Rio Grande do Sul

COMBATE AO RACISMO

‘Só pela educação será possível superar problemas crônicos da sociedade brasileira como o racismo estrutural’

O Brasil de Fato RS conversou com a deputada Bruna Rodrigues sobre a Frente Parlamentar por uma Educação Antirracista

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Frente Parlamentar por uma Educação Antirracista será lançada nesta segunda-feira (8), a partir das 10h, no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul - Foto: Paulo Garcia | ALRS

“O Rio Grande do Sul é um dos estados mais racistas do país. Não só porque todos nós, negros e negras, já nos deparamos diversas vezes com situações racistas aqui, mas porque o RS é um dos estados com altos índices de denúncias de casos de racismo, de boletins de ocorrência envolvendo injúria racial e crime de racismo”, pontua a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB), integrante da primeira Bancada Negra do Legislativo gaúcho, e uma das primeiras mulheres negras a ocupar o Parlamento. 

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De acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública do estado (SSP-RS), em 2022, as denúncias por racismo ou injúria racial no Rio Grande do Sul mais do que dobraram nos cinco primeiros meses de 2022. Foram 47 denúncias desde o início do ano, 135% a mais do que as 20 do mesmo período do ano de 2021. Em Porto Alegre, a Delegacia de Combate à Intolerância de Porto Alegre recebeu 314 registros de ocorrência de crimes relacionados à cor da pele em 2022. Desses, 212 foram por injúria racial, 75 por racismo e 27 por outros crimes. 

“Quando abordamos esse assunto através da Frente Parlamentar por uma Educação Antirracista é para discutir possíveis produções e estratégias de políticas antirracistas (como letramento racial) que auxilie no fim do proliferar de termos racistas, que capacite agentes de segurança sobre abordagens policiais com protocolos padrão, educação nas escolas sobre nossas origens, nossa ancestralidade”, destaca a parlamentar que presidirá a Frente, a ser lançada nesta segunda-feira (8) a partir das 10h, no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

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Para a deputada a sala de aula pode cumprir um papel estratégico na reflexão e no enfrentamento ao racismo. “A Frente será um importante espaço de atuação para debatermos e elaborarmos encontros para apresentar dados sobre a luta antirracista e produzir ações legislativas através de projetos de lei que tratem do tema, por exemplo.”

O evento terá como convidado o professor e escritor Jeferson Tenório e atrações culturais da escritora Lilian Rocha e do grupo Tambores de Freire. 


Confira a entrevista

Brasil de Fato RS - Como surgiu a ideia da Frente Parlamentar? Quais são os seus objetivos? 

Bruna Rodrigues - O Rio Grande do Sul é um dos estados mais racistas do país. Não só porque todos nós, negros e negras, já nos deparamos diversas vezes com situações racistas aqui, mas porque o RS é um dos estados com altos índices de denúncias de casos de racismo, de boletins de ocorrência envolvendo injúria racial e crime de racismo…

Uma pesquisa realizada pelo Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), sob encomenda do Instituto de Referência Negra Peregum e do Projeto Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista (Seta), mostra que 81% dos respondentes concordam que o Brasil é um país racista e 51% dizem já ter testemunhado ataques de racismo. Porém apenas 11% admitem ter atitudes ou práticas racistas. 

É uma pauta que, infelizmente, está longe de acabar. Em quase 200 anos de Assembleia Legislativa, por exemplo, é a primeira vez que temos duas deputadas negras eleitas. Isso diz muito sobre o local que ainda somos vistas, como ainda devemos ou não ocupar. Ainda choca uma mulher preta ter direito a voto, ter direito a sentar em uma cadeira no plenário dessa Casa Legislativa, ter sido muito bem votada. E muitas vezes acabei sendo confundida com as meninas da limpeza, fui impedida de ingressar no Plenário, pois não sabiam que eu era deputada. Ou seja, não é “comum” para uma parcela da população. 

Em quase 200 anos de Assembleia Legislativa, é a primeira vez que temos duas deputadas negras eleitas

Então quando abordamos esse assunto através da Frente Parlamentar por uma Educação Antirracista é para discutir possíveis produções e estratégias de políticas antirracistas (como letramento racial) que auxilie no fim do proliferar de termos racistas, que capacite agentes de segurança sobre abordagens policiais com protocolos padrão, educação nas escolas sobre nossas origens, nossa ancestralidade. É uma pauta que vai poder contribuir muito na formação antirracista de um dos estados que mais precisa se letrar racialmente.

BdFRS - E como ela funcionará?

Bruna - Uma Frente Parlamentar tem o objetivo de tratar de assuntos específicos de interesse da sociedade. É um instrumento parlamentar muito relevante que demonstra também o compromisso do nosso mandato com as pautas que defendemos.

A Frente será um importante espaço de atuação para debatermos e elaborarmos encontros para apresentar dados sobre a luta antirracista e produzir ações legislativas através de projetos de lei que tratem do tema, por exemplo. Dela sairão relatórios, audiências públicas, enfim, assuntos que vão fomentar essa discussão inclusive nas escolas, em alguns centros e até na imprensa. 

BdFRS - A educação antirracista, pautada na Lei 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da História e cultura africana e afro-brasileira, como tu vê essa questão no estado?

Bruna - Essa lei assegura a alteração do texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), determinando a inclusão dos estudos da História e Culturas Africanas e Afro-brasileira para todos os currículos escolares. E foi divulgada a resolução que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais, estabelecendo metas de curto (2009-2010), médio (2009-2012) e longo prazos (2009-2015) para que a execução de conteúdo afro-brasileiro e africano já estivessem implementados.

Uma das nossas propostas ainda na vereança, em 2021, era que conseguíssemos assegurar, no Plano Plurianual de Porto Alegre, uma emenda de “Compromisso com as Pessoas” que assegurava metas maiores de investimentos para que as escolas de Porto Alegre contassem com coletivos propositores de práticas de Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER). A meta da prefeitura era de implementar práticas de ERER em 50% das escolas municipais até 2025.

Ainda não se encontram sequer dados concretos sobre o avanço da legislação no nosso estado e muito menos de ações concretas

E o nosso Mandato Popular reformulou esta meta para que chegássemos ao patamar de 100% das instituições públicas de ensino na cidade. Em 2022 nosso mandato municipal conseguiu destinar R$ 100 mil para algumas escolas porto-alegrenses. Mas o número ainda é muito pouco. E para o estado essa pauta ainda engatinha.

Por mais que hajam iniciativas do governo do estado que pensem, em teoria, a implementação da ERER, ainda são poucas as escolas que conseguem de fato ter práticas de ensino das relações étnico-raciais. Ainda não se encontram sequer dados concretos sobre o avanço da legislação no nosso estado e muito menos de ações concretas. Está muito aquém ainda. 

BdFRS - Como a educação antirracista pode contribuir no combate ao racismo?

Bruna - Só pela educação será possível superar problemas crônicos da sociedade brasileira como o racismo estrutural, assim como desigualdades de gêneros e outras formas de opressão. O racismo não acabou com o “fim” do sistema escravocrata. Então o letramento racial, a discussão de quais termos não são mais permitidos, o local de relevância do povo negro na história, enfim, são assuntos que vamos precisar ressignificar. 

É aí que a luta antirracista entra. Porque o letramento racial é um processo de reeducação que reúne um conjunto de práticas com o intuito de desconstruir formas de pensar e agir naturalizadas e normalizadas socialmente, em relação a pessoas negras e pessoas brancas.

Em relação às pessoas negras a desconstrução do imaginário racista e em relação às pessoas brancas, a desconstrução do imaginário de superioridade. Então será através de cada vez mais debates e discussões do tema que vamos conseguindo dia após dia enfrentar essas camadas do racismo estrutural. É um desafio, não é fácil. 

BdFRS - Uma das presenças é do escritor Jeferson Tenório, o que motivou o convite?

Bruna - Parte do desafio da educação antirracista é fazer com que a juventude conviva com uma literatura antirracista, prestigiando autores que expressam através das obras diversos episódios que muitos de nós já passamos ou passaremos. E para pessoas não-negras também, que vão precisar mergulhar nessa temática para compreender mais de perto o que é a política antirracista pela qual tanto falamos. 

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E a vinda do Tenório, ainda mais após a polêmica envolvendo sua obra “O avesso da pele” - mais uma vez puxada por uma cidade do Rio Grande do Sul, reforçou que o estado se depara continuamente com situações racistas. Foi por todo esse contexto que pensamos na presença de Tenório, um dos autores vencedor do Prêmio Jabuti que narra de uma forma muito precisa o racismo! Vai ser um prazer compartilhar esse desafio com ele.


Edição: Katia Marko