Rio Grande do Sul

Coluna

Onde diabos estão as feministas?

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Como dizer-se feminista e não se posicionar contra o que acontece na Palestina, contra esse grande feminicídio coletivo? - Foto: Romain Guy
No dia 8 de março de 2024, a consigna Palestina livre é inegociável, em qualquer lugar do mundo

Mais do que o compromisso de não nos calarmos sobre as violências patriarcais, colonialistas e imperialistas, nesta coluna, fizemos um pacto desde nossas raízes feministas, nossas abuelas: ao silêncio não voltaremos, nunca mais. Esse pacto de sangue, que corre nas veias desses braços, mãos e corpos que trabalham diariamente em relações próprias da economia do cuidado e também resistência, tem escrito praticamente semanalmente sobre o genocídio em Gaza desde a ofensiva de outubro de 2023.

Contrastam os povos de diversos países do mundo manifestando-se nas ruas pelo cessar-fogo imediato de Israel, e o silenciamento operado pela grande mídia e denunciado pelo embaixador palestino no Brasil - daí a importância de também não darmos trégua usando nossa ferramenta, a linguagem, no campo da comunicação social popular.

Enquanto essa coluna era escrita, soldados israelenses atiraram na multidão de civis que aguardavam a distribuição de farinha de trigo - evento que tem sido chamado de massacre da farinha - sob a alegação de se sentirem “ameaçados”. Qualquer semelhança entre essa “desculpa” e o racismo praticado no bairro Rio Branco, em Porto Alegre, não é mera coincidência. Quando, na história humana, o genocídio não foi uma prática de extermínio baseado em racismo?

Sionistas se opõem ao uso do termo holocausto para se referir ao massacre palestino em curso. Etimologicamente estaria correto, já que a palavra, de origem greco-latina, significa sacrifício onde a vítima é queimada inteira, o que de fato aconteceu nos campos de concentração onde foram construídas câmaras especificamente para este fim. Em hebreu, o termo usado é Shoá, que significa catástrofe. Mas sabemos que a crítica se refere ao fato de que a ideologia sionista reconhece apenas o extermínio do povo judeu, e não à tecnologia de morte empregada.

No caso palestino, o extermínio se dá pela destruição massiva do próprio território sitiado e transformado em campo de concentração. Nakba, em árabe, também significa catástrofe, e iniciou-se em 1948, quando centenas de palestinos e palestinas foram mortos (também queimados vivos, fuzilados, as mulheres foram estupradas e tiveram seus corpos rasgados a facão), 800 mil foram expulsos de suas casas, que foram completamente destruídas, e cerca de 500 aldeias inteiras foram completamente destruídas. Entre 70 e 80% da população palestina presa em Gaza são refugiados ou descendem de refugiados deste período. O povo palestino considera que o que está ocorrendo atualmente é a segunda Nakba.

Lula não usou o termo holocausto, já que não se tratou de discutir a técnica de extermínio, mas denunciar o próprio. É isso que se espera de um chefe de Estado que se pretenda democrático e regido pelos direitos humanos, provavelmente porque é assim que pensa um governante que pertence à classe trabalhadora: poderia acontecer com qualquer um de nós, que não somos das castas que carregam a certeza de que as grandes crises humanitárias programadas pelo neoliberalismo não as atingirão negativamente - ao contrário, lucram com isso, em todo o mundo.

Lula usou o termo genocídio, o mesmo termo usado por Aaron Bushnell, soldado estadounidense que ateou fogo contra si mesmo no domingo, dia 25, em frente à embaixada israelense em Washington, repetindo o mesmo ato de Jan Palach, em 1969, para denunciar a violência da invasão da União Soviética na Tchecoslováquia. Bushnell, cabe ressaltar, trabalhava no departamento de TI da Força Aérea, e no vídeo transmitido ao vivo por ele mesmo, enfatizou sua recusa em ser cúmplice, a sua consciência de classe e consciência histórica.

Em um momento em que sabemos que explosivos são lançados com precisão através de drones, o ato deste trabalhador tornado um agente de guerra por um Estado terrorista sintetiza o atual paradigma que atravessamos. No mesmo dia de sua autoimolação, quase 200 mil pessoas se reuniram na Avenida Paulista, em São Paulo - muitas delas com a “bandeira de Israel”, em cúmplice relação com o genocida Bolsonaro que clamava por anistia, em uma confissão indireta de seu envolvimento com os atos de 8 de janeiro. Bolsonaro corre o risco de ser preso por tentativa de golpe de Estado, e não por genocídio. Sintomático de nossa época?

Tão sintomático quanto, duas semanas após um homem branco e idoso tentar esfaquear um trabalhador negro e a vítima ser indiciada por desobediência pela segurança pública, um outro trabalhador negro ser espancado por um morador de um condomínio enquanto realizava suas funções como porteiro, no mesmo bairro. A intensidade dos crimes motivados pelo racismo e pelo colonialismo variam de acordo com o grau de cumplicidade com que autoridades políticas e instituições deixam de responder a essas violências, silenciando-as para que se repitam como tragédia ou como farsa, parafraseando Marx.

Em 1948 a ONU promulgou a resolução 194, que trata sobre o direito de retorno dos palestinos às suas casas na Palestina histórica, território que o mundo hegemonicamente chama de Israel mas que, desde o direito à memória sustentado pelos grupos de solidariedade à causa palestina, trata-se de uma invasão negociada pelas grandes potências imperialistas. O que os sionistas querem é se ver livres dos refugiados e do seu direito de retorno, negados desde essa época. Por isso, defendem o seu genocídio completo, para que não reivindiquem mais o retorno. Em perspectiva contracolonial, o não reconhecimento da legitimidade do Estado de Israel significa não fazer concessões ao colonialismo, tampouco aceitar e normalizar que o estado de apartheid seja criado para roubar e matar uma etnia. As cumplicidades residem, também, nas narrativas sustentadas historicamente.

A violência silenciada é aquela a ser instituída como norma. O que “Israel” e seus apoiadores estão a dizer às classes trabalhadoras do mundo é “submetam-se, ou o que acontece em Gaza pode acontecer em qualquer lugar”, tal como já acontece na fronteira com o Egito, por onde chegam as doações e ajuda humanitária. Pois o que chamam de Estado é uma grande indústria bélica, uma máquina de extermínio que exporta tecnologias de morte a outros territórios, tratando como reféns toda a comunidade internacional crítica ao genocídio.

A uma semana de uma das maiores manifestações feministas do mundo, Hala Hanina, socióloga e refugiada palestina, lançou a seguinte pergunta em suas redes sociais: “feministas, onde diabos estão vocês?* Como dizer-se feminista e não se posicionar contra o que acontece na Palestina, contra esse grande feminicídio coletivo? Há tempos as feministas palestinas apontam a urgência de se descolonizar a noção de paz na região, expondo as maneiras como as crianças expressam os traumas coletivos de suas comunidades. Reconheçamos a autoridade e a legitimidade das vozes das crianças de Gaza.

No dia 8 de março de 2024, a consigna Palestina livre é inegociável, em qualquer lugar do mundo. Ao silêncio não voltaremos, nunca mais.

* A tradução para o português pode ser encontrada no perfil da jornalista Hildegard Angel.

** Benke Yelene é ativista por direitos humanos; Claudia Santos, ativista da Frente Gaúcha de Solidariedade ao povo palestino.

* Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Edição: Katia Marko