Rio Grande do Sul

ARTIGO

Governo Leite e o golpe fatal no municipalismo gaúcho: o caso Corsan/Aegea

'Isso custará caro aos prefeitos que não prestaram a devida atenção a esse assunto, pois os gestores serão responsáveis'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A transferência da Companhia foi efetivada em 7 de julho de 2023 e agora a Aegea opera nos municípios gaúchos - Foto: Luiz Carlos Machado

É amplamente conhecido, e foi amplamente celebrado pelo mercado, que em 20 de dezembro de 2022 ocorreu o leilão da Companhia Rio-grandense de Saneamento. Em um processo marcado por muitas questões e observações, inclusive por parte dos técnicos do TCE-RS, apenas um lance foi necessário para encerrar o pregão: o Consórcio Aegea, que já tinha ligação com a Corsan, adquiriu a empresa, extremamente lucrativa e com contratos em 307 municípios gaúchos, por R$ 4,151 bilhões. Isso representou um ágio de apenas 1,15%, considerando uma avaliação já questionável que estipulou o valor mínimo de lance para a Companhia em R$ 4,100 bilhões.

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Não pretendo reabrir aqui o debate sobre a privatização, ou se o modelo adotado era ou não o melhor caminho para a universalização: a transferência da Companhia foi efetivada em 7 de julho de 2023 e agora a Aegea opera nos municípios gaúchos. No entanto, abordarei os desdobramentos dessa privatização com uma perspectiva municipalista e destacarei, à luz da legislação, a grande fraude imposta aos prefeitos municipais.

A partir de uma interpretação preliminar da Lei n° 14.026/2020, o Novo Marco Regulatório do Saneamento, torna-se evidente que o escopo da Lei - ou a razão para sua aprovação e implementação - é vedar a celebração de Contratos de Programa para os serviços de saneamento no país. Com que propósito? Fomentar a concorrência e atrair investimentos para a universalização do saneamento. Foi com essa premissa que Eduardo Leite desconsiderou uma promessa de campanha e leiloou a Corsan, diante de uma população gaúcha nada perplexa e totalmente complacente.

É práxis em negócios como o da Aegea com o governo do estado que a compradora assuma direitos e obrigações. É uma transição simples de titularidade, se simplificarmos: de um lado, entra o dinheiro nos cofres do vendedor (Estado), do outro, ocorre a transferência imediata de ativos, passivos e de todas as obrigações assumidas até então. E é nesse ponto que se inicia a maior e mais coordenada fraude já perpetrada pelo estado do Rio Grande do Sul aos municípios do Sistema Corsan.

Contratos foram objetos da negociação

Como mencionei anteriormente, os contratos de programa da Corsan com os municípios também foram objetos da negociação. No entanto, ao aprofundarmos nossa análise à luz do Marco Regulatório, a própria Lei que rege esses contratos proíbe explicitamente os Contratos de Programa. A razão pela qual esses contratos permanecem válidos, mesmo após a promulgação da Lei n° 14.026, é o princípio do ato jurídico perfeito: um ato jurídico perfeito é aquele que já foi concluído de acordo com a lei vigente na época em que ocorreu, satisfazendo todos os requisitos formais para produzir plenamente seus efeitos, tornando-se completo ou perfeito.

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A lei posterior não pode retroagir para tornar imperfeito um ato anterior. Até aqui tudo claro: os contratos regulares vigentes permanecem válidos e devem vigorar, conforme estabelecido no Art. 10, §3° do Novo Marco, "até o advento do seu termo contratual". É evidente, sem margem para interpretação em contrário, que os Contratos de Programa - um modelo que só existe quando dois ou mais entes públicos estão envolvidos - devem permanecer vigentes de acordo com os termos e condições estabelecidos no momento de sua assinatura. A menos que alguém possa pagar por uma assessoria milionária para distorcer outro trecho da mesma lei, como explicarei a seguir.

O Art.14 do Novo Marco prevê que, em caso de alienação da empresa estatal - como foi o caso da Corsan - o Contrato de Programa pode ser convertido em Contrato de Concessão, e isso se dá apenas por questão hermenêutica. Explico: um contrato que só pode ser celebrado entre entes públicos não pode manter sua nomenclatura e disposições exclusivas após a vacância dessa condição fundamental. Portanto, o Contrato de Programa se torna um Contrato de Concessão, regido pela Lei de Concessões.

No entanto, não se deve falar em adaptação, readequação, reequilíbrio econômico-financeiro ou qualquer tipo de aditamento: o artigo 11-B, parágrafo 2, inciso III, do novo Marco, ao mencionar o reequilíbrio, restringe sua aplicação ao incluir metas apenas nos contratos "já licitados" e, portanto, proíbe aditamentos aos contratos "não-licitados". Essa interpretação é reforçada pela lógica da Lei Complementar 95/1998: os incisos estão relacionados ao comando expresso no parágrafo, que aborda "Contratos firmados por meio de procedimentos licitatórios que possuam metas diversas (...)". Ao delinear isso, o dispositivo restringe sua aplicabilidade aos contratos "já licitados" e exclui os "de programa" ("não-licitados"). Assim sendo, se é do escopo do Novo Marco Regulatório “vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos” (art. 1º), qualquer instrumento que vise dar sobrevida ao contrato de programa, qualquer instrumento que seja, é ilegal.

O que o governo do estado, a Aegea e os escritórios de assessoria contratados fizeram foi criar uma situação jurídica tão absurda que, devido à omissão do quadro regulatório geral a partir do Novo Marco, pareceu fazer sentido. No entanto, isso custará caro aos prefeitos que não prestaram a devida atenção a esse assunto, pois suas assessorias não serão responsabilizadas, mas sim os gestores.

Questões legais

Apesar da dezena de irregularidades verificadas, não estou questionando a boa-fé de nenhum prefeito que tenha sido ludibriado por essa complicação: estou discutindo questões de legalidade. E é por isso que explicarei as consequências da assinatura de aditivos contratuais com a Aegea para os prefeitos: o art. 15 da Lei de Concessões estabelece a outorga como critério de seleção em licitações para garantir a igualdade entre os concorrentes.

Devido à falta de um processo licitatório, o que por si só já configura uma ilegalidade de acordo com o art. 175 da Constituição Federal, que estipula a obrigação de licitação para a concessão de serviços públicos, e os arts. 2º, II e III, e 14 da Lei de Concessões (Lei n 8.987/1995) que reforçam essa exigência, qualquer valor recebido pelo município como outorga em decorrência da assinatura de um aditivo contratual poderá configurar um repasse financeiro irregular.

E essa situação coloca uma responsabilidade sobre o gestor público de acordo com o art. 11, V, da Lei n° 8.429/1992: "constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros".

Qual o melhor caminho? No melhor entendimento seria o de encerrar imediatamente o aditivo contratual declarando sua nulidade e buscar assessoria especializada para iniciar os procedimentos conforme preconiza a legislação pertinente. Aqui está outro conselho, desta vez para os gestores que sabiamente não aditaram os contratos com a Aegea: o mercado é vasto e está agitado com o Novo Marco: uma competição, como inicialmente proposto por Eduardo Leite, não fará mal algum.

* Consultor em Saneamento.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko