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Voltada para estudantes em situação de rua, EPA é premiada por trabalho na pandemia

Projeto "Manual de Sobrevivência da EPA" recebeu premiação nacional por trabalho desenvolvido durante a pandemia

Sul 21 |
Escola tem perfil diferenciado e oferece EJA para pessoas em situação de rua
Escola tem perfil diferenciado e oferece EJA para pessoas em situação de rua - Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Desde 2014, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre (EPA), uma das duas escolas do Brasil voltadas exclusivamente para o atendimento de jovens e adultos em situação de rua, está ameaçada de fechamento pela Prefeitura, mantendo-se aberta graças a decisões judiciais. Apesar da situação adversa, a EPA foi anunciada nesta semana como uma das dez ganhadoras do 24º Prêmio Educador Nota 10, que premia iniciativas de educadores da educação básica em todo o Brasil.

Daniela Cardoso da Silva, coordenadora pedagógica da EPA, foi anunciada na quinta-feira (24) como uma das dez educadoras de todo o Brasil que receberão um prêmio de R$ 15 mil e seguem na disputa para receber o prêmio de Educador do Ano, a ser anunciado em evento ainda sem data definida e que oferece mais R$ 15 mil em premiações. Ela foi escolhida pela elaboração do trabalho Manual de Sobrevivência da EPA, que produziu processos de aprendizagem dos estudantes em situação de rua a partir de suas vivências e com inspiração no clipe da música “Manual de Sobrevivência” (abaixo), do artista porto-alegrense Bruno Amaral.


Daniela conta que a iniciativa começou a ser elaborada em 2021, como um trabalho de enfrentamento da perda de acesso dos professores aos estudantes durante a pandemia. “Não existia a possibilidade de aula remota com eles, e a gente começou a ficar muito preocupados”, diz. Ela conta que, em uma reunião em que estava sendo discutido o tema de como os estudantes estariam sobrevivendo sem a escola, uma das professoras indicou a música de Bruno Amaral, que trata do dia a dia das pessoas na periferia de Porto Alegre.

“Nós pensávamos como atingir e como fazer com que eles tivessem a aprendizagem, mas a partir dessas vivências deles, a partir dessas angústias e medos que eles tinham e tiveram no período da pandemia. E a música acabou me despertando para um projeto maior, de escola, coletivo, o qual a gente deu o nome de Manual de Sobrevivência da EPA.”

O projeto interdisciplinar construído por educadores, estudantes e colaboradores externos se concretizou em ações de cidadania, valorização das experiências de vida dos estudantes, incentivo à expressão oral e escrita e à leitura, além de conteúdos de relevância para eles, como cuidados com a saúde física e mental.

A ideia do Manual de Sobrevivência da EPA, conta Daniela, era criar espaços de escuta das histórias dos estudantes e transformá-las em aprendizagens. A partir das escutas, surgiram trabalhos diversos, como um memorial de fotografias em que os estudantes contaram como era a vida deles na rua, como faziam para se alimentar, etc. Outro trabalho produziu uma releitura do livro Êxodos, em que o fotógrafo Sebastião Salgado acompanhou processos de migrações populacionais por questões políticas, sociais e econômicas em mais de 40 países.


Daniela Cardoso da Silva com professores e estudantes da escola / Foto: Arquivo pessoal

“Esse trabalho falou porque esses estudantes muitas vezes migram do interior para uma cidade maior. Qual é o propósito? Por que isso não dá certo? Por que eles acabam na rua?”, conta, acrescentando que também foram desenvolvidos trabalhos relacionados à educação financeira, saúde mental, oficinas de cinema, entre outros.

Daniela destaca que um dos elementos mais importantes do projeto foi o de partir da experiência de vida dos estudantes para a construção de processos de aprendizagem. “Paulo Freire já falava sobre as experiências vividas, das bagagens que os estudantes trazem. Eu sempre acreditei nisso, até mesmo quanto aluna. Tinha coisas que eu não conseguia entender porque eram muito complexas, mas, quando entravam no meu mundo e na minha linguagem, eu conseguia perceber isso melhor. Eu vejo que isso aplicado ao EJA e pessoas, como eles, que estão há muito tempo fora da escola, percebe-se que se sentem valorizados e aprendem mais, se dedicam mais. Quando eles são escutados e as experiências deles são colocadas como algo que é importante para a aprendizagem, faz com que eles também se sintam mais interessados em aprender”, diz.

Ela explica que o projeto, inicialmente, era de curta duração, mas acabou se estendendo pelo ano de 2021 inteiro e envolvendo, segundo estima, 90% dos cerca de 30 profissionais que atuam na escola, entre professores e funcionário, e dos 115 alunos. “Era para ser um projeto de um mês ou dois, e acabou virando um projeto do ano todo que acabou envolvendo a escola toda, desde o refeitório, o pessoal da limpeza, a horta, que também tem relação com a escola”.

EPA atender jovens e adultos em situação de rua foi um diferencial

Criado em 1998 pela Fundação Victor Civita, o Prêmio Educador Nota 10 tem, segundo seus organizadores (uma parceria do Grupo Abril, Globo e Fundação Roberto Marinho, como apoio do SOMOS Educação, BDO Brasil, Nova Escola, Instituto Rodrigo Mendes e Unicef), o objetivo de reconhecer e valorizar professores e gestores escolares da Educação Infantil ao Ensino Médio de escolas públicas e privadas de todo o país. Nas 23 edições anteriores, foram premiados 251 educadores. Nesta edição, além do trabalho coordenado por Daniela, foram agraciados projetos desenvolvidos nos estado da Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo.

Daniela conta que a inscrição do prêmio partiu do desejo da escola de transformar os trabalhos em um livro arte, com textos dos estudantes, professores e convidados, a ser chamado “Manual de Sobrevivência da EPA”. “A gente não tinha verba para editar esse livro, então a inscrição no projeto foi, primeiramente, para conseguir essa verba”, diz.

A coordenadora pedagógica da EPA brinca que, após sair a notícia de que ela foi escolhida como uma das vencedoras do prêmio, teve até “gente pedindo dinheiro emprestado”, mas esclarece que os recursos serão destinados para a escola. “Eu não ganhei os R$ 15 mil, são da escola, para fazer a edição do livro e algumas melhorias para as quais não temos verba”, diz.

A educadora afirma que, mais importante que o reconhecimento, é a oportunidade que o prêmio dá de visibilidade a um grupo invisibilizado pela sociedade. “Para tu ter ideia, existem apenas duas escolas no Brasil inteiro que trabalham com pessoas em situação de rua, a nossa e uma em Brasília, a Meninos do Bosque. A ideia é que, agora, tendo os nossos minutinhos de fama, a gente possa levar a mensagem de que temos um projeto que dá certo, onde pessoas em situação de rua são ouvidas, tem dignidade, onde tem muitos talentos escondidos. Nós temos ceramistas, temos escritores, temos poetas, enfim, uma ampla gama de profissionais muito qualificados entre os nossos estudantes. Eu sou a porta-voz, mas que eles possam ser ouvidos e, quem sabe, alguns municípios e estados possam pensar um pouquinho sobre isso, que a pobreza tem aumentado, a insegurança alimentar tem aumentado, o número de pessoas em situação de rua tem aumentado, e que elas também são seres humanos dignos e precisam de espaços como o nosso”, afirma.

Daniela ressalta que a EPA é uma escola que tem um funcionamento diferenciado, com os alunos, por exemplo, tendo espaços para tomar banho e lavar suas roupas, e diz que, às vezes, o trabalho ali desenvolvido é confundindo com o assistencialismo, visão da qual discorda. Ela lembra também que a escola já esteve e segue ameaçada de fechamento. A ideia defendida pela Prefeitura em 2015 era de que o espaço da EPA seria destinado para a educação infantil, em razão do déficit de vagas para a área no Centro da cidade, e os estudantes da EPA seriam transferidos para o Centro Municipal de Educação do Trabalhador (Cmet) Paulo Freire.

“A EPA é uma escola que já foi ameaçada de fechamento algumas vezes, inclusive hoje a gente funciona a partir de uma liminar judicial que nos garante o funcionamento e a territorialidade. O prêmio é importante para que a escola resista por mais tempo e para que as pessoas percebam que escolas como a EPA sobrevivem e não é, como alguns dizem, do assistencialismo, mas do educar, do aprender, do fazer com que o nosso estudante possa ter uma vida mais digna, possa ter condições de conseguir um emprego, estar alfabetizado, estar incluído digitalmente, então acho que isso é sempre importante de ressaltar”, afirma.

Edição: Sul 21