Rio Grande do Sul

Coluna

Entre a raiva e o ódio

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"Precisamos ouvir nossas vozes e deixar nossas pegadas, senão, a única versão que ficará, será a do CIStema opressor" - Reprodução
Raiva é quando nosso corpo grita BASTA. Ódio é quando eles oprimem para obter mais para eles

Precisamos parar e entender o que são a raiva e o ódio tão presentes em nossas vidas, nesses tempos.  

Vou dar minha versão, nada científica provavelmente, mas desde o lugar de uma pessoa que observa esses sentimentos há anos.

De um lado :

Quando você lê no jornal que, em tantos lugares, têm crianças morrendo de fome e, nesse mesmo mundo, tem milionários comendo carne com ouro. Qual a sua reação corporal?

Ou, que por um lado você vê que têm pessoas morando nas ruas e, pelo outro, muita gente dona de propriedades vazias.

Ou, que têm pessoas dizendo que o tema LGBTQIA+ já era, que hoje somos todos (com O) iguais, enquanto você sabe que ainda tem lésbicas que não se animam a assumir sua existência para suas famílias, nos seus trabalhos e, que têm outras, como Carol, sendo assassinadas, ou como a travesti gaúcha, Atena Beauvoir Roveda, sendo ameaçada de morte.

Quando isso acontece, você sente a temperatura do seu corpo mudar? Aquecer, talvez?

Isso é raiva, ou, como diriam xs companheirxs do Movimento Zapatista, a Digna Raiva.

Do outro lado :

Quando você vê um governo de um país matando pessoas com fome, pessoas na fila por comida, sacos de farinha ensanguentados, isso é ódio. Ódio de um governo que manda matar pessoas inocentes.

O mesmo que, quando em plena pandemia, o ex-presidente do Brasil aparecia dando risadas e andando de jet ski, dando as costas para a pior pandemia até o momento. Isso, além de ódio, é sadismo.

Também egoísmo. E o que é o egoísmo senão o ódio às outras pessoas? Importar-se unicamente por si, pela sua família e pelo seu deus. Lembram deles, quando juravam seu voto favorável ao impeachment da nossa presidenta Dilma?

Dá para notar que estamos falando de conceitos opostos?

Raiva é quando nosso corpo grita BASTA.

Ódio é quando eles oprimem para obter mais para eles, menos para nós.

A raiva vem para mudar, para revolucionar, para nos posicionar. Para lutar contra o patriarcado capitalista racista homo-lesbo-transfóbico. Contra o EGO-ísmo. O movimento que, infelizmente, está muito ativo com as ultradireitas e o patriarcado. Sejam eles de esquerda ou direita.

Precisamos ouvir esse momento quando o corpo grita seu BASTA. Quando temos companheiras / es que precisam da nossa ajuda, de nossos ouvidos e abraços.

Assim, a raiva poderá ser transformada em combustível para a ação, para nossas lutas.

Se a gente não consegue escutar, ficaremos com a voz do sistema que diz que ela nos adoece. Ela!? e não as injustiças?

Vivemos numa ditadura patriarcal, há, pelo menos, 10 mil anos.

Quem disse que o Estado protege às mulheres / lésbicas / dissidências? Mais uma situação que está rolando muito nas redes e cansei de ver. Uma mulher (uma lésbica?) sentada na rodoviária, apanha de um policial negro. Um policial que seria a representação do Estado, um empregado do CIStema. As feministas não cansamos de dizer e de deixar esse recado nas paredes : a nós não nos cuida o Estado, nos cuidam nossas amigas, as companheiras, as feministas.

A gente tem que ouvir nossas vozes internas, nossas gargantas de raiva.             

Ela nos protege de sermos continuístas do sistema CIStema opressor. Ela é política e ela é nosso combustível para a ação.

Pensemos em momentos HERStóricos :

Um dia, nos Estados Unidos, depois do trabalho, uma mulher negra chamada Rosa Parks, cansada (e cheia de raiva contra o racismo estrutural) pegou o ônibus. Ficou sentada e não cedeu seu lugar a um homem branco. Ela ousou atravessar o Umbral. E deu certo.

Houve também uma época em que muitas mulheres de diferentes lugares se uniram e se revoltaram contra seu apagamento e anulação social. Elas queriam seu direito ao voto, à fala e à escuta.

Hoje, muitas pessoas das novas gerações, nem sabem que menos de um século atrás, as mulheres não podiam votar, nem pensar no divórcio, nem ter uma conta própria no banco. Isso piorava para as mulheres negras e para as lésbicas que não queriam fazer parte da heterossexualidade compulsória.

Outro dia, um grupo de lésbicas, em São Paulo, cansadas também contra a lesbofobia e a invisibilidade de suas existências, decidiram fazer um jornal : Chana com Chana. Passaram a vende-lo no lugar em que se reuniam, chamado Ferro’s bar. Mas o dono as traiu, proibindo sua venda e chamando a polícia. Então, aconteceu uma grande revolta que hoje lembramos a cada 19 de agosto, data do Orgulho lésbico.

Precisamos ouvir nossas vozes e deixar nossas pegadas, senão, a única versão que ficará, será a do CIStema opressor.

A nossa consciência é necessária e urgente, também a mobilização.

Bora mudar o rumo do caminho traçado por outros? Vamos organizar as raivas?

* mariam pessah : ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.  Atualmente também tem uma coluna Conversa Invers(A) no Youtube.

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.   

Edição: Katia Marko