Rio Grande do Sul

Coluna

Memórias sob as águas

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"Tem sido intenso acompanhar a tristeza no olhar de quem perdeu quase tudo, ofuscada por um lampejo de alegria no encontro com uma foto que se imaginava até então perdida" - Foto: ana c.
Que o laço social ampare a reconstrução necessária de cada mito individual

Para muitas famílias, é hora de voltar para casa. Claro, para aqueles que têm a "sorte" de ainda ter uma casa para retornar. A inundação, causada tanto por eventos climáticos extremos quanto pela falta de manutenção dos sistemas de proteção das cidades, que estavam ocupadas com "outras agendas", afogou não apenas vidas, mas também lembranças materializadas em objetos.

Nos mutirões de limpeza que temos realizado, vivemos a experiência de uma caça ao tesouro. A famosa brincadeira da infância se tornou uma dolorosa corrida contra o tempo para encontrar algo precioso. São elementos valiosos que ultrapassam o valor monetário que o capital insere nos objetos, indo além do preço de mercado e adquirindo sua valoração a partir do lugar que ocuparam em determinada cena.

"O cachecol que minha avó fez", "as alianças dos meus pais", "os sapatinhos do meu filho" e tantos outros elementos que são pilares da história de cada pessoa que encontrou nos últimos tempos um significado assustador na palavra água. Tem sido intenso acompanhar a tristeza no olhar de quem perdeu quase tudo, ofuscada por um lampejo de alegria no encontro com uma foto que se imaginava até então perdida.

Entre tantas experiências, testemunhei o choro desesperado de uma mãe ao se deparar com o álbum de fotos perdido da infância do filho, assim como o desespero de uma senhora que chorava pelo medo de ser traída pela própria memória e esquecer o rosto dos pais, já que as únicas fotos deles ficaram mergulhadas pela irresponsabilidade daqueles que anunciaram firmemente que "não é hora de procurar culpados". Também escutar o doloroso depoimento de uma jovem que relata que a sua vida já estava sendo perdida por uma luta contra o câncer, e que o lar destruído tornava inviável seguir tentando sobreviver. É um sofrimento inominável acompanhar tudo isso.

Temos testemunhado várias histórias destroçadas. Nós, enquanto sociedade, nos deparamos com um luto que demandará muito trabalho psíquico para ser minimamente elaborado, na melhor das hipóteses. A perda dos elementos que trazem a materialidade de tantas histórias não tem preço. As inúmeras famílias foram violentadas em seu ponto mais sagrado: o suporte material de suas narrativas. Que o laço social ampare a reconstrução necessária de cada mito individual.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko