Rio Grande do Sul

ENCHENTES NO RS

Rio Gravataí sobe novamente após chuvas e adia esperança do retorno das famílias às suas casas

Cachoeirinha, Canoas, Gravataí e Alvorada seguem com alertas de evacuação e voluntários mantém apoio à atingidos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Limite entre Porto Alegre e Cachoeirinha inundado pelas águas do rio Gravataí - Foto: Coletivo Mato do Júlio

Após um pequeno recuo no nível do rio Gravataí ao longo da semana passada, as intensas chuvas que caíram na região Metropolitana e no Litoral no final de semana voltaram a elevar suas águas. As prefeituras de Cachoeirinha, Canoas, Gravataí e Alvorada, municípios banhados pelo rio, emitiram alertas de evacuação aos bairros afetados pela enchente.

O sol retornou nesta terça-feira (14) mas a alta dos rios adia a esperança de moradores que tiveram suas casas alagadas de retornarem para recomeçar. Enquanto isso, voluntários seguem prestando solidariedade aos atingidos.

Segundo dados da Estação Hidrometeorológica no Passo das Canoas, em Gravataí, o rio estabilizou na marca de 5,84 metros na manhã de hoje, 3,24 metros acima da cota normal. O repique da cheia ocorre após o Gravataí ter baixado para 5,76 metros no sábado (11). Ontem, chegou a subir para 5,86 metros. O nível mais alto registrado, na semana passada, foi de 6,23 metros.

O Gravataí corta a região Metropolitana de Porto Alegre, banhando com seus 39 km de curso nove municípios com alto adensamento populacional. Desagua no Guaíba, que também registra elevação, o que impacta no escoamento de suas águas. A cheia do rio também atinge a população da zona Norte de Porto Alegre, que na última semana precisou ser evacuada às pressas com o extravasamento do dique de contenção.

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O alagamento no município de Alvorada, por conta do represamento do Arroio Feijó e do alagamento da área de várzea do rio Gravataí, deixou 520 famílias desalojadas e 125 estão em abrigos públicos. Bairros que compõem a área de várzea do rio Gravataí são os mais atingidos, como Americana, 11 de Abril, Tijuca, Nova Americana e Umbu.

Mais de 90 mil deixaram suas casas em Canoas

Canoas é uma das cidades mais atingidas pelas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul. Por conta das chuvas no final de semana, ainda no domingo (12), o prefeito Jairo Jorge (PSD) pediu a evacuação imediata dos bairros Rio Branco, Fátima, Mato Grande, Harmonia, Mathias Velho, São Luís e Niterói. “As pessoas que já evacuaram suas casas devem permanecer em locais seguros”, alertou.

Além do Gravataí, a cidade é circundada pelos rios dos Sinos e Jacuí, que também estão com elevados níveis de água, e enfrenta alagamentos em diferentes pontos, com locais em só se avistam os telhados das residências. Segundo a prefeitura, mais de 90 mil pessoas deixaram suas casas. Dessas, 19,4 mil estão em abrigos institucionais e as demais 71,3 mil informaram estar em casa de parentes, amigos ou outros locais. A cidade soma 19 óbitos e 17 pessoas seguem desaparecidas.


Bairro Harmonia é um dos submersos pela enchente do rio dos Sinos em Canoas / Foto: Divulgação

Entre as milhares de famílias atingidas em Canoas está a da estudante de Jornalismo Clara Aguiar, que trabalha no Brasil de Fato RS. Após perceberem o rápido aumento das águas no bairro Harmonia, onde moram, organizaram mochilas com documentos, equipamentos de trabalho, algumas peças de roupas e itens de primeira necessidade. Antes de saírem junto levando a cachorrinha, decidiram elevar alguns móveis e eletrodomésticos, na esperança de que a água não subisse tanto.

Começaram barulhos de helicóptero e sirenes. Funcionários da Defesa Civil passaram orientando os moradores a evacuar o bairro. “Foi nesse momento que o caos tomou conta da nossa rua”, recorda. Clara e a família não tinham para onde ir. “Nisso, uma vizinha disse que iria para o hotel de um amigo dela em Cachoeirinha e que precisaria de carona pra levar os pais idosos dela, decidimos então ajudar com a carona e ir para o mesmo lugar.”

“Já na manhã de sábado, fomos informados por vizinhos que se negaram a evacuar o bairro que a nossa casa estava submersa pela enchente: ‘Só dá pra ver a cunheira’”, contaram. Ela diz que a família não tem perspectiva de quando vai voltar para casa. “A todo momento pensamos: ‘como vamos habitar novamente uma casa que há 12 dias está submersa em água podre de esgoto? Como retirar o fedor da enchente acumulado nas paredes? Como recuperar qualquer coisa que seja após semanas embaixo de água e lama?’."

Solidariedade recebida e oferecida

Clara conta que seus pais estão muito abalados emocionalmente por terem perdido tudo aquilo que levaram anos de trabalho para conquistar. Por isso, criou um Pix Solidário para recomeçarem do zero. “Nesse momento, estamos em Esteio, em um apartamento cedido por um colega de trabalho do meu pai. Com o valor arrecadado pelo Pix Solidário, já conseguimos adquirir os móveis e eletrodomésticos mais básicos, como fogão, geladeira, cama... Tô muito emocionada com toda a mobilização e rede de apoio que se formou para ajudar a minha família”, conta. Além do Pix Solidário, ela também recebeu amparo financeiro do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SindJorRS).


Clara (no centro) ao lado de voluntários em Canoas / Foto: Divulgação

Após alcançarem um mínimo de conforto, Clara voltou seus esforços para ajudar outras famílias que continuam desabrigadas ou desalojadas. Foi contribuir como voluntária no prédio 16 da Ulbra, em Canoas, onde é realizada a triagem de todas as doações recebidas. “Sei o quanto é angustiante não ter pra onde ir ou não ter perspectiva sobre o futuro. Assim como meus pais e eu fomos acolhidos no pior momento das nossas vidas, também quero levar amparo para outras famílias que estão passando pela mesma situação.”

O trabalho consiste em ajudar na separação das roupas infantis e, no meio das doações, Clara acaba encontrando alguns bilhetes com mensagens de apoio que são enviados pelas crianças. “Isso me traz sentimentos bons, principalmente de esperança. Estar em contato com outros voluntários e ver de perto toda a mobilização por trás das doações é também onde eu encontro forças pra enfrentar esse momento."

Gravataí e Cachoeirinha acolhem moradores da região

Conforme a prefeitura de Gravataí, nesta segunda-feira, 1.940 pessoas estavam acolhidas em abrigos. Os bairros mais afetados são Caça e Pesca, Mato Alto, Novo Mundo, Passo das Canoas e Vila Rica. Porém a maioria das pessoas nos 56 abrigos distribuídos entre os municípios de Gravataí e Cachoeirinha são de outras cidades, como Canoas, Eldorado do Sul e Porto Alegre.

A Secretaria Municipal de Assistência Social (SMFCAS) de Gravataí disponibilizou um banco de dados para a busca de familiares e o reencontro de pessoas que estão nos abrigos na cidade. Animais resgatados podem ser procurados em uma página no Instagram. Há também um cadastro para quem quer ser voluntário.


Voluntários no município de Gravataí / Foto: Douglas Glier Schütz/PMG

Em Cachoeirinha, segundo informações da prefeitura, 5 mil pessoas estão desabrigadas. O rio Gravataí invade a região central da cidade e o principal acesso à Porto Alegre, impedindo o trânsito para quem chega ou vai para a Capital pela avenida Assis Brasil. As águas também alagam diversos bairros próximos à Free Way, pelo extravasamento do Arroio Barnabé.

Nos últimos dias, o município trabalha para encontrar soluções para drenar a água acumulada na cidade. Três bombas móveis operam para reduzir o volume, especialmente na região da casa de bombas. "Com a instalação desta bomba, poderemos fazer a casa de bombas funcionar novamente e drenar a água o mais rápido possível para reorganizar a cidade e reconstruí-la", afirmou o prefeito Cristian Wasem (MDB).

Voluntários nos resgates

Nas redes sociais, a prefeitura agradeceu aos voluntários que atuam em resgates e apoio a pessoas e animais desabrigados na cidade. O professor de História Leonardo da Costa é um dos moradores de Cachoeirinha que, ao lado de seus companheiros do Coletivo Mato do Júlio, trabalha em apoio à comunidade.

Leonardo conta que ele e integrantes do coletivo iniciaram o trabalho de resgate de pessoas e animais na sexta-feira (3), com um bote emprestado, no bairro de Parque da Matriz, e depois no bairro Vila Eunice, onde as águas subiram muito rápido. A situação piorou quando a energia elétrica foi cortada e a água começou a subir mais ainda mais rápido. “Foi desesperador. De noite era um breu, as pessoas gritando, dizendo pra todo mundo sair. Naquele momento já não deu mais tempo de tirar móveis. Era todo mundo ali puxando gente, criança, cachorro”, recorda.


Leonardo puxando o bote na região central de Cachoeirinha, próximo à ponte de limite com Porto Alegre / Foto: Divulgação

Para melhorar o apoio nos resgates, o coletivo fez uma campanha e, em uma hora, arrecadou R$ 20 mil para comprar um barco. O dinheiro estava na conta, mas não haviam mais barcos à venda na região. Encontraram à venda e compraram uma lancha usada, que foi utilizada para levar o bote a regiões de difícil acesso.

Enquanto faziam os resgates, outros voluntários se organizavam para receber as pessoas em abrigos. No primeiro momento, ressalta Leonardo, o trabalho foi totalmente todo feito por moradores. “Um trabalho comunitário de círculos e vínculos de solidariedade, porque o município, eles não estavam preparados para esse caos”, conta. “E o nosso grupo, como ele é voltado também para a causa animal, a gente já estava até com o abrigo de animais pronto, porque a gente já sabia o problema que ia ser.”

Defesa do Mato do Júlio

Em meio a essa inundação histórica de Cachoeirinha - alagamentos ocorrem em menor proporção quando a cidade sofre com chuvas fortes - Leonardo chama a atenção para a necessidade de preservação do Mato do Júlio, causa que une o coletivo. “Quando eu lembro que lá em 2023 a gente estava falando sobre os alagamentos que viriam a ocorrer em Cachoeirinha, que era muito sério, ninguém tava de sacanagem. Mas nós éramos tachados de malucos. As pessoas riam da gente”, diz.


Ruas de Cachoeirinha seguem alagadas / Foto: Divulgação/PMC

A área conhecida como Mato do Júlio é um remanescente de floresta de 256 hectares no meio da cidade que cresceu sobre a várzea do rio Gravataí. Conforme pontua o coletivo, esse refúgio de natureza tem um importante papel na retenção hídrica da região. Mas há anos corre risco de ser cortado por ruas e se transformar em condomínio.

O futuro do Mato do Júlio segue em aberto. Não foi repassado para a especulação imobiliária somente pela luta da comunidade, que tem impedido a concretização dos planos da prefeitura e dos proprietários do local, que querem ceder parte do território em troca de dívidas milionárias de impostos.

O Coletivo Mato do Júlio defende que o Mato do Júlio seja transformado em uma unidade de conservação. Lá dentro também está um casarão construído no período colonial brasileiro, hoje em ruínas. O grupo quer que seja reformado e se torne um memorial.


Edição: Katia Marko