depois do que aconteceu. Ela disse que se encheu de energia e voltou a correr sangue pelas suas veias. Defender a sua amada de quem nos quer apagar, esconder, anular, era um ato urgente. Não somos só teoria ou notícias nos jornais. Somos feitas de muita carne, ossos, sorrisos e desobediência ao sistema que tenta nos eliminar uma e outra vez.

Venho aqui lembrar que sempre haverá uma voz, um punho, muita raiva que vai vir tirar a palavra do representante da opressão e gritará Chuy es torta, Carol é sapatão e elas seguirão vivas e flamejantes, porque como diz a camiseta de Chuy Solo “la desobediencia nos hará libres”.

* mariam pessah : ARTivista feminiSta, escritora e poeta, autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.  Atualmente também tem uma coluna Conversa invers(A) no Youtube.

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.   

Edição: Katia Marko