Rio Grande do Sul

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Romaria da terra de 2024. A fé que inspira e empodera a política

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Romaria da Terra renova as lutas pela terra e pela partilha do alimento, em defesa da natureza e por uma sociedade livre de opressão - Foto: Leandro Molina
A fé religiosa que se expressa nas romarias, não só reza e canta, sempre toma posição

Todos os anos, na terça-feira de Carnaval, enquanto essa festa reúne multidões cantando e dançando, com muita animação e alegria, a Romaria da Terra também reúne uma grande porção do povo, sob outra inspiração motivadora de encontro, particularmente religiosa e gaúcha.

É que foi no dia 7 de fevereiro de 1756, uma terça-feira de Carnaval, que o índio Sepé Tiaraju insurgiu-se contra o tratado de Madri, assinado em janeiro de 1750, entre duas potências colonizadoras daquele tempo, Portugal e Espanha, cujos efeitos Sepé e o seu povo queriam impedir, já que o mesmo previa a invasão de suas terras, então compondo grande parte do território gaúcho, Argentina, Uruguai e Paraguai. Um todo maior no que passou à história como missões guaraníticas cristãs, já que foram missionários jesuítas que se ocuparam da evangelização do povo indígena em todo esse território.  

Sepé e seus combatentes foram mortos junto ao Arroio Caiboaté, onde é hoje, o município de São Gabriel. Em número muito menor e com armas muito inferiores, foram assassinados, além deste herói, mais de mil e quinhentos dos seus comandados. Na romaria da terra de 2.022, Frei Sergio Görgen mostrou o tamanho do massacre e o significado do que a ganância imperialista, seja política ou econômica, é capaz de destruir.

No site do MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores) ainda aparece o que frei Sergio escreveu sobre Sepé Tiaraju: “Ele se transformou na condensação histórica da luta, dos sonhos, dos feitos, do projeto, do heroísmo de um povo. É um mito fundador e transforma-se num símbolo. É o símbolo maior de um projeto de civilização que foi brutalmente interrompido, mas que continua vivo como sonho coletivo de uma sociedade de irmãos e de iguais. {...} Assassinava-se ali um projeto de civilização. {...} Um projeto cheio de contradições, próprias do tempo, mas pleno de afirmações, conquistas e valores, impróprios para aquele tempo. Basta dizer que ali, entre os sete povos missioneiros, não havia escravos, sina triste que grassava em quase todas as partes do mundo onde chegava a dita civilização cristã europeia.”

É para não deixar morrer esse projeto, entre outras razões, que as romarias da terra, a deste ano já é quadragésima sexta, visam lembrar esse massacre, organizadas por pastorais sociais, buscando denunciar o modo pelo qual a perversa injustiça daquela época continua provocando os seus maus efeitos sobre gente pobre ainda hoje. Alguns exemplos dessa barbárie conseguem chegar à vista, embora se tente camuflá-los como “convenientes” e “favoráveis ao progresso do país.”

Com o mesmo ímpeto de Portugal e Espanha contrário ao povo indígena da época de Sepé, o Congresso Nacional acaba de impor mais uma das leis inconstitucionais com que costuma premiar a sua maior bancada, a ruralista, promulgando uma lei (14.701, de 20 de outubro do ano passado) que, a pretexto de o regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, só reconhece como terra indígena aquela que estivesse efetivamente ocupada por esses povos, em 1988, um “marco temporal” que leva em conta o ano em que a nossa Constituição foi promulgada.

Sob o lema de “invasão zero”, é da mesma bancada a organização de um movimento contrário à campanha popular “despejo zero”, que o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu como política e juridicamente válida, durante a pandemia de covid. Do esbulho invasor que anima mineradoras, madeireiras e outros grupos econômicos sobre terras indígenas e quilombolas, desmata, polui e envenena a terra, sonega tributos, tem meios “legais” para impedir a efetivação da reforma agrária e a punição da grilagem, o tratamento do Congresso Nacional é bem outro. Sob o poder político e econômico responsável por esses males, capaz de dominar a maior parte da mídia, toda essa imoralidade e ilegalidade fica escondida atrás do escândalo (?) que ele denuncia, alardeia e paga aos veículos de comunicação, assim que um grupo de sem teto ou de sem terra ocupa um latifúndio que não cumpre sua função social.

A fé religiosa que se expressa nas romarias, não só reza e canta. Sempre toma posição e denuncia esse estado de coisas de um modo que, por todo o seu significado de radical enfrentamento das injustiças sociais de hoje, retoma o legado do índio Sepé Tiaraju. É certo que, para elas, Marx não repetiria, hoje, o seu famoso dito de que “a religião é o ópio do povo.” Não dá mais para acusar-se de ópio uma fé que mobiliza tão grande parte dos movimentos populares em defesa dos direitos humanos fundamentais do povo pobre, como o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) em defesa do povo indígena, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e do MST, em defesa de sem terras e da reforma agrária, as CEBS (Comunidades Eclesiais de Base) no que empoderam a organização, a formação e a conscientização de grande parte das/os quilombolas e das/os catadoras/es de material. Nem dá para se lembrar de tudo o quanto as organizações populares de defesa dos direitos humanos, e as comissões de justiça e paz da CNBB e de algumas dioceses acrescentam poder de eficaz defesa desses direitos.

Talvez por tudo isso, a Romaria da Terra de 2024, a ser realizada em Ipê, capital nacional da Agroecologia, escolheu como lema – note-se o paradoxo de inspiração da fé que sempre aparenta não passar de sonho ou ilusão – “Escutar a mãe terra e com Maria cuidar da vida”. Invoca essa Mulher frágil, pobre, uma sem teto histórica, que só conseguiu parir seu filho Jesus sob as precaríssimas condições que o nascimento desta criança recorda a cada natal, para compará-la com outra mãe, a terra, com os cuidados que uma e outra merecem. Onde uma consideração desse tipo pode valer? – Bem perto de nós!

Num ano em que o Rio grande do Sul inteiro sofreu tanto de graves perturbações climáticas, muitas senão todas provocadas por poderosos grupos econômicos que depredam e envenenam a terra, o que parece não passar de um sonho vão contra isso reflete duas afirmações do Papa Francisco, na encíclica Laudato si, suficientes para se formar juízo crítico fundamentado, a respeito (segmento 139). A primeira, sobre o preciso diagnóstico dos problemas que o planeta e a humanidade enfrentam hoje, e a segunda, sobre o prognóstico do que pode e deve ser feito para buscar solução eficaz dos mesmos:

“Quando falamos de “meio ambiente” fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isso nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós, como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As razões pelas quais um lugar se contamina exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza.”

A fé que inspira a política da Romaria da Terra de 2024 aposta nisso, e assim como caminha em oração, louvor e gratidão a Deus, organiza sua aliança com os movimentos populares que defendem a mãe terra e sua gente para seguir lutando contra os inimigos de uma e outra.  

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko