Rio Grande do Sul

TRABALHO DECENTE

'Aprendemos que houve uma abolição, mas na verdade nunca tivemos uma ruptura', afirma cineasta Renato Barbieri

Um debate sobre o documentário 'Servidão' marcou o final da tarde de terça-feira no seminário sobre trabalho escravo

Brasil de Fato | Bento Gonçalves |
O cineasta Renato Barbieri destacou que o racismo não é uma escolha, mas uma mentalidade cultivada nas pessoas desde a infância - Foto: Guilherme Lund

Um debate sobre o documentário “Servidão” marcou o final da tarde de terça-feira (27/2) no Seminário "Direito Fundamental ao Trabalho Decente: caminhos para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo", em Bento Gonçalves. O filme faz um retrato da realidade desse crime no país. A conversa ocorreu durante uma reunião dos integrantes do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, presencialmente e por videoconferência, e contou com a participação do diretor do filme, Renato Barbieri. 

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Barbieri destacou que o racismo não é uma escolha, mas uma mentalidade cultivada nas pessoas desde a infância. “É uma ausência de escolha. Fomos ensinados a ser racistas. A gente aprende que houve uma abolição, mas na verdade nunca tivemos uma ruptura”, observou. Ele acrescentou que a influência da África é fundamental para a construção da identidade brasileira.

O cineasta defendeu que é necessária uma nova compreensão histórica do país, que deve começar pela erradicação do trabalho escravo. Para isso ocorrer, na sua opinião, é fundamental o engajamento de toda a sociedade. “Precisamos de um trabalho pedagógico em todas as instâncias, a serviço de um sentimento de nação, de humanização”, pontuou. Renato acrescentou que a sociedade atual é desumanizada, e que essa realidade precisa ser enfrentada. “O que vai nos salvar é o Brasil profundo, é lá onde está a humanidade.”

“Muita gente pensa que a escravidão acabou em 13 de maio de 1888. O que muita gente não sabe é que a escravidão, em sua forma contemporânea, começou no dia seguinte, 14 de maio de 1888. Ou seja, o Brasil nunca teve um dia sequer como nação livre.”

Segundo o cineasta, Servidão é uma peça de resistência para fortalecer o movimento abolicionista brasileiro, contra a escravidão contemporânea, porque o cinema tem uma função social importante, de mobilizar, de engajar. “E a gente reuniu um grupo incrível de abolicionistas, homens e mulheres, verdadeiros heróis e heroínas, porque muitos até arriscam a vida, outros perdem a vida. O filme trata disso, muitos tombaram defendendo a liberdade, defendendo a Constituição e defendendo os direitos humanos.”

Barbieri afirma que o combate à escravidão moderna só será possível com a participação de toda a sociedade. “Acho que está na hora da nossa geração, dos viventes, assumir essa missão para si e começar a escrever um novo livro do Brasil. Não é nem escrever uma nova página, é escrever um novo livro, um livro de uma nação livre.”

"O trabalho decente é um direito fundamental"


Debate ocorreu durante a 2ª Reunião do Observatório de Direitos Humanos (ODH) do Poder Judiciário do biênio 2023-2025 / Foto: Guilherme Lund

A presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, Luciana Paula Conforti, destacou que é necessária a responsabilização de quem se beneficia do trabalho escravo. “É um crime cometido por quem se aproveita da vulnerabilidade de trabalhadores”, afirmou. A magistrada destacou que o trabalho decente é um direito fundamental, e que deve ser tratado como um tema transversal, que se relaciona com todos os direitos humanos. 

O advogado do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, João Carlos Santos Oliveira, observou que obras de arte como o documentário “Servidão” são importantes por aproximarem o público da humanidade das vítimas do trabalho escravo. Ele destacou que um dado importante da obra é trazer o recorte racial, ao deixar evidente que as maiores vítimas desse crime são as pessoas negras. “Há um tipo específico de pessoa selecionada para essa subjugação e desumanização”, comentou. O advogado acrescentou que, no caso do trabalho escravo doméstico, as vítimas majoritariamente são mulheres. 

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O filósofo Ricardo Rezende Figueira afirmou que o documentário cumpre o papel da arte, que é o de provocar reações. Ele destacou que o trabalho escravo ocorre em diversas modalidades, no passado e no presente, e que a escravidão por dívida é apenas uma delas. Ele ressaltou que o trabalho escravo no mundo não é acidente, mas resultado de um projeto econômico. Acrescentou que houve uma mudança significativa quando as autoridades começaram a se preocupar com o problema, mas o avanço foi lento. “Para que existe a lei? Os direitos humanos existem com uma finalidade: defender os fragilizados. A coisificação do outro é algo inadmissível, a dignidade humana não pode ser ofendida”, sublinhou. 

A juíza Claudirene Andrade Ribeiro destacou que a reflexão sobre a inacabada abolição da escravatura envolve um debate sobre a ausência de reforma agrária e de uma política pública eficaz de moradias populares. A magistrada comentou o caso das oficinas de costura clandestinas de São Paulo como um exemplo de trabalho escravo e violação da dignidade humana no país.

“O espaço das oficinas se confundia com o espaço de moradia. As trabalhadoras se amontoavam em um cômodo sem ventilação e, durante a pandemia, a situação piorou porque diminuíram as ofertas de trabalho”, destacou. A magistrada acrescentou que as pessoas vulnerabilizadas ficam sujeitas a criminosos e muitas se tornam vítimas de assédio envolvendo tráfico de pessoas e prostituição. Ela destacou que há um recorte racial no crime de trabalho escravo, e que esse recorte também pode ser observado no sistema de justiça prisional e em outras áreas. “A maioria da população aprisionada é negra e a maioria das pessoas submetidas a condições de trabalho infantil também”, afirmou. 

Documentário reafirma a urgência da centralidade da pauta racial


O debate foi mediado pela juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça Karen Luise Vilanova Batista de Souza / Foto: Guilherme Lund

A juíza Renata Gil de Alcantara Videira, conselheira do CNJ, participando por videoconferência, afirmou que o único caminho para tirar pessoas da situação de risco de hipossuficiência, abandono e invisibilidade é o trabalho decente. A magistrada declarou que o Judiciário e os órgãos de fiscalização têm a responsabilidade de atuar nesse universo e evitar que mais trabalhadores sejam sacrificados. “Temos tempo de salvar tantas outras pessoas que batem na porta da Justiça e continuam invisíveis a nossos olhos”, acrescentou. 

A diretora executiva da Rede Liberdade, Amarilis Costa, avaliou que o documentário reafirma a urgência da centralidade da pauta racial como o principal tema da atualidade. Ela observou que isso provoca um questionamento sobre a existência ou não de uma democracia no Brasil. “Ouso dizer que não alçamos a condição de Estado Democrático de Direito, em razão da chaga social que ainda está exposta no nosso país”, afirmou. Amarilis também defendeu a importância de maior representatividade negra no Parlamento brasileiro. 

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A representante da ONG Themis Jessica Pinheiro abordou em sua fala as dificuldades enfrentadas por trabalhadoras domésticas. Ela destacou que a categoria só passou a ter direito à Carteira de Trabalho a partir da década de 70 e que ainda não possuem alguns dos direitos hoje garantidos aos demais trabalhadores. “São mais de seis milhões de trabalhadoras domésticas no Brasil. Elas são o epicentro dos marcadores sociais de gênero, raça e classe. São o centro da solução para a justiça social e o trabalho decente”, concluiu. 

O debate foi mediado pela juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça Karen Luise Vilanova Batista de Souza. Ele ocorreu durante a 2ª Reunião do Observatório de Direitos Humanos (ODH) do Poder Judiciário do biênio 2023-2025. “O Observatório é um espaço de escuta da sociedade civil, democrático, que amplia nosso olhar e nos ajuda a pensar em um Poder Judiciário mais inclusivo”, destacou a juíza auxiliar da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho Gabriela Lenz de Lacerda, uma das integrantes do comitê executivo do ODH.

* Com informações da Secom/TRT-4


Edição: Katia Marko