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Coluna

Descomemorar o golpe de 1964 para abortar os efeitos do tentado em 2023

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"Ao longo de 21 anos, o terror de Estado prendeu, torturou, assassinou, exilou, 'desapareceu' e baniu brasileiros e brasileiras que lutavam em defesa da democracia", lembra Frei Beto - Foto: Evandro Teixeira
As justificativas para o golpe de 1964 também se fingiam das mais puras virtudes cívicas

A escandalosa e violenta invasão do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, em janeiro do ano passado, tem servido para uma comparação histórica com o golpe militar sofrido pelo Brasil em 1964. Algumas provas da quase idêntica inspiração de um e outro desses fatos estão sendo reavivadas agora, visando prevenir-se qualquer do povo contra as causas e os efeitos que deles ainda possam encorajar reincidência.

Em comum, nesses dois atentados à democracia e ao Estado de direito, dois poderes responsáveis estão sendo relembrados, inclusive por vídeos publicados em redes sociais: São eles as Forças Armadas do país e o capital nacional e transnacional que, entre outros testemunhos do seu intento inconstitucional, estão presentes num vídeo recente do ICL (Instituto Conhecimento Liberta) acessível na internet. Sendo fato independente de prova que tais poderes se apresentam amiúde como o melhor exemplo de virtudes públicas e privadas, um testemunho primeiro da ditadura que implantou-se em 1964, por responsabilidade das Forças Armadas, precisa ser ouvido, por partir de uma das suas mais famosas vítimas do que ela fez:

“A história nos revela um triste retrato das Forças Armadas brasileiras. Cometeram atrocidades na Guerra do Paraguai e jamais admitiram o genocídio promovido. Excluíram, por muito tempo, negros e judeus das fileiras do oficialato. Atentaram diversas vezes contra a democracia e forjaram, em 1937, o Plano Cohen para implantar a ditadura do Estado Novo. Em 1964, deram o golpe e instauraram o terror com o golpe no golpe – o Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968. Ao longo de 21 anos, o terror de Estado prendeu, torturou, assassinou, exilou, 'desapareceu' e baniu brasileiros e brasileiras que lutavam em defesa da democracia. Nenhum assassino, torturador e estuprador foi punido. A esdrúxula Lei da Anistia isentou os militares dos crimes cometidos. É lamentável ver, ainda hoje, professores de história, em salas de aula, tergiversarem sobre este trágico passado.” (Frei Betto, in “60 anos do golpe militar”, IHU notícias, 28 de fevereiro passado).


Atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, na Praça dos Três Poderes, em Brasília / Foto: Joedson Alves/Agência Brasil

Que a pretensão de boa parte dessas Forças Armadas pretendia intervir outra vez contra a nossa democracia em 2023, nem interessa saber se o faria como o fez em 1964, desta vez somente sob o pretexto de impor-se por respeito “às quatro linhas” da nossa Constituição, como dizia o candidato Bolsonaro. Pelo simples fato de que, em 1964, as justificativas (?) para o golpe também se fingiam das mais puras virtudes cívicas e até espirituais da bandeira ressuscitada em defesa de “Deus, pátria e família.”

O lobo não deixa de ser lobo por se vestir de cordeiro. Que o apoio financeiro de empresários ricos ao novo golpe, de outra parte, está inconformado com o fracasso dessa nova tentativa antidemocrática, dão prova convincente o número de inquéritos criminais abertos pela Polícia Federal contra eles, desde o ocorrido, sob respaldo explícito do Supremo Tribunal Federal. De modo muito mais solerte e significativo, porém, esse apoio está se exercendo por meio das emendas constitucionais que as bancadas do Congresso, da bala, do boi e da bíblia, financiadas também pelo poder econômico desses empresários, estão tentando desconstituir todo o restante de proteção dos direitos sociais e ambientais que a nossa Constituição alcançara em 1988.

Lugi Ferrajoli, um jurista italiano conhecido no mundo todo, em seu estudo sobre “Poderes selvagens” (São Paulo: Saraiva, 2014), denunciou essa mesma forma de agir, sob toda a autoridade da lei, durante o período da administração Berlusconi no seu país, uma figura de político em tudo semelhante a Bolsonaro, mostrando como uma democracia “pode ser derrubada sem golpes de Estado formais se os princípios dela forem de fato violados e contestados, sem que suas violações suscitem rebeliões ou ao menos dissenso.” Em época de campanhas eleitorais, como a que o país está vivendo agora, ainda sob o impacto do acontecido em janeiro de 2023, é oportuno lembrar que Ferrajoli valoriza muito duas virtudes públicas e privadas contrárias a forças antidemocráticas: a “lealdade” dos poderes públicos e a “vigilância” dos cidadãos sobre tais poderes.

Ora, tanto em 1964, quanto em 2023, a grande bandeira sob a qual as Forças Armadas e o poder econômico do capital se vestiram, foi a da “lealdade” por ela devida à liberdade, autoproclamando seus méritos para garantir o melhor dos mundos ao país. A liberdade foi apropriada por tais grupos com exclusividade, do modo como está acontecendo agora na maioria do Congresso Nacional e nas campanhas eleitorais dos partidos políticos de direita. Justamente por essa razão,  “vigilância” popular sobre esse fato precisa perceber que a “lealdade” dos poderes conferidos a quem ela elege, está sob o permanente risco de transferir à sua própria liberdade às eleitas e eleitos. As consequências extremamente danosas desse abuso de poder, a propaganda mistificadora de quem o pratica conta, evidentemente, com a ingenuidade ou o descuido daquilo que deve constituir-se em verdadeira e ativa “vigilância” popular.

Do modo, aliás, denunciado por Ferrajoli: “A propriedade devora a liberdade. Os direitos de liberdade, antes de operarem como limites ao poder, são por este limitados. E as leis do mercado são colocadas em nível superior às regras do Estado de direito e da democracia constitucional.” (ob.cit.). Por tudo isso, o nosso passado já comprovou que a possibilidade de se viver sob uma democracia e um Estado de direito permanentes pode abrigar “Estados de exceção” simultâneos à própria existência de uma e de outro, com todos os maus efeitos que isso provoca. Quem sabe aí se encontre, não só a necessidade de um debate dos partidos políticos em campanha com as eleitoras e os eleitores deste ano, começando por demonstrar como a necessidade dessa “vigilância” popular, por ter sido tão fraca anteriormente, foi surpreendida em 1964, e em 2018 não foi capaz de impedir que uma pessoa tão nefasta ao Brasil como a do candidato Bolsonaro fosse eleita, e com tão grande apoio que quase golpeou a democracia em 2023.

É o que recomenda igualmente, até com melhor fundamentação, um dos mais prestigiados integrantes da antiga Comissão de Anistia, criada em 2002 pelo governo da República de então, o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, em artigo publicado pela Unisinos, na coletânea de estudos “Justiça e Memória. Para uma crítica ética da violência”, organizada pelo professor Castor Bartolomé Ruiz: “Para que o humano possa se redimir, ele tem de se tornar totalmente responsável. É uma responsabilidade absoluta que não pode ser terceirizada para Deus ou qualquer outra divindade. É preciso que os homens e mulheres, que compõem o coletivo social e ocupam assentos construídos pela cultura, assumam para si a tarefa de fazer justiça às vítimas do passado e de manter inabalável a atenção constante no presente, receptiva à fragilidade e à delicadeza da diferença, da identidade que se afirma outra a cada instante, do compromisso de construir uma sociedade verdadeiramente democrática.”

* Claudete Simas, advogada popular, integrante da Comissão Temática Terra e Território do CEDH-RS e coordenadora da Acesso Cidadania e Direitos Humanos; Júlio Alt, Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH-RS), representando a entidade conselheira Acesso Cidadania e Direitos Humanos, doutorando em Desenvolvimento Rural (PGDR/Ufrgs); Jacques Alfonsin, Procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul e advogado e assessor jurídico de movimentos populares como o MST e organizações ligadas aos direitos humanos, membro fundador da Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e da Rede Nacional de Advogadas/os Populares (Renap).

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora e dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko