Rio Grande do Sul

Opinião

O espírito de Porto Alegre e o poeta da cidade ancestral

"Uma cidade é feita de pessoas. De pessoas de verdade! Sobretudo, pessoas que integram a classe trabalhadora"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Essa cidade celebra, sob a versão oficial, tão eurocêntrica quanto descontextualizada, hoje, 26 de março, 250 anos. Mas, ela é uma cidade enganadora..." - Reprodução

Teria uma cidade um espírito? Ou alma, se assim o quisermos? Quantas encarnações, peles ou camadas há sob uma cidade como Porto Alegre? Morada, refúgio, passeio, passagem. Uma capital representa, via de regra, a síntese possível de um estágio de desenvolvimento das forças produtivas, do patrimônio cultural, da vitalidade da sociedade, das qualidades e dos traços atávicos dos habitantes de um dado território.

Uma cidade, qualquer cidade, é feita de pessoas. De pessoas de verdade! Sobretudo, pessoas que integram a classe trabalhadora. Pessoas que, literalmente, edificam, abastecem, cuidam, limpam, mantém, educam, guardam, prestam serviço público, transportam, padecem no sofrimento inominável e no infortúnio, mas também sonham e lutam por uma cidade possível e necessária: mais humana, mais solidária, menos violenta, na qual direitos básicos sejam respeitados e a riqueza dividida. Cidades não são tão somente silhuetas de prédios icônicos, um pôr do sol, slogans e propagandas com modelos ensaiados.

Provinciana, mas com pretensão cosmopolita. Conservadora, com ares de descolada. Machista e racista até a medula, mas que propaga, como troféu, ter as mulheres (brancas!) mais belas do país. Segregacionista com fleuma de plural e diversa, mais negra e indígena que nos faz crer, insiste em apequenar os troncos principais, e ressaltar um ou outro galho da árvore genealógica: portuguesa/açoriana, alemã, italiana e deslembrar a relação com os hermanos da Bacia do Rio da Prata. Que difunde aos quatro ventos, como fez na semana passada, o dia de São Patrício, padroeiro da Irlanda e dos cervejeiros do 4º distrito, mas silencia e nega recursos para subsidiar a festa negra e popular do Carnaval no Porto Seco.

Essa cidade celebra, sob a versão oficial, tão eurocêntrica quanto descontextualizada, hoje, 26 de março, 250 anos. Mas, ela é uma cidade enganadora...

nem todo menino é deus / nem todo bom é Jesus

nem todo espírito é santo / nem todo morro é da cruz (...)

nem todo domingo é de ressurreição / nem toda pedra é redonda

nem toda chácara é da fumaça / nem toda cidade é baixa

nem toda vila é brasil / nem todo moinho é de vento

nem toda redenção é bom fim / nem toda vila é jardim

Em verdade o DNA de Porto Alegre está fundado numa guerra de conquista colonialista e o etnocida que a historiografia dominante durante muito tempo buscou apagar e, repetida, gerou uma narrativa que se aproxima de uma epopeia mítica. Parece exagero, mas não é. Basta observarmos a reificação incensada dos casais açorianos, com novas homenagens, monumentos e publicações.  

Escorre sangue kaingang na sanga da morte /

Corre sangue tupi no chapéu do sol guarani

dá um tempo malandragem, meu bloco de luta é da laje /

Cantagalo charrua na lomba do pinheiro clarão da lua

O poeta da cidade ancestral 


Richard Serraria é agitador cultural multimídia, pesquisador da cultura afro-gaúcha, músico, roteirista, professor, percursionista, escritor / Arquivo pessoal

Quem escreve, diz, atua, batuca e canta acerca do tema, de modo arrebatador, com consistência intelectual e ginga, sob o ecoar de um sopapo sampleado é o poeta que representa na atualidade a síntese da melhor tradição de uma Porto Alegre originária e ancestral, periférica, densa, profunda, que bebe dos mestres e mestras dos saberes imemoriáveis, griots da cultura popular e contra-hegemônica: Richard Serraria.

Agitador cultural multimídia, pesquisador da cultura afro-gaúcha, músico, roteirista, professor, percursionista, escritor. Um artista inovador, premiadíssimo na nossa aldeia, sapiente na literatura que dá destaque à palavra e a semântica politizada em suas produções, mas não se furta a trazer as gírias das quebradas, o espanholismo fronteiriço, o rap e o yorùbá para a roda. Nele sentimos a presença vívida de Mestre Borel, Giba Giba, Lélia Gonzalez, Mestre Batista, Oliveira Silveira, na melhor tradição que reverencia sua ancestralidade.

Batuqueiro e visceralmente ligado à cultura de resistência da cidade, ele já demonstrou de muitas formas ser capaz de agregar-se e fazer embolamentos, para gerar vida pensante e pulsante! No Bataclã F.C., no Alabê Ôni, em Poesia para todo Sampler, tantos outros projetos. Na carreira solo os CDs: Vila Brasil (2008), Pampa esquema novo (2011), Mais tambor, menos motor (2017).    

Destaco aqui uma produção sua que sob uma nova roupagem, é absolutamente atual.

No topo da playlist: Pachamama Revolução

É inevitável que nesses dias sejamos invadidos por uma trilha sonora sobre Porto Alegre, que se traz algumas preciosidades esquecidas de Bedeu, Hermes Aquino, Da Guedes ou Nelson Coelho de Castro, ou faz sobressair Yano Laitano e Olly Jr, mas será muito provavelmente dominada por Fogaça, Kleiton e Kledir. Para alguns Flavio Bica, para outros Frank Jorge e Marcelo Birck, Bebeto Alves, Vitor Ramil ou Nei Lisboa.

Mas, na playlist de um leitor/leitora do Brasil de Fato RS não pode faltar Pachamama Revolução. De longe a que se destaca pelo mix criativo-subversivo, na qual poesia, canção, oralidade, imagens das pessoas e lugares de uma Porto Alegre real estão ali a colocar em xeque o neofascismo de lá e daqui.

Sintetizado em um clipe maravilhoso, com profundo respeito às autorias e sujeitos, a leitura crítica e multiescalar nos convida a revisitar uma Porto Alegre que precisa questionar a si própria e ao mesmo tempo, e por isso mesmo, se reinventar!

Pachamama em chamas/ Babilônia destruição!

Pachamama me ch@M@ / Vamuarriba revolução!

Simbora então?

A raposa cuidando do galinheiro

Mais do que buscar uma alma imaginária, uma marca artificial ou um slogan para a cidade em uma prancheta de um design, desde um sistema de crenças metafísico, mercadológico-midiático ou político, é preciso buscar os corpos, mesmo os tombados pela violência e o sofrimento atroz, e a materialidade dessa cidade. 

Essa Porto Alegre, sob a gestão bolsonarista de Sebastião Melo (MDB) e Ricardo Gomes (DEM), que vira às costas à centena de milhares de trabalhadores/as e estudantes que dependem de um transporte público de qualidade e taxa acessível para se locomover, à imensa legião de informais, ambulantes, artesãos, reclicadoras/es, povos indígenas, imigrantes africanos e da América Latina e Caribenha, ás trabalhadoras domésticas, idosos, o povo de axé, comunidades quilombolas, população em situação de rua, pessoas com necessidades especiais e pescadores.

Sob a logomarca oficial Porto Alegre, Mais Vida, o que vemos, como uma chibata a nos fustigar, neoliberalismo e necropolítica massacrando, dia a dia, o povo trabalhador, sobretudo periférico, e uma obstinação em sucatear e precarizar os serviços públicos, tentativas de privatizações (DMAE, Carris), arrocho salarial e destruição da carreira dos servidores municipais. De outro lado, aos senhores da casa-grande, verbas polpudas para os conglomerados midiáticos, rapapés aos barões da especulação imobiliária, que se refestelam fatiando a cidade para auferir ainda mais lucros e acumular, cortejo aos fascinados pela South Sumit, stands para vender a cidade para investidores estrangeiros e alavancar startups de descolados sem rumo, com pais endinheirados. O “pacto alegre” voltado à “inovação” e uma nova “marca” da cidade, que o atual Prefeito, RBS e a burguesia tentam nos empurrar, sabemos, são somente manobra diversionista da raposa, preocupada em “cuidar” do galinheiro. 

Três caminhos, uma só direção

A todas e todos que em Porto Alegre vivem, vieram um dia, viverão, por aqui transitam ou mesmo passaram breves temporadas, duas produções que nos convidam a calibrar o olhar, o ouvido, o saber:

O Clipe Pachamama Revolução, lançado em janeiro de 2022 (6,15 min) a partir da música homônima, gentilmente disponibilizado pelo artista Richard Serraria ao Projeto PoAncestral – Muito além de 250, do qual somos partícipes.

 
Muito além de 250!

PoAncestral - Muito além de 250 chegou! Porque são milhares de anos de ocupação indígena... Porque as comunidades indígenas, quilombolas e periféricas tem outras histórias para contar... Agradecemos a disponibilização da obra "Pachamama Revolução" de Richard Serraria

Posted by PoAncestral - Muito além de 250 on Saturday, March 26, 2022

 

Para quem quiser conhecer a poesia de Serraria, o convite a adentrar no Sopaporiki (2020), saiu pela, e traz a cosmogonia do Sopapo, tambor negro sul-riograndense. Resenha de Ronald Augusto.


Sopaporiki (2020), de Richard Serraria, traz a cosmogonia do Sopapo, tambor negro sul-riograndense / Divulgação

E, em especial para colegas educadoras/es, nosso Boletim n. 2, do PoAncestral, no qual nós, trabalhadoras/es em educação, desde nossas organizações, temos a alegria de disponibilizar mais uma produção coletiva com indicativo de recursos didático-pedagógicos voltados às mais de 350 escolas públicas de nossa Capital. Nosso presente aos que lutam, muitas vezes anonimamente, todos os dias, com paixão insurgente, por uma Porto Alegre mais humana, democrática, solidária e justa!

Clique aqui e acesse as versões em .pdf, com conjunto dos materiais e .png (cards)

* Professores na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. Integrantes do Projeto PoAncestral – Muito além de 250  

** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko