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O que nós, cubanos, fomos buscar na África?

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Kifangondo, Cangamba e Cuito Cuanavale ficariam para a história como “espaços cativantes na sensibilidade patriótica dos cubanos” - Foto: Wikimedia Commons
É difícil compreender hoje como os jovens pudessem estar dispostos a dar tudo, até a vida

Numa manhã quente de outubro de 1983, um grupo de jovens reuniu-se em frente ao Comitê Militar na Plaza de la Revolución, na cidade de Havana. O motivo da presença daqueles rapazes, a maioria deles ainda sem barba, foi para irem para Angola como voluntários.

Os aspirantes a combatentes internacionalistas começaram a chegar ao local nas primeiras horas da manhã. Piadas, anedotas e comentários pontuavam a espera, enquanto eram narrados episódios de heroísmo e combates, a maioria deles fruto da imaginação juvenil e dos desejos que os encorajaram a imitar a história de seus pais e avós.

Nas primeiras horas da manhã os trabalhadores e dirigentes do Comitê Militar começaram a chegar, maravilhados e comentando a presença de tantos meninos. Um oficial, funcionário da referida Comissão, cumprimentou os presentes e pediu-lhes que organizassem gradativamente uma fila, que se formou ao longo da calçada.

Os ecos da heróica defesa de Cangamba tinham sido o estopim, ainda não estava claro o que aconteceu, mas foram contadas histórias que ultrapassaram a lenda dos 300 espartanos das Termópilas.

Cangamba

De 2 a 10 de agosto de 1983, as posições defendidas pelos combatentes internacionalistas cubanos e pelas Forças Populares de Libertação de Angola (Fapla) na cidade de Cangamba foram cercadas e atacadas.

A 32ª Brigada de Infantaria Ligeira (BIL) das Fapla e um grupo de conselheiros cubanos foram destacados para aquela localidade da província do Moxico.

Através das Fapla, as forças estacionadas em Cangamba atingiram o número de 818 militares, muitos deles com pouca preparação para o combate. A equipe consultiva cubana era composta por 82 combatentes internacionalistas. Assim que os combates começaram, em 2 de agosto de 1983, a liderança cubana enviou reforços, o que aumentou a presença cubana para 184 soldados.

No total, os defensores de Cangamba dispunham de 18 peças de artilharia e morteiros de pequeno calibre e 36 instalações GRD-1P com pouca munição. Do lado sul-africano, embora não houvesse forças de infantaria posicionadas no terreno, existia uma presença de especialistas em artilharia, inteligência e alvos de aviação, que pode ser estimada em aproximadamente um batalhão.

Havia também pequenas unidades do Batalhão Buffalo, que tinham experiência de ações conjuntas com a Unita, que contava com mais de 3.000 homens. 18 cubanos morreram em combate e 27 ficaram feridos.

Por seu lado, as Fapla registaram 60 mortos e 177 feridos. 85% dos abrigos foram danificados ou destruídos. Havia 401 caudas de granadas de morteiro espalhadas por toda a posição defendida, às quais foram adicionados cerca de 1.300 fragmentos de projéteis antitanque e foguetes GRAD-1P. Estima-se que pelo menos 1.500 projéteis de artilharia tenham atingido as posições defendidas pelos cubanos.

Um pouco de história

Enquanto os aspirantes a internacionalistas esperavam, falavam de Kifangondo, da bravura demonstrada por cubanos e angolanos, da espectacular fuga do inimigo, que dias antes da batalha proclamara “pequeno-almoço em Caxito, almoço em Cacuaco e almoço em Luanda”, mas morderam o pó da derrota.

Kifangondo, Cangamba e Cuito Cuanavale ficariam para a história como “espaços cativantes na sensibilidade patriótica dos cubanos”, mesmo faltando ainda alguns anos para a vitória de Cuito Cuanavale que mudaria para sempre a história de África, pondo fim ao infame Regime do Apartheid, mas aqueles combates travados pelos internacionalistas cubanos, soldados voluntários da terra de Martí e Fidel, encheram de orgulho as novas gerações que sonhavam em contribuir para “saldar a dívida com África”.

Professores, médicos, construtores, engenheiros, centenas de milhares de cubanos, cumpriram uma missão internacionalista na África. No dia 23 de maio de 1963, num avião da Cubana de Aviación, viajaram para a Argélia 29 médicos, quatro estomatologistas, 14 enfermeiros e sete técnicos de saúde.

Assim começou a primeira missão internacionalista cubana na África na história da Revolução, uma colaboração que não cessou em todos estes anos e que contribuiu para salvar milhares de vidas, para a alfabetização, para construir, para semear, para defender com o seu sangue a independência do continente. Mais de 34.000 técnicos de nível médio e universitários de África formaram-se em Cuba nas últimas décadas, milhares de outros jovens estão atualmente estudando. (Agência Cubana de Notícias (ANC) Havana)

Missões militares internacionalistas

Um contingente militar cubano, composto por 685 militares e seus meios, chegou à nação africana entre 21 e 29 de outubro de 1963 em ajuda à nascente República Democrática Popular da Argélia, após a chegada do pessoal de saúde.

Cuba enviou 746 combatentes, respondendo ao pedido de ajuda apresentado pelo governo Sírio devido ao fracasso da ofensiva desencadeada pelo Egito e pela Síria, em 6 de outubro de 1973, para tentar recuperar os territórios ocupados por Israel durante a Guerra dos Seis dias, em junho de 1967.

Com as tropas cubanas, formou-se um Regimento de Tanques, que posteriormente foi integrado à 47ª Brigada de Tanques Cubano-Síria. Em Angola, a Operação Carlota durou de agosto de 1975 a maio de 1991, altura em que regressou o último grupo de combatentes.

Foi a resposta do governo cubano ao pedido de ajuda do líder histórico do Movimento de Libertação de Angola (MPLA) Agostinho Neto, face à agressão perpetrada pelo regime do apartheid sul-africano e seus aliados internos e externos, para impedir a independência da nação africana, derrotar o MPLA e ocupar o país.

No total, 337.033 militares e cerca de 50.000 colaboradores civis completaram a sua missão em Angola. Um contingente militar cubano foi destacado para a região de Punta Negra, República do Congo, com a missão de atuar como apoio às tropas que defendem Cabinda (Angola), se necessário.

“Os povos de Angola e de Cuba são irmãos em todos os aspectos e por isso estaremos sempre lado a lado (...). Nos bons, nos maus momentos e para sempre. Só levaremos conosco a amizade indestrutível deste grande povo e os restos mortais dos nossos mortos!” (General de Exército Raúl Castro Ruz, discurso, 10 de dezembro de 1977).

Codificada como Operação Baraguá, a missão militar internacionalista na Etiópia teve início em janeiro de 1978, quando as primeiras tropas cubanas chegaram àquele país para enfrentar a agressão das forças armadas da Somália, iniciada em julho de 1977. A missão durou até setembro de 1989 e participaram 41.730 soldados cubanos.

Em todas estas missões participaram 385.908 combatentes cubanos e, deles, um total de 2.398 tombaram, cumprindo o seu dever internacionalista. Não levamos nada conosco da África, repetidamente saqueada pelas potências coloniais. Estivemos lá a pedido do seu povo, cumprindo o que consideramos um dever sagrado.

Os milhares de combatentes que lutaram na África não agiram em busca de glória pessoal ou de qualquer riqueza; não foram motivados por nenhum outro desejo que não fosse o de serem úteis, de cumprirem a Revolução, de viverem à altura do tempo em que viveram.

A glória que foi vivida

É difícil compreender hoje, face aos anos que passaram, nos novos tempos que vivemos, como os jovens em plena e vital juventude pudessem estar dispostos a dar tudo, até a vida, por pessoas que viviam milhares de quilômetros longe, abandonando a segurança do lar, enfrentando saudades, doenças, cansaço e morte.

O que tornou possíveis tais atos de distanciamento? Aqueles jovens que hoje têm cabelos grisalhos não estiveram na Sierra Maestra ou na Playa Girón, nem viveram os dias da Crise de Outubro, da Campanha de Alfabetização.

Aqueles jovens que estiveram nessa linha no Comitê Militar da Plaza de la Revolución e em centenas de outros Comitês Militares em todo o país naqueles dias de 1983 e durante muitos desses anos, não eram fanáticos ou cordeiros doutrinados, eram meninos e meninas nascidas com a Revolução e movidas pela mais profunda convicção de que era um dever.

Tinham orgulho daqueles que lutaram e deram a vida em terras africanas e não queriam ficar para trás. Eles não poderiam ficar para trás. Naquele dia que eu estava lá, no meio deles, eu vi chorar, e chorei, por não ter sido admitido, por ter sido rejeitado. Não puderam selecionar todos como era lógico e nada nos consolou, nem a promessa de outras missões, nem o chamado a cumprir o dever diário na nossa terra. Queríamos conhecer a história.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko