Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Mentira tem pernas curtas. Tiranias também!

"Janaína Audino é autora de uma Proposta Pedagógica que, entre outros absurdos, exclui a Filosofia da grade curricular"

Porto Alegre | BdF RS |
Estudantes dos últimos anos do Ensino Fundamental da EMEF Judith Macedo de Araújo, no Morro da Cruz, conversam com a secretária de Educação de Porto Alegre, Janaína Audino - Divulgação

- Secretária, nós queremos entender por que a sra. não quer a Filosofia nas escolas. A sra. estudou em que escola?

- Ah, querida, foi há muito tempo atrás, era uma escola pública...

- Quando a sra. era estudante, na sua escola, tinha Filosofia?

- Ahhh...

- Tá. Tinha ou não?

- Não, não tinha.

- Ah... então tá explicado... (risos gerais do grupo no entorno). É por isso então. Se a senhora tivesse tido Filosofia, jamais iria querer tirar algo tão importante pras nossas vidas!

A secretária de Educação de Porto Alegre se levanta e, abruptamente, começa a se despedir de duas estudantes, um estudante e um professor de Filosofia que tinham conseguido, enfim, conversar com ela. E sai de cena, às pressas.

A descrição acima é parte de uma tentativa de diálogo que aconteceu entre um grupo de estudantes dos últimos anos do Ensino Fundamental da EMEF Judith Macedo de Araújo, no Morro da Cruz, e a secretária de Educação de Porto Alegre, Janaína Audino, nesta quarta, 10 de novembro. Audino é autora de uma Proposta Pedagógica que, entre outros absurdos, exclui a disciplina da grade curricular das escolas públicas de Porto Alegre.

Estudantes, às dezenas, recepcionaram a secretária e a comitiva da prefeitura no pátio interno da escola com uma manifestação contundente contrária à retirada da Filosofia do currículo escolar, aos gritos, em coro, de “Filosofia! Filosofia!”. Por iniciativa do professor da disciplina da escola, Jacques Schaefer, conseguiu-se uma pequena reunião improvisada com representantes das turmas e a secretária, ali mesmo, no saguão.

Na conversa, muito rápida, Janaína Audino afirmou que “não é ela que retira a Filosofia”, mas que é “uma necessidade de adequação à BNCC, que consolida a retirada da Filosofia do currículo” – argumento que vem repetindo sempre que pressionada. E a pressão tem se intensificado. O fato é que não é correto afirmar que a Base Nacional Curricular Comum retira disciplinas em currículos, tampouco que consolida a retirada da Filosofia. É tão-somente o argumento da autoridade externa para justificar exclusões.

Pimenta nos olhos dos outros é refresco?

A inconsistência do argumento de Janaína Audino é desmontada fácil e rapidamente. Um levantamento realizado por um de nossos colegas da Rede Municipal de Ensino, com larga experiência de ensino, pesquisa e produção de material didático na área, evidenciou que a grande maioria das escolas privadas de Porto Alegre ofertam Filosofia no Ensino Fundamental: Colégio Farroupilha, Marista Rosário, Marista Assunção, Marista Ipanema, Marista São Pedro, Marista  Champagnat, La Salle Dores, La Salle Santo Antônio, La Salle São João, La Salle Pão dos Pobres, La Salle Esmeralda, Israelita, Santa Inês, Bom Conselho, Sévigné, Santa Cecília, João Paulo I, Maria Imaculada Medianeira, Monteiro Lobato, CID (Centro  Integrado de Desenvolvimento). Se a BNCC consolidasse a retirada dessa disciplina desse nível de ensino, estariam todas essas escolas mal informadas, irregulares? Ou mesmo obsoletas?

A clareza da consequência dessa tomada de decisão ofusca os olhos de quem enxerga o evidente (estudantes, comunidade, docentes, equipes diretivas) e parece que faz fugir do diálogo quem precisa fazer de conta que não vê (atual gestão da SMED). Ora, secretária, a realidade que a SMED, sob seu comando, está construindo aumenta o fosso da desigualdade de oportunidades. Estudantes da rede privada de ensino seguem tendo filosofia como disciplina no Ensino Fundamental, enquanto os da rede pública não terão mais.

Realizar um trabalho pedagógico com estímulos de aprendizagens com conteúdos, métodos e conceitos que são próprios da filosofia para todos estudantes em formação, sejam em que redes estejam vinculados não é condescendência.  É justiça curricular. É justiça social.  É buscar a superação do dualismo perverso de classe que afunda o país no buraco da desigualdade. A filosofia, como componente curricular escolar, num ambiente pedagógico favorável, proporciona o filosofar, que lida com a perguntas e as dúvidas existenciais, debruça-se sobre problemas desde as vivências e experiências, que estimula o desenvolvimento da argumentação oral e escrita, o exercício de análise crítica, racional e circunstanciada, a ampliação da visão e o aprofundamento da leitura das realidades de um modo único, entre muitas outras características muito bem estabelecidas há mais de dois mil anos (!). E o faz isso, especialmente, quando se abre ao contexto social em que a escola onde a filosofia é trabalhada é reconhecido e respeitado. Esse é o trabalho histórico que a Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre faz – por isso, a disciplina é, mais que querida, respeitada pela comunidade escolar. Por isso, a defesa inconteste da comunidade por essa disciplina no momento em que ela é atacada.


Estudantes recepcionaram a secretária e a comitiva da prefeitura no pátio interno da escola com uma manifestação contundente / Divulgação

BNCC: Quando cai a máscara

A afirmação da secretária de que a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) "consolidou a retirada da Filosofia no Ensino Fundamental" foi feita repetidas vezes: no Jornal Zero Hora em 22 de setembro, no site da prefeitura em 23 de setembro, Câmara de Vereadores em 18 de outubro e agora junto aos estudantes. Todavia, no documento da BNCC, segundo levantamento do Coletivo de Professores de Filosofia da RME, encontramos no mínimo 26 ocorrências do termo "filosofia". Gostaríamos de propor à secretária, portanto, que possa identificar em qual passagem podemos ler algo que indique alguma consolidação da retirada da filosofia. Na certeza de que não é possível fazê-lo, o que podemos concluir é que distorções e inverdades têm sido propagadas ao longo do caminho desta “Proposta Pedagógica”, tanto pela secretária quanto pela base aliada de vereadoras/es. Ou seja, as pernas curtas da mentira não conseguem levar essa versão como justificativa para a retirada da filosofia do currículo quando a prova é que a BNCC não proíbe (nem consolida a retirada) o ensino da filosofia. E a escolha, que é marcadamente ideológica, se aproxima de uma tirania quando se sabe que as Redes Públicas e os seus Sistemas, como é o caso da capital gaúcha, assegura a autonomia da rede e legitima sua permanência.

A secretária que não dialoga com ninguém, que organiza e depois cancela a farsesca votação de supostos “cenários de mudanças curriculares num processo viciado do início ao fim, que carimba “consenso” em sua proposta sem nem estar presente com quem diz consensuar, parece estar cada vez mais isolada e enfraquecida. Ignorada por comunidades, conselhos escolares, estudantes, professoras e professores, comunidade acadêmica e sociedade em geral, dado seu caráter intransigente, Audino busca desesperadamente uma saída. Mas, pela porta dos fundos. À boca larga, entre as escolas, e no paço municipal, dá-se como certa sua saída da pasta, devido aos desgastes causados ao governo de Sebastião Melo (MDB) pela autoritária e desastrada condução das mudanças propostas na grade curricular, entre outros desmandos e omissões. Um dos símbolos dessa má gestão, além da proposta, que é antidemocrática no seu todo e o ataque à Filosofia em particular, é estarrecedor:  o descaso e o boicote no custeio da celebrada e premiada Orquestra Villa Lobos, que atendia mais de 300 crianças e adolescentes.

Derrubar os tiranos

Diante disso, a quem pode interessar o fim da Filosofia, senão àqueles e aquelas obcecados pela derrota do pensamento crítico, os amantes da censura e do arbítrio e os distópicos e pragmáticos defensores da derrocada da Escola Pública e do papel do Estado? Não sobram justificativas válidas, sejam legais, sejam político-pedagógicas, sejam de gestão de recursos humanos, para banir do currículo das escolas a disciplina de Filosofia.

Evoquemos por fim, porque o momento não poderia ser mais propício, para isso, um jovem. Um jovem filósofo, humanista, audacioso e brilhante! Etienne de la Boëtie, o grande amigo de Montaigne, no Discurso da Servidão Voluntária, escrito quanto tinha 19 nos, e publicado após a sua morte em 1563. Nele, a pronúncia de um dos mais vigorosos discursos contra os regimes políticos e governos opressores da liberdade. “Para derrubar os tiranos, os povos não precisam guerreá-los. Tomai a decisão de não mais servir, e sereis livres”. É essa lição que deram ontem as/os estudantes à Secretária-doutora Janaína Audino. Porque, diz o ditado popular, mentira tem pernas curtas. E tiranos e tiranas também!

* Professores da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko