Rio de Janeiro

EDUCAÇÃO PÚBLICA

Artigo | Quais as dificuldades do campo democrático popular na luta pela educação pública no Brasil?

Governo sai pela tangente do difícil embate sobre o Novo Ensino Médio criando outras janelas políticas para conquistar

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Projeto de Lei 5.230/2023 que trata da nova reforma do Novo Ensino Médio foi aprovado na Câmara dos Deputados em março - Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil

No dia 20 de março deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5.230/2023 que trata da nova reforma do Novo Ensino Médio. O projeto segue para tramitação no Senado, onde possibilidades de disputas podem ser reconfiguradas.

A fundo, tal produção legislativa não traz nenhuma grande novidade em relação ao debate já travado sobre a educação pública brasileira desde 1932 (ano de publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova). A perspectiva de educação dualista, como outrora bem explicou Anísio Teixeira, prevalece hoje. O Projeto de Lei também segue a mesma tônica do Novo Ensino Médio (NEM) lançado no governo Temer, em 2016.

O fracasso da implementação desse modelo de educação gerou uma enorme e necessária pressão do campo democrático popular pela revogação dessa política. Profissionais da educação, setores importantes da sociedade civil que fazem advocacy, assim como associações educacionais e membros da academia também vêm endossando as críticas e a necessidade da revogação desde a transição de governo, de Bolsonaro para Lula, no final de 2022. Os problemas do NEM são variados, perpassando desde a falta de estrutura das escolas até o teor curricular da reforma.  

Por outro lado, segmentos ligados ao setor financeiro foram elogiosos ao Novo Ensino Médio desde o surgimento da proposta no debate público, ainda em forma de Medida Provisória (MP 746/2016) e continuam defendendo não mudar nada além de pequenos ajustes, sem alterar substancialmente o conteúdo da Lei 13.415/2017.

Os embates neste processo revelam elementos importantes das discrepâncias sociais do Brasil e como o andamento das lutas e interesses de classes se configuram no local estratégico de disputa de hegemonia – o Estado. É importante enxergar o governo como condensador de forças e impulsionador de políticas, dentro dos embates e da batalha por espaço no poder.

O governo Lula foi eleito com um mote central que aglutinou diversos espectros políticos: a necessidade da defesa da democracia. Essa eleição foi uma espécie de plebiscito sobre a democracia, logo a vitória conquistada representa um passo civilizatório importante para o país, o que coloca os embates sociais em outro patamar, o que seria difícil de alcançar com o fascismo bolsonarista que se encastelava no Estado e que ainda tem poder social.

Lula já demonstrou, em falas públicas, que a vitória eleitoral não significou a conquista do poder por parte da classe trabalhadora, tampouco da população mais vulnerável. Conquistar o poder, exige postos mais amplos do que a conjuntura possibilitou. Assim, do alto da sua experiência de derrotas e de vitórias políticas, trata de lidar com as forças contraditórias que estão no governo. Para piorar, o contexto da luta política atual é ainda mais duro para a esquerda, pois a direita está organizada em um nível elevadíssimo, tanto no país, quanto internacionalmente.

Todo esse processo vai se refletir no teor das políticas sociais e a educação é uma esfera-chave de interesse do fascismo, da burguesia financeira e do campo democrático popular também. Esses segmentos têm especificidades e particularidades, mas no geral, este é o desenho do nosso embate classista.

No que se refere ao governo, desde a eleição, Lula sinalizou que as políticas sociais seriam prioritárias e está cumprindo a promessa, mesmo que aquém de muitos anseios populares e abaixo da urgência histórica. O desenho político do nosso presidencialismo de coalização demanda um aspecto vital, uma condição para a manutenção e sobrevida do governo, ou seja, uma maioria para aprovar leis e uma ampla maioria para não desestabilizar o Executivo por meio do impeachment. O retrato eleitoral de 2022 foi de vitória da democracia no Executivo, mas de um gigantesco espaço galgado pelo fascismo no Legislativo. Portanto, o governo sabe que qualquer partido e segmento político-social disposto a colaborar com a manutenção do seu fôlego é precioso, ainda que isso implique em lidar com as contradições em níveis consideráveis. Tal movimento faz parte do jogo político, do olhar estratégico e da correlação da luta política.  

Uma das contradições mais contundentes geradas por tal condensação de forças aparece exatamente na disputa sobre o Novo Ensino Médio, pois o capital financeiro e outras frações que dialogam com o governo já deram inúmeras provas que não abrirão mão da reforma. O campo popular polariza este embate tentando a revogação ou, pelo menos, uma redução de danos. O desfecho na Câmara dos Deputados já foi um pouco nesse sentido de reduzir os danos, quando a carga horária de 2.400 horas foi assegurada. Todavia, aparelhos de hegemonia, como a imprensa, fazem uma efetiva campanha a favor do NEM, há algum tempo. Reconfigurar o olhar da sociedade, de uma forma geral, e dos alunos, sobre o NEM, envolve diversos desafios. 

Socialmente, é o fascismo que dialoga de forma mais bem-sucedida hoje com a população pobre, isto é, os mais de 80% de alunos e responsáveis que usufruem da escola pública.

As pautas morais, como o fantasioso “kit gay”, o banheiro unissex ou outros temas, como o Escola Sem Partido, tiveram enorme capilaridade entre pessoas mais religiosas, notadamente as evangélicas. As big techs colaboram com a propagação do fascismo local e mantêm uma conexão internacionalizada. São muitas as provas de que o Brasil é estratégico para figuras como Elon Musk e afins. A pauta educacional entra neste bojo.

O setor financeiro sabe que a ocupação do Estado é estratégica para sua reprodução ideológica e econômica. Por ter dinheiro e muita potência política, está sempre no governo, ainda que as frações que ocupem esse espaço variem, por exemplo, na concepção sobre democracia.

O fascismo segue ocupando muitas posições nos aparelhos de hegemonia, como nas polícias, escolas e repartições públicas. Também mobilizam engajamento, sobretudo nas redes. O campo democrático popular vem encontrando enorme dificuldade para impulsionar o debate público, o que seria o caminho crucial para avançar nas pautas reivindicadas.

Um passo importante que o campo democrático realizou foi a articulação na construção da Conferência Nacional de Educação, deste ano, e o desenho do futuro Plano Nacional de Educação. Todavia, ampliar este debate para o chão da escola e o tecido social, de um modo mais abrangente, é uma tarefa que está na ordem do dia.  

Um drama enfrentado por esse último campo é que os profissionais da educação têm grande capacidade de dar aulas sobre história do Brasil ou língua portuguesa, por exemplo, a partir da realidade dos alunos deste país continental, mas estão penando para converter essa potência em força política para disputar a agenda pública. Para ficar ainda nos termos do Novo Ensino Médio, destaco um tema: o ensino propedêutico (apresentação geral de um curso). Outros conceitos, como a Formação Omnilateral (formação humana ampla, para além da profissionalização acrítica) e o Ensino Médio Integrado (que integra as dimensões do trabalho, ciência e da cultura), são de difícil assimilação para a sociedade.

No meu entendimento, o governo sai pela tangente do difícil embate sobre o Novo Ensino Médio criando outras janelas políticas para conquistar hegemonia no campo popular, e as medidas anunciadas mais recentemente, como o Programa "Pé-de-Meia" e o "Juros por Educação", vão nesta direção. Logo, o governo está jogando a favor do campo popular, de modo gradativo, como já fez antes nos primeiros do PT no poder, mas parte significativa da esquerda está com muita dificuldade de entender isso, por focar na batalha (necessária) do Ensino Médio.

Todavia, num jogo jogado, é necessário olhar para todo um sistema tático e não somente um setor do campo, para evitar uma derrota.

Analisando a literatura disponível sobre algo similar ao programa "Pé-de-Meia" (sugiro a tese de Vitor Azevedo Pereira, 2016) e considerando o acúmulo e a capacidade dos governos petistas de construírem políticas sociais, estamos diante de algo promissor, que já demonstrou resultados consideráveis no Canadá, por exemplo, mas também em estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, Piauí, Minas Gerais, Alagoas e o município de Niterói (RJ). 

Tal política, se bem implementada, tende a virar política de Estado, ampliando o acesso à renda para população mais pobre, indo além do Bolsa Família e agora vinculando a aquisição do diploma escolar à renda. E não se trata de um ganho financeiro qualquer: a perspectiva é de cerca de R$ 9 mil reais ao final do ensino básico. Não estamos falando de uma política banal. É mais um passo na entrada do pobre no orçamento público. Uma das vantagens dessa medida é que já temos parâmetros para avaliar resultados nos entes federativos.

Sobre o programa "Juros por Educação", a recepção pelos governadores foi boa, de imediato, e há avanço num diálogo tático com a oposição extremista, como no caso do governo de São Paulo.

Considero a jogada do governo cirúrgica, em vários aspectos. Primeiro por manejar uma política situada no âmbito econômico, envolvendo a questão da dívida dos estados, colocando no terreno da política social o horizonte de ampliação do direito à educação técnica e o alívio aos cofres estaduais. Segundo, no que se refere ao desenho do pacto federativo, é uma iniciativa louvável do Poder Executivo também.

Para termos ideia, a projeção do Ministério da Fazenda é de um crescimento de 3,2% da economia. A tendência é também da União se beneficiar desse alívio da dívida, impulsionando o desenvolvimento econômico através da qualificação da população local, nos estados. Estudos que relacionam o pagamento da dívida com a política educacional, como o da UNESCO (2011), apontam que tal medida trouxe resultados relevantes para os países que adotaram políticas similares.

Alertas, no entanto, são feitos, como a necessidade da participação da sociedade civil na tomada de decisão, para melhor destinar os recursos públicos. Aqui há um valioso espaço de disputa. 

O anseio por qualificação profissional através do ensino técnico é uma demanda importante da população mais pobre, o que pode colaborar com a vinculação positiva entre uma política de governo e as perspectivas de mobilidade social. Vale lembrar do legado dos governos anteriores, no que se refere a construção dos Institutos Federais, e a retomada deste projeto agora, no Lula 3. Todo esse desenho é crucial nestes tempos de avanço do trabalho flexível e precarizado, o que também se relaciona diretamente com a falta de perspectiva de melhoria de vida por meio do trabalho. Os estudos sobre o fascismo apontam que parte do combustível para este fenômeno é o ressentimento e a frustração social.

O fascismo catalisa isso em forma de ódio e reacionarismo.

Surpreendentemente, o debate público sobre as últimas medidas do governo está para lá de frio. Em um país desigual como o nosso, complexo e polarizado, é decisivo entender as contradições em processo e os aspectos-chave de disputa de hegemonia. O campo democrático popular precisar captar o momento histórico e lidar com a dinâmica da política.

Agradeço a revisão técnica e crítica de NataliaVeiga. 

*Professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Laboratório de Políticas Públicas.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Jaqueline Deister