Rio Grande do Sul

FÉ E AÇÃO SOCIAL

Questões emergentes no tempo em que vivemos

Frei Sérgio propõe reflexão sobre os desafios às Igrejas e aos Cristãos engajados na transformação da sociedade

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"O que virá será fruto do que fizermos coletivamente, de forma organizada, com consciência do tempo em que vivemos" - Ilustração criada com AI

“Ao por do sol, dizeis: vai fazer bom tempo, pois o céu está vermelho. E ao amanhecer: hoje vem tempestade, pois o céu está vermelho-escuro. Ora, sabeis interpretar o aspecto do tempo, mas não sabeis interpretar os sinais dos tempos.” Intrigante frase de Jesus no Evangelho de Mateus, 16, 2-3.

:: Romaria da Terra reúne mais de 4 mil pessoas em Ipê, capital nacional da agroecologia ::

1 – Crise civilizatória - Faz-se necessário um olhar atento para a profundidade e a amplitude da crise civilizatória na qual estamos inseridos, em nível mundial, mas com reflexo no quotidiano onde vivemos e atuamos. Crise ética (valores), crise ecológica (mudança climática, esgotamento rápido dos recursos naturais disponíveis, crise hídrica), crise política (sistema de representação em questionamento), crise econômica (sistema capitalista em crise estrutural), crise da hegemonia americana e ascensão da China (indicação de um sistema mundial multipolar de poder).

2 – Protagonismo feminino na sociedade - A busca de espaço, representação, protagonismo por parte das mulheres e exigência de relações de igualdade e reciprocidade em relação aos homens, cresce de modo intenso e sistemático desde os anos 60 do século 20. Traz impactos no quotidiano onde estamos e atuamos. Provoca leituras com outro olhar sobre os Evangelhos (protagonismo histórico e salvífico de Maria, papel de Marta e Madalena), sobre a história do catolicismo (por exemplo, o papel de Clara de Assis no início do Movimento Francisclariano primitivo). Traz novas agendas para a Igreja, para a sociedade e para nosso quotidiano. Passa a exigir atitudes novas, mudanças comportamentais e estruturais. 

3 – Transformações profundas no mundo do trabalho - Revolução tecnológica em andamento com as tecnologias de 4ª geração, 4.0, quarta revolução industrial, com a mecatrônica, robótica e as tecnologias de aceleração das comunicações e transmissão instantâneas de dados com a tecnologia 5G (transmissão por amplitude modulada-AM) e 6G (comunicação quântica). Trata-se de um amplo sistema de tecnologias integradas e avançadas, incluindo inteligência artificial, robótica, internet das coisas e computação em nuvem. Diminui a necessidade do trabalho humano, aumenta a necessidade de qualificação, acelera a velocidade das comunicações, estressa as relações humanas, entre outras consequências. Vai experimentar ainda novas fronteiras com o advento do “metaverso”. Cenário de ampliação da exclusão digital, do analfabetismo eletrônico e impactos ainda não dimensionados no comportamento de jovens e crianças.

4 – Aprofundamento do fosso entre ricos e pobres - O sistema capitalista em crise a nível internacional tende a explorar ainda mais os bens comuns da natureza, piorando a crise climática e ambiental, aumentando a exploração do trabalho e por consequência, concentração maior de riqueza nas mãos de poucos e empobrecimento de grandes massas. Porém, na sociedade da informação e a alta exposição dos bens de consumo, levará ao aumento da revolta, da criminalidade, do crime organizado, da insegurança, de um lado, e depressão, submissão e conformação de outro.

5 – Ascensão da China e das economias orientais - A China tem o domínio e a dianteira das novas tecnologias, um enorme mercado, reservas financeiras internacionais gigantes e, com a aliança militar com a Rússia, segunda potência militar do planeta, a nação de Confúcio começa a dar as cartas no sistema internacional de poder. Culturalmente, a China é um mistério para nós ocidentais. Pouco a pouco, a presença chinesa no Brasil se fará sentir, para o bem e para o mal.  Uma nova configuração da geopolítica internacional está em andamento redesenhando o mapa mundial do poder entre as nações. Prevê-se cenários intensos de guerras até que se consolide um mundo multipolar com nova pactuação mundial de poder.

6 – Segunda revolução sexual - Estamos em pleno andamento da segunda revolução sexual no comportamento humano, com o advento de novas formas de expressão da sexualidade (LGBTQIA+), rompendo padrões de comportamento, desafiando compreensões morais e complexificando as relações interpessoais e a compreensão de família. As Igrejas lidaram mal com a primeira revolução sexual (por excesso de moralismo e déficit de elaboração ética), nos anos 60 (que liberalizou as relações sexuais homem-mulher). E continuam lidando mal agora com a ascensão do feminismo e com os impactos da segunda revolução sexual. Moralismo exacerbou e elaboração ética profunda quase inexiste. Compreender estes fenômenos como fatos históricos, sociais e culturais parece ser um passo necessário para o agir evangelizador no quotidiano.

7 – Crise das democracias ocidentais - A ascensão de formas novas de fascismo vem no bojo de uma crise das democracias ocidentais com suas formas limitadas de participação, com o domínio do poder econômico nas escolhas dos representantes e nas escolhas das políticas econômicas, utilizando grandes meios de comunicação de massa (e agora as redes sociais) para manipular as multidões. Manipula nas eleições, mas vai gerando revoltas contínuas quando os problemas concretos da população se agravam no dia a dia. O poder econômico sequestrou o Estado contemporâneo reduzindo a governança democrática, cada vez mais, aos aspectos formais da democracia representativa, quando as exigências populares exigem cada vez mais democracia econômica e democracia participativa. Neste ambiente cresce um caldo de cultura, no seio das massas, por soluções autoritárias e ditatoriais. Tensões políticas tendem a crescer e os desafios por radicalização da democracia também, como antídoto, tanto às tentações fascistas como ao sequestro da democracia pelo capital.

8 – Profundidade e consequências da crise ambiental - Embora seja parte da crise civilizatória atual, a crise ecológica tem um caráter central, pois representa a ameaça real ao sistema-vida, com eventos climáticos extremos cada vez mais graves e mais frequentes. Como exemplo, entre tantos, está o destempero de chuvas em Petrópolis (RJ), simultâneo com a maior estiagem de todos os tempos no sul do Brasil. Na sequência, enchentes nunca vistas no sul do Brasil e simultaneamente uma das maiores secas na região amazônica. Estas situações tendem a se ampliar. Refugiados ambientais tendem a ser uma realidade frequente. A exigência de uma transição ecológica e energética profunda e a proteção e defesa firme dos bens comuns da humanidade (água limpa, alimento saudável, florestas, biodiversidade, rios, paisagens, proteção do solo, regulação climática, minérios, ar puro, plantas medicinais, sabedorias milenares) como patrimônio de todos e não como ativo econômico de alguns, serão pautas constantes nos anos próximos.

9 – Novas formas de busca de Deus - Há uma nova e intensa busca de Deus. Cada vez menos, nas formas institucionais tradicionais das Igrejas e religiões. A crise civilizatória – e a não tomada de consciência dela - bem como, as mudanças comportamentais, levam muitos a se proteger da insegurança existencial em formas religiosas do passado. Muitos numa leitura literal de textos bíblicos (evangélicos e neo pentecostais) ou em outras formas de religião fixadas passado (tradicionalistas católicos agarrados na Idade Média e no Concílio de Trento – 1545 a 1563). Outros se jogam em espiritualismos individualistas (carismáticos católicos). A busca de novas formas de viver em fé ou de assumir ou aderir a espiritualidades se multiplicam. Há um verdadeiro caleidoscópio de expressões religiosas e de espiritualidades. Isto tem provocado mudanças profundas na consciência religiosa e na forma de ver o mundo a partir das várias formas de ver a fé e a espiritualidade. Como agir, dialogar e evangelizar num ambiente assim, sem cair em fixações do passado, nem em fugas espiritualistas?

10 – Crise sanitária - Será a covid19 a última das pandemias? Difícil dizer. Mas já convivemos em nosso quotidiano com verdadeiras “epidemias” silenciosas e lucrativas para os exploradores das doenças, como câncer, doenças ósseas, depressões, stress, alergias, doenças digestivas, hipertensão, etc. Associa-se a isto o uso indiscriminado de agrovenenos e de medicamentos químicos sintéticos. Os efeitos colaterais dos tratamentos medicamentosos já são a segunda causa de doenças no Brasil. Parece que vivemos numa sociedade doente, onde as empresas que produzem agrovenenos são as mesmas que produzem medicamentos. É objetivo destas multinacionais levar ao adoecimento e depois fingir que curam, como fonte de lucros abissais. A crise sanitária exigirá de nós não apenas uma mudança comportamental profunda, mas o combate à indústria da doença que nos solapa a qualidade de vida e o bem viver, nos retirando o direito à felicidade, para o qual somos vocacionados.  

11 – A Pós-verdade - Outro fenômeno social com o qual precisamos lidar e saber como enfrentar é a chamada pós-verdade, quando fatos objetivos, dados da realidade, conclusões científicas, tem menos influência para as pessoas do que suas crenças pessoais (ou mesmo coletivas), suas emoções e sentimentos se sobrepõe à realidade concreta. É a relativização da verdade. E isto é manipulado de forma muito sórdida e inteligente para fins políticos, religiosos e comerciais. 

12 - O novo papel do campo e da produção de alimentos saudáveis e cuidado da Mãe Terra - Na confluência das crises, o campo e a produção de alimentos e matérias primas para uma enorme gama de produtos – inclusive farmacêuticos – vislumbra um novo papel histórico, social e ecológico: produzir alimentos saudáveis e nutracêuticos (sinalizando uma transição agroecológica na agricultura em larga escala e a substituição dos insumos químicos e venenos para bioinsumos e controle biológico), qualidade de vida, serviços ecossistêmicos (água limpa, ar puro, biodiversidade, paisagens, equilíbrio climático, etc), espaço de novas formas de convivência comunitária e espaço de geração de postos de trabalho solapados pela revolução 4.0 no ambiente urbano (produção agroecológica reduz a mecanização pesada e amplia a necessidade do trabalho humano).

13 – Energias positivas em abundância - Não nos guie uma visão negativista deste tempo histórico. Muitas energias positivas emergem no seio do povo, energias de resistência, de luta, de organização social e política, de profetismo ecológico, de defesa dos pobres pela organização popular com protagonismo do próprio povo, de luta por uma sociedade melhor, de emergência do feminismo popular, de visibilização das lutas históricas dos povos originários, da Teologia da Libertação, mais ampla e mais viva que nunca, da rebeldia da juventude, das comunidades que se auto-organizam, etc, etc, etc.

14 – Cuidar e discernir. Desafios aos discípulos e discípulas do Nazareno - E nós, discípulos e discípulas do Nazareno, diante destes novos Sinais dos Tempos?  Alguns Santos e Santas da tradição católica nos inspiram neste momento da história, diante da intimação de Jesus. Francisco e Clara de Assis nos chamam a CUIDAR, da natureza, das pessoas, das relações, dos fragilizados, dos abandonados. Inácio de Loyola nos convida a discernir, analisar com cuidado, nos valer dos dons da inteligência e da sabedoria, dons de Deus por excelência, para interpretar o tempo em que vivemos e orientar a prática pelo caminho da fé exercida e exercitada na prática diária. Teresa D’Ávila nos convida a entrega generosa a Deus, numa mística de amor profundo a Deus às irmãs e irmãos. Papa Francisco, sob inspiração divina, parece sintetizar hoje, para o nosso tempo, estes exemplos que foram luzes em outras crises civilizatórias já vividas pela humanidade. 

Não somos discípulos e discípulas de um alienado. O Jesus Histórico (Encarnação de Deus) esteve sempre atento à realidade histórica do seu tempo.

Por isto, somos desafiados a pensar e agir, em nosso tempo, no seguimento de Mestre Nazareno,  diante das muitas e enormes energias positivas e sinais de esperança, anunciar Jesus e viver segundo a forma de seu Evangelho. No jeito simples, pacífico, fraterno, materno, buscando harmonia com a mãe natureza, porém firmes e decididos, buscando a verdade e a justiça. Semeando amor e esperança, sendo sinais de transformação, vivendo felizes numa vocação profética, luzeiros iluminando caminhos da superação e transformação diante da grave crise civilizatória em que estamos imersos.

Discernir, cuidar, organizar e lutar. O que virá será fruto do que fizermos coletivamente, de forma organizada, com consciência do tempo em que vivemos, discernindo nele, os Sinais dos Tempos.

* Frade franciscano, dirigente da Via Campesina e Movimento dos Pequenos agricultores. É autor de Trincheiras da Resistência Camponesa e Em prece com os Evangelhos, entre outros livros.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 


Edição: Marcelo Ferreira e Marcos Corbari