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Seis anos após seu assassinato inacabado, Marielle está presente e mostra o caminho - Reprodução
Por manter seu olhar nas pessoas e seus destinos, Marielle ainda caminha conosco

Para onde se dirigia o olhar de Marielle Franco?

Em que direção seguem aqueles que acompanham esse olhar?

Dia desses, alguém me perguntou qual a importância de Marielle Franco. Mulher negra, que se moveu na base da pirâmide social e, com seu movimento, desacomodou a ordem estrutural a ponto de esta, podemos afirmar, não ser mais a mesma depois dela, Marielle Franco cumpre o registro de Ângela Davis e esse legado responde às questões que se possam apresentar sobre sua atuação.

Cria da favela, como ela mesma se definia, Marielle olhava o mundo a partir do “Conjunto Esperança”, local que habitava no alto do Morro da Maré. Em seu campo de visão podemos adivinhar o ampliado espaço geográfico das minorias e a grandiosidade de suas atribulações.

Marielle cresceu procurando caminhos no coletivo e sua primeira experiência profissional, como educadora em uma creche, já denuncia o olhar de cuidado e o interesse pela formação de pessoas. Graduação em Ciências Sociais e Mestrado em Administração Pública reforçam essa opção pelos outros. Esse modo de viver sua vida a partir do comum/comunitário demarca a trajetória da mulher política, lutadora pelos direitos civis, feminista com participação ativa no “Centro de Ações Coletivas” e entre organizações LGBT e coletivos de pessoas negras.

Sua presença na Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj foi base para os passos que daria como vereadora na capital do Rio de Janeiro. A eleição de Marielle era resposta social para um anseio coletivo. Seu olhar inclusivo dava, por exemplo, conta de examinar a problemática das mortes em meio às invasões no ambiente bélico das UPPs e denunciar a condição de precariedade que precisava ser mudada trazendo críticas à atuação das polícias, porém, nunca deixou de chamar atenção sobre a condição do trabalho que levava à morte de policiais a quem ela nominava, realçando o fato de serem pessoas, famílias, atingidas pela ineficiência e descontrole de governantes.

Suas iniciativas buscavam apoio aos direitos das populações LGBT, denunciavam a violência contra mulheres e trabalhavam pela melhoria da condição de pessoas negras e moradores em favelas. Quem pesquisar sua atuação como vereadora encontrará projetos em que regulou o serviço de mototáxi e a Lei das Casas de Parto, mirando aspectos que atingiram as vidas daquelas pessoas distantes do alcance do capital que produzem.

Em tempo de estratégias para manter privilégios e fixar pessoas no espaço subalterno em que foram deixadas, a mensagem legada por essa mulher negra – que viveu em luta para colocar no lugar de direito as pessoas de sua comunidade, cidade, país, – faz o movimento de tirar o pé do pescoço de mulheres, negros, LGBTs e populações periféricas.

31 mil pessoas negras são assassinadas por ano no Brasil. Número maior do que o registrado em muitas guerras mundo afora. Quatro mulheres são assassinadas todos os dias no Brasil. Caso esses dados não alertem o Capital, podemos garantir que 373 bilhões de reais, ou seja, cerca de seis por cento do PIB são perdidos, segundo o IPEA, nessa “guerilha”.  Passou da hora para homens de visão perceberem onde irá dar esse túnel que cavam todos os dias.

Em apenas 13 meses de mandato, Marielle incomodou a tal ponto situações de confortável poder, que já não bastava interrompê-la em suas falas ao microfone da Câmara Municipal. Tiros tentaram seu silêncio para sempre. Falharam! Seu exemplo é presente e seguimos com ela.

Trinta minutos antes de ser assassinada com 13 tiros (“e não sei porque tantos”, poderia perguntar a compositora Fátima Guedes), Marielle citou Audre Lorde em seu discurso na Casa das Pretas: “não serei livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.

Seis anos após seu assassinato inacabado, Marielle está presente e mostra o caminho. Por manter seu olhar nas pessoas e seus destinos, Marielle ainda caminha conosco. O termo “mulher” é sinônimo de comunidade, “Marielle” é seu coletivo. Ubuntu!

* Mires Batista Bender, professora e ensaísta; doutora em Literatura com Pós-doutorado em crítica de poesia e Mestrado em Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-Africanas; publicou ensaios críticos em livros e periódicos; participa do Mulherio das Letras, grupo de escritoras ativistas, e do Coletivo de Educação Antirracista do RS.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Edição: Katia Marko