Rio Grande do Sul

Feira do Livro

“O momento é de grande incerteza", diz patrono da 66ª Feira do Livro de Porto Alegre

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Jeferson Tenório, o 1º patrono negro da Feira, fala sobre o evento que começa hoje

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O avesso da Pele chega num momento em que as questões raciais vinculadas à violência policial estão em evidência" - Diego Lopes/Feira do Livro Porto Alegre

Já virou lugar comum falar das mudanças causadas pela pandemia. Com a Feira do Livro de Porto Alegre, que começa hoje (30), não foi diferente. Sem o contato físico, o toque nos livros e o olho no olho, restam as janelas digitais. E apesar de mais enxuta, a Feira segue com o lema “se o povo não vem à livraria, vamos levar a livraria ao povo”, através das parcerias e do universo digital. 

Além de pela primeira vez não ocupar seu espaço físico e histórico na Praça da Alfândega, e ser totalmente on-line, ela também terá, de forma inédita, um escritor negro como patrono.

Nascido no Rio de Janeiro, em 1977, Jeferson Tenório mudou-se para Porto Alegre ainda criança, com 13 anos de idade. Graduou-se em Letras pela UFRGS, tendo ingressado através da primeira turma do programa de cotas raciais, onde obteve seu título de mestre em literaturas luso-africanas com uma dissertação sobre o moçambicano Mia Couto. Atualmente, é doutorando em teoria literária pela Escola de Humanidades da PUCRS e professor de português e literatura na rede pública de ensino de Porto Alegre.

Estreou sua carreira como romancista com a obra "O beijo na parede", publicada em 2013, pela Sulina. O livro lhe rendeu o prêmio de Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores. Em 2018, o livro entrou para o Plano Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação, e passou a ser distribuído para as escolas públicas, para alunos do 8º e 9º ano do Ensino Fundamental e alunos do Ensino Médio. A obra já teve mais de 60 mil exemplares distribuídos pelo programa. Seu segundo romance, "Estela sem Deus", foi publicado em 2018, pela editora Zouk.  

Seu livro mais recente, "O Avesso da Pele", pela Companhia das Letras, vem sendo aclamado e recomendando por “anônimos” e famosos. O livro conta a história de Pedro, um jovem de 22 anos que busca reconstruir a história de seu pai, Henrique, vítima da violência policial. A obra já teve os direitos de adaptação comprados para o cinema, assim como os direitos de publicação vendidos para Itália e Portugal. 

Entre uma entrevista e outra, entre bancas de dissertação, aulas e compromissos pessoais, Tenório “conversou”, via e-mail, com o Brasil de Fato RS, sobre o momento atual e sobre sua obra.  “Ser patrono de uma Feira histórica como essa tem um certo peso. O significado dessa homenagem é bastante simbólico, principalmente para uma parcela da população que há anos não se via representada na Feira do Livro. Neste sentido, a representatividade negra importa, mas não é o suficiente. A escolha de um patrono negro em 66 edições não pode passar a ideia de que o racismo estrutural acabou. Tenho consciência de que sou uma exceção. É preciso dar continuidade ao projeto de diversidade na área cultural. É na diversidade que reside uma literatura de qualidade e não na exclusão”, reflete o escritor e professor. 

A Feira do Livro de Porto Alegre inicia hoje, dia 30, às 18h30. A abertura terá a  presença da escritora chilena Isabel Allende, às 19h30, e segue até o dia 15 de novembro. Veja aqui a programação completa.

Leia abaixo a entrevista:

Brasil de Fato RS - Teu livro "O Avesso da Pele" tem feito um enorme sucesso, chegando a ter os direitos de adaptação comprados para o cinema. Nele são tratados o racismo, a violência policial, a questão da cor da pele, assim como a subjetividade das relações afetivas. Como tu enxergas essas questões no contexto que estamos vivendo? 

Jeferson Tenório - Creio que 2020 será um ano que deixará marcas por muito tempo. A pandemia trouxe uma série de demandas antigas, discussões e problemas de ordem social. O Avesso da Pele chega num momento em que as questões raciais vinculadas à violência policial estão em evidência. No entanto, a tese que proponho no romance não é novidade para uma sociedade que tem como base um racismo estrutural, desse modo, vejo meu livro como mais uma contribuição para um debate complexo através da literatura. 

BdFRS - Além da pandemia, 2020 foi também o ano em que se reacendeu o debate sobre vidas negras importam. Ao se debater esse tema, se afirma que no país o racismo é estrutural, e porque não dizer estruturante. Como tu enxergas isso? Acreditas que um dia iremos evoluir, dos olhares atravessados e do preconceito. Como podemos evoluir no diálogo. 

Tenório - Infelizmente não sou muito otimista quanto ao avanço de políticas antirracistas no Brasil. Em termos de reflexões e de comprometimento com ações para minimizar o racismo, creio que estamos bem atrasados. Acho que o primeiro passo é reconhecer que somos um país racista e que isso não apenas um problema dos negros, mas de todos. Pois uma democracia não se cumpre num cenário de desigualdade racial. O debate só evoluirá quando assumirmos um enfrentamento constante e firme contra o racismo.   

BdFRS -  Em uma entrevista recente tu dissestes, ao comentar sobre a sua escolha como patrono da Feira, que foi pelo reconhecimento de teu trabalho. Como foi receber a feira “como filha” neste ano? Como é ser o “pai” da Feira e qual o significo de ser escolhido como seu primeiro patrono negro?

Tenório - Colocando nos mesmos termos, acho que estou aprendendo a ser “pai”. É tudo muito novo. Ser patrono de uma Feira histórica como essa, tem um certo peso. O significado dessa homenagem é bastante simbólico, principalmente para uma parcela da população que há anos não se via representada na Feira do Livro.  Neste sentido, a representatividade negra importa, mas não é o suficiente. A escolha de um patrono negro em 66 edições não pode passar a ideia de que o racismo estrutural acabou. Tenho consciência de que sou uma exceção. É preciso dar continuidade ao projeto de diversidade na área cultural. É na diversidade que reside uma literatura de qualidade e não na exclusão.  

BdFRS - Esse ano o tema da Feira é cultura, diversidade, ciência e sustentabilidade. Tu também dissestes que a edição desse ano é um marco e creio que não há mais como retroceder. Gostaria que falasse mais sobre isso. O que esperar dessa Feira? 

Tenório - É uma Feira diferente por estar conectado com as demandas sociais de sua época. Chegamos a um ponto em que se torna insustentável um evento cultural que não dialogue com seu tempo. Isso aconteceu com a FLIP (Festa literária internacional de Parati) e agora a com Feira do Livro de Porto Alegre. E não há como retroceder porque o público irá perceber que manter uma proposta mais diversa e plural torna a Feira muito mais atraente. 

BdFRS - Como tu avalias a participação de escritores e escritoras negras no país? E também tua opinião sobre uma possível taxação dos livros no país.

Embora ainda seja insuficiente, creio que houve um avanço na inserção de autores negros, tanto em grandes editoras, quanto nos grandes festivais. Mas é necessário estar atento para que essas participações não sejam vistas como uma “onda” ou “moda”, mas sim como uma política de reparação. 

BdFRS - Por fim, além de escritor tu também é professor. Como tu avalias a educação nesse momento?

Tenório - A pandemia evidenciou o abismo que existe na educação pública. O pior disso tudo é que os efeitos provocados pela covid terão efeitos negativos por muitos anos no ensino. Acredito que o momento é de grande incerteza e que os próximos governos terão a tarefa de amenizar esses efeitos.


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Edição: Marcelo Ferreira