Rio Grande do Sul

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Muito mais que louças, famílias

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"Eliane Marques, neste livro, vai contar a história de Cuandu, uma mulher negra retinta nascida na fronteira" - Foto: Divulgação
Escritoras negras deixam sair os horrores trancafiados no baú das gargantas da sala da história

Terminei de ler “Louças de família”, de Eliane Marques, e não queria simplesmente ir e guardar o livro na prateleira, porque eu o terminei de ler, mas ele ainda reverbera em mim como aquela pedrinha atirada na água, produzindo círculos e mais círculos.

Como é necessário para nós, pessoas brancas, ler literatura de autoria de mulheres negras. Eu sei que já falei isso várias vezes, mas não canso. Sinto a realidade como abrindo um baú que a gente sabia que estava ali, que era grande e era pesado, mas embora visível, não se falava dele.

Até que um dia, de tanta força interna, abre-se feito um grito e nunca mais fecha, nem cala, e suas páginas iluminam o ambiente, a casa, o bairro, a cidade, o país, o continente, a Terra, o Pluriverso.

Eliane Marques, neste livro, vai contar a história de Cuandu, uma mulher negra retinta nascida na fronteira. Reconheço que pela semelhança entre a personagem e a autora, às vezes posso confundir “a cidade com o nome de ana”, com Santana do Livramento.

O que sobra de uma morte?

Travessia

“A palavra borracheira não é o feminino de borracheiro. Trata-se apenas de forma mulherista de escapar de alguma realidade impossível de ser vivida o tempo inteiro em completa sobriedade.” Tem horas que a Eliane se utiliza de termos fronteiriços e torce, e segue torcendo o sentido da língua, como ela gosta de dizer, já que borracheiras, no país vizinho, utiliza-se para designar o estado em que fica alguém que bebeu muito.

Minha ideia não é escrever uma resenha, mas falar da necessidade que temos de ler a/s outra/s história/s. A que nos foi/foram ocultada/s, embora na frente dos nossos olhos, produzindo um silêncio estonteante.

“Louças de família”, assim como a obra de Conceição Evaristo, das poetas Lilian Rocha, Ana Dos Santos, Fátima Farias e, felizmente, tantas mulheres negras escrevendo na atualidade, essa literatura toda vem romper esses silêncios.

E, agora, arrasou no Carnaval! “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, depois de ter sido encenada pela Portela, esgotou todos os exemplares à venda na Estante Virtual. Depois do desfile, as vendas aumentaram em 3.300%, segundo os números divulgados pelo site.

Tem coisas, fatos, que podem não ser ditas, mas têm outras que devem ser gritadas, para contrarrestar o apagamento.

Tem pessoas que não gostam dos modos, dos altos tons, e eu me pergunto, tem como cobrar suavidade quando elas não a receberam? Por que isso não foi, não é, cobrado dos escraviza-dores? Por que delas? Porque agora finalmente, e, felizmente, de uns anos para cá que estão sendo publicadas e lidas, estão deixando sair os horrores trancafiados no baú das gargantas da sala da história.

E por que falo especificamente nas mulheres negras? Primeiramente, porque homens negros têm mais lugar na mídia, por exemplo Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior, mas também porque não é igual ser uma mulher contando a história do que um homem, “Tia Olma queria a abolição do serviço doméstico”, “O legado dessas contas me dói feito sapato de salto fino bico apertado”.

Ao longo das 275 páginas, a narradora estabelece diálogos com a leitora. Mas a uma leitora que em nada se parece à mencionada pelo Machado de Assis no seu livro “Esaú e Jacó”. Aqui aparece dando visibilidade às mulheres e fazendo uma reparação histórica, HERStórica melhor dito. Se na longa linha de vida do patriarcado, a língua dá visibilidade a eles, aos autores, aos leitores, aos editores; aqui, Eliane Marques continuará torcendo o sentido da língua. De tanto torcê-lo será possível entortar, reendireitar a linha do presente?

“Louças de família”, de certa forma, lembra a “Vozes de retratos íntimos”, o livro de Taiasmin Ohnmacht, quem também vai escrever sobre sua família. Fico pensando em voz alta, ou por escrito, como as mulheres negras falam das suas raízes, tentando levar luz às árvores genealógicas que não aparecem/apareciam na história oficial, pois, como muitas delas o mostram, tal o caso da autora maranhense Lindenvania Martins, as meninas que eram entregues aos “descuidados” das famílias brancas nem nome têm. São chamadas de moça.

E mais, a autora vai vir mostrar como não só as pessoas brancas têm casa de família, porque esse nome sempre foi dado a casa da família branca. Durante muito tempo escritores/as brancos/as falaram de pessoas negras, nesse livro, uma mulher negra também fala dos “seus brancos”.

Essas memórias também nos pertencem.

Até quando seremos cúmplices com o aprendido e repetido na história oficial, a branca, a portuguesa, aquela que apaga os povos originários, as pessoas negras escravizadas, como se também não fossem parte da história? Só falando, lendo, escrevendo, poderemos enfrentar as realidades, sim, em plural, porque são tantas como pessoas que habitam as memórias, tantas como subjetividades e compreensões possam existir.

“Do orfanato, a jovem apenas poderia sair tendo contraído a doença do matrimônio.” Esta frase dificilmente possa ser escrita por um homem, seja qual for sua cor. Essa frase nos representa a muitas de nós, seja qual for a nossa cor. Penso em Sor Juana Inés de la Cruz, foi uma poeta que viveu no México do século XVII e optou pelo convento à doença do matrimônio e a heterossexualidade compulsória.

“Nunca o chamei de tio. Ele jogava desde frigideiras com óleo quente recém-tiradas da boca do fogão a penicos de merda na mulher e nas filhas. Foi num desses episódios que Carmenza decidiu trocar a casa do homem que se queria branco pela casa do homem que era branco mesmo sem querer.” Aqui vemos mais uma vez a necessidade de ler histórias de mulheres negras, crônicas da sua libertação.

Vou terminar aqui com um interrogante: “... meu interesse é apenas saber se os brancos daquela época continuam não sabendo que são brancos embora sempre tivessem sabido que sou negra”.

* mariam pessah : ARTivista feminiSta, escritora e poeta, autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta. Atualmente também tem uma coluna Conversa invers(A) no Youtube.

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.   

Edição: Katia Marko