Rio Grande do Sul

Humor

Micuim integra publicação internacional pela liberdade de rir dos poderosos 

Revista Mongolia convida editor do Micuim para representar o país na edição especial sobre liberdade de expressão

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O cartunista Benett criou ilustração inédita para o artigo da Mongolia - Arte: Benett

Era só o que faltava: o Micuim se internacionalizou! Publicado mensalmente numa parceria entre o Brasil de Fato RS e a Grafar, a associação dos cartunistas de Porto Alegre, o jornal virtual de humor escrachado marca presença na edição especial sobre liberdade de expressão de uma das maiores revistas satíricas do planeta, a espanhola Mongolia

Deve-se a façanha a Carlos Castelo, um dos seus atilados autores. No artigo “A Censura Tropical” que publica em Mongolia, Castelo conta que “falta de liberdade de expressão está no DNA do Brasil”. Relembra a perseguição ao gaúcho Aparício Torelly, mais conhecido como Barão de Itararé, ainda nos tempos do Estado Novo (1937-1945), passa pelos percalços de “O Pasquim” com a censura no período da ditadura civil-militar (1964-1985) e chega aos tempos atuais, onde um dos esportes preferidos do ministro da Justiça, André Mendonça, cujo senso de humor é zero, é processar cartunistas e jornalistas. 

“Internacional Satírica”

O texto está no número de janeiro lançado no último no dia 8. A questão da liberdade de fazer rir também interessa de perto à Mongolia. Recentemente, a Suprema Corte da Espanha decidiu que a revista pagasse uma indenização ao ex-toureiro José Ortega Cano – outro personagem sem nenhuma graça – de 40 mil euros pela publicação de um cartaz que o satirizava.

Outra particularidade está na origem da galera que elaborou a edição única: todos pertencem à “Internacional Satírica”. Pois é. Todo mundo já ouviu falar da Internacional Socialista, da Internacional Comunista, da Internacional Anarquista e outras menos votadas, mas quem sabia da existência da Internacional Satírica? Ela é integrada por, claro, publicações de humor como as revistas Barcelona, da Argentina, e Chamuco, do México, e pelo Micuim aqui do Brasil, editado por Fraga e Katia Marko.


Capa do número especial da Revista Mongolia sobre a liberdade de expressão / Reprodução

Desfazendo os mitos

Sobre a Mongolia, vale reproduzir o que The New York Times publicou no seu perfil da revista: "Mongolia desfaz os mitos, posturas e privilégios cimentados durante a transição da Espanha de ditadura a democracia, durante os anos setenta e oitenta." E o jornal inglês The Guardian reforçou: "A versão espanhola do Private Eye ridiculariza os corruptos, os poderosos e a imprensa."

Leia abaixo o texto de Carlos Castelo conforme foi publicado em Mongolia. Importante notar que a ilustração usada pela revista é de autoria de Bennet, colaborador da Folha de São Paulo e do Micuim. Alberto Benett é uma das 81 personalidades colocadas numa lista de supostos “detratores” do regime pelo governo brasileiro.

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O redator e editor do Micuim foi convidado a representar o Brasil na edição especial da Revista Mongolia / Reprodução


A censura tropical

Carlos Castelo 

Falta de liberdade de expressão está no DNA do Brasil. Ela já amordaçou artistas, formadores de opinião, jornalistas. Entre os humoristas então, sempre foi uma incomoda constante. 

Um caso emblemático ocorreu, nos idos de 1934, envolvendo o humorista Aparício Torelly, o Barão de Itararé. 

Naquele ano, ele fundara o ‘Jornal do Povo’, no Rio de Janeiro. Nos dez dias em que sobreviveu, o jornal publicou em fascículos a história de João Cândido, um dos líderes dos marinheiros amotinados na Revolta da Chibata, acontecida em 1910. 

Torelly terminou sendo raptado e espancado por oficiais da Marinha. Depois do episódio, ironicamente voltou à redação e colocou uma placa na porta onde se lia: “Entre sem bater”. 

No período mais obscuro da ditadura militar no Brasil, com o Ato Institucional número 5, editado em 1968, a situação voltou a recrudescer. Piadas, charges ou qualquer manifestação cômica sobre a situação do país deveriam ficar bem longe das vistas da população. Nem mesmo as anedotas que “deturpassem” a moral e os bons costumes seriam toleradas.

Na década de 1970, uma das publicações mais populares do país, em plena ditadura militar, era um jornal satírico: o carioca ‘O Pasquim’.  

No final de 1970, quase toda a sua redação foi para trás das grades. Um a um, seus jornalistas e humoristas foram sendo caçados e conduzidos a um quartel do Exército.

Os militares poderiam ter impedido que o ‘O Pasquim’ continuasse circulando. Contudo, a popularidade da publicação era tão grande que optaram por sufocá-la lentamente, através de censura prévia, de modo a diminuir a tiragem e afastar possíveis anunciantes.
As proibições entraram até mesmo pelo improvável terreno da Publicidade. Em 1974, o Ministério da Justiça determinou a suspensão de um comercial de banco estatal que usava um personagem do cartunista Ziraldo. 

O motivo: o humorista era considerado “suspeito de atividades ou, quando muito, de simpatizar com movimentos esquerdistas”.

Nos anos 1980, eu mesmo posso dar um testemunho. A ditadura de caserna ainda vigorava e o grupo de humor musical do qual eu fazia parte, o Língua de Trapo, sofreu com a censura federal. Chegaram a proibir a execução de algumas músicas de nosso primeiro disco. 

No século XXI, os censores não são mais tão distraídos assim. A pedido de seus chefes, elaboram minuciosos dossiês sobre os inimigos do regime. 
Alberto Benett, autor do cartum que ilustra este artigo, integra uma lista de 81 supostos “detratores” do governo Jair Bolsonaro.

O relatório recomenda “monitoramento preventivo” de alguns dos elencados. Algo que só se ouvia falar nos tempos em que Josef Stalin mandava a KGB conduzir aos gulags os desavisados que cometiam chistes contra a sua administração.

A tendência de impedir a liberdade de expressão, como foi o caso da Mongolia, transmutou-se em garrote econômico. Talvez fosse o caso de seus criadores colocarem, na porta da redação, um cartaz onde lê-se: “Entre sem multar”.

Carlos Castelo é jornalista, humorista e editor do jornal satírico brasileiro ‘Micuim’.

Edição: Katia Marko