Rio Grande do Sul

PoAncestral

Artigo | Terra Livre e PoAncestral

"A demarcação de Terras Indígenas é uma luta pela terra, pela vida, pelos nossos bens naturais e pela soberania do povo"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Poancestral debate em live na noite desta segunda-feira a presença indígena na Capital e no estado - Foto: Alass Derivas | @derivajornalismo

Na Porto Alegre ancestral e originária, intencionalmente ignorada e apagada pelo poder público nas celebrações dos 250 anos de fundação oficial da cidade, o Guaíba não é apenas imagem de cartão postal ou cenário de trechos de uma orla embelezada, voltada, fundamentalmente, à especulação imobiliária. 

A Região Hidrográfica do Guaíba ocupa a porção centro-leste do Estado do Rio Grande do Sul e é formada pelas bacias que drenam direta ou indiretamente para o Delta do Jacuí, formando o Lago Guaíba (do guarani “lugar onde a água se alarga”). Desde o Delta do Jacuí até a desembocadura na Laguna dos Patos são encontrados sítios arqueológicos da tradição Guarani. As aldeias antigas ocupavam os pontais, as ilhas e as baías, buscando locais com grande diversidade ambiental e abrigados da incidência do vento sul, privilegiando também a proximidade das margens do Guaíba.

As pesquisas arqueológicas realizadas entre 1970 e 2010 na região do Lago Guaíba atestam a presença de uma ocupação pré-colonial intensa, associada a 37 sítios arqueológicos da Tradição Guarani, dentre os quais dois apresentam datações entre 610 e 440 anos AP. Por sua vez, nas três áreas de interesse dos Mbyá foram identificados 18 sítios arqueológicos da Tradição Guarani ****. 

Entre 2008 e 2010 foram realizados estudos com o objetivo de produzir relatórios de identificação e delimitação de terras indígenas Guarani na região Metropolitana de Porto Alegre, conjugando dados etnográficos, históricos, arqueológicos e ambientais.


A maior mobilização indígena do país, o Acampamento Terra Livre, começa nesta segunda-feira (4) e se estende até 14 de abril em Brasília / Divulgação

As pesquisas arqueológicas foram integradas às atividades destes relatórios de demarcação a partir de uma demanda das lideranças indígenas, pois os sítios arqueológicos da Tradição Guarani são entendidos pelos Mbyá como as “marcas do caminhar dos avós” que demonstram uma relação de ancestralidade e imemorialidade com o território reivindicado (Baptista da Silva et al., 2010).

Em Porto Alegre foi encontrado um sítio arqueológico Guarani com datação comprovada de 1436, na região do antigo Estaleiro Só, onde atualmente encontra-se um imponente prédio. A coleção atingiu o total de 12.430 fragmentos. As peças estavam abaixo do aterro entre 1,20 metro a 2,30 metros, em alguns pontos mais próximos do Guaíba. Havia cerâmica indígena, como panelas, tigelas para água e outras para comer; pedras lascadas e polidas, além de instrumentos como machados, polidores e raspadores. A coordenação da escavação foi da Arqueóloga Kelli Bisonhim e todas as peças foram encaminhadas ao Museu da PUCRS. Entre os alimentos haviam vestígios de milho, mandioca, abóbora e ariá, uma batata nativa, fonte de aminoácidos essenciais, consumida atualmente nas comunidades ribeirinhas da Amazônia.

A distribuição destes sítios revela uma rica rede de assentamentos que interligava o Delta do Jacuí com os pontais e ilhas, estendendo-se até a desembocadura do Lago Guaíba com a Laguna dos Patos. Na área do Parque Estadual de Itapuã foram registrados 11 sítios arqueológicos da Tradição Guarani, com pesquisas desde 1970. Os sítios arqueológicos do Parque de Itapuã distribuem-se em quatro ambientes: nas praias do Lago Guaíba, nas ilhas, nos morros graníticos (Itapuã, em guarani, significa topo [de morro] de pedra) e nas margens da Lagoa Negra. Nas praias do Lago Guaíba as pesquisas anteriores tinham identificado seis sítios arqueológicos, dos quais dois foram destruídos pela construção das benfeitorias do Parque. As investigações na Ponta da Formiga também indicam a presença de cinco sítios da Tradição Guarani.

Assim como se configuram no presente os assentamentos mbyá, podemos pensar as ocupações pré-coloniais do Guaíba enquanto “ilhas” articuladas por um complexo sistema sócio-cosmológico, compartilhando os recursos do território e conectando-se entre si. Essa pesquisa nos possibilita pensar que a área de captação de um tekoa Guarani pré-colonial poderia incorporar ambas as margens do Lago Guaíba, estendendo-se do Delta do Jacuí ao Pontal de Itapuã.

Entre os sítios Arqueológicos da Tradição Guarani na porção norte do Lago Guaíba localizados entre 1970-2010 destacamos: Ilha Chico Manuel, Lomba do Pinheiro, Lami, Ponta do Arado, Praça da Alfândega, Estaleiro Só, Morro do Coco, Cantagalo, Itapuã.

Observa-se, portanto, que as ocupações guarani pré-coloniais formam um horizonte sócio-cultural e ambiental que é também manifestado atualmente pelos Mbyá-guarani através da presença de aldeias e acampamentos nesta região, como é o caso das Aldeias de Itapuã (Tekoá Pindó Mirim), do Cantagalo (Tekoá Jataity) e de Coxilha Grande (Tekoá Porã) e dos Acampamentos do Lami (Tekoá Pindó Poty), do Petim, de Passo Grande e da Flor do Campo (Baptista da Silva et al., 2008).

Mbyá-Guarani

Atualmente vivem no Rio Grande do Sul em torno de 2.600 Mbyá-guarani. Este coletivo indígena ocupa de forma precária aproximadamente 83 áreas, das quais apenas uma pequena parte possui algum procedimento jurídico de reconhecimento fundiário. Trata-se de uma territorialidade espelhada em experiências de ocupações do passado, atualizadas pela memória, sonhos e indicações xamânicas, privilegiando a escolha por lugares contempladores de um ambiente propício para se viver, onde se façam presentes a mata (Ka’aguy porã) e determinados animais, constituindo um horizonte ecológico-cultural de terras.

A mobilidade contemporânea configura-se a partir de uma conjunção de fatores que a impulsiona e justifica, destacando-se a busca de espaços que ofereçam condições mínimas para que a existência ocorra de acordo com o ideal de vida projetado culturalmente, permitindo “manter-se Mbyá através do caminhar. Portanto, mesmo não havendo mais espaços ideais que permitam uma existência plena e perfeita, através da circularidade é possível maximizar o potencial existente sobre o território e viver de acordo com o modo de ser tradicional (...) caracterizado por uma dinamicidade que recicla e recria o novo a partir da lógica tradicional” (Garlet, 1997: 187) in Dias e Baptista da Silva, 2013.

Sem tekoa (terra) não há teko (modo de ser, cultura)

Relatos das lideranças das comunidades indígenas de Porto Alegre apontam para questões urgentes a serem resolvidas, aguardando encaminhamentos por parte do poder público. O acampamento indígena Mbya Guarani Pindo Poty, segundo relato do Cacique Roberto Ramires é uma área ocupada pelos guarani a mais de 70 anos e especificamente por esse grupo a mais de 16 anos, sendo que nem o GT de demarcação da terra pela Funai foi concluído. Relembra que no ano passado a área foi invadida e que foram necessárias a presença de muitos indígenas parentes de outras áreas para garantir a ação do Ministério Público de garantia da pequena área de acampamento. A comunidade aguarda a demarcação dessa área como forma de garantir a continuidade de sua cultura na antiga terra, comprovada por estudos antropológicos e arqueológicos.

A área da Ponta do Arado também resiste e busca a demarcação de um sítio arqueológico antigo e atual retomada Guarani, área muito importante e local onde a cultura guarani pode sustentar seu modo de ser e bem viver. Terras Indígenas demarcadas são garantias de preservação ambiental e cultural sem exclusão de povos e suas culturas.

Como sempre dizem os guarani: Sem tekoa (terra) não há teko (modo de ser, cultura). Atualmente é urgente a demarcação da Terra Indígena da Ponta do Arado, da Tekoa Pindo Poty no Lami. Essa é a verdadeira forma de celebrar e reparar que demanda o Abril Indígena.

Retomar o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política


Distribuição geográfica dos maiores e menores imóveis que ocupam 25% da área dos imóveis do Brasil / FONTE: IMAFLORA, 2020

A formação social brasileira é marcada pela concentração de terras privadas, desde a colonização, com escravização, expropriação de riquezas, genocídios, violências de toda ordem e exclusão social. O país que tem a maior concentração fundiária do mundo, com imensos latifúndios improdutivos ou sobre o império da monocultura de exportação e do uso de agrotóxicos, sob a condução do agronegócio, é o mesmo que nega direitos de existência das populações indígenas no Brasil profundo.  

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), entidade que organiza as jornadas de lutas em escala nacional, realiza a partir de hoje, 4 de abril,  a 18ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, com a insígnia ‘Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política’, depois de dois anos de atividades online devido a pandemia da covid-19.

A mobilização acontece como uma retomada do ciclo de mobilizações, justamente no mesmo período em que o Congresso Nacional e o governo federal pautam a votação de projetos que violam os direitos dos povos indígenas como o Projeto de Lei 191/2020, que abre as terras indígenas para exploração em grande escala, como mineração, hidrelétricas e outros planos de infraestrutura.

O ano eleitoral, segundo a organização, aponta para “o último ano do governo Genocida” e o Acampamento será marcado por ações simbólicas para evidenciar a capacidade na luta pela demarcação e aldeamento da política brasileira. Na Programação, além do enfrentamento da agenda anti-indígena, a saúde e educação indígena e o protagonismo da juventude são alguns dos temas que farão parte dos debates no ATL.


Com o mote “Retomando o Brasil: demarcar territórios e aldear a política”, a 18ª edição do ATL pretende reunir milhares de representantes dos povos originários / Divulgação

Terra Livre: O que há a aprender com os Povos Indígenas, hoje

As pesquisas arqueológicas na região da grande Porto Alegre, aqui apresentadas a partir dos trabalhos dos pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Prof Dr Sérgio Baptista da Silva, Profa Dra Adriana Schmidt, Prof Dr José Otávio Catafesto, Carmem Guardiola, Rafael Frizzo e dos relatos das lideranças Guarani Cacique Roberto Ramires (Tekoa Pindo Poty - Lami - Porto Alegre - RS), Cacique José Cirilo Pires Morinico (Tekoa Anhetengua - Lomba do Pinheiro - Porto Alegre - RS), Cacique Maurício Messa (Tekoa Ka´aguy Miri - Cantagalo - Porto Alegre - RS), Cacique Timóteo (Tekoa Yjerê - Ponta do Arado - Porto Alegre - RS). Suas pesquisas e lutas, vida e cultura apontam para uma Porto Alegre Ancestral e atual com uma dívida ainda não paga com relação aos povos originários que hoje seguem como importantes aliados de uma Porto Alegre diversa social e ambientalmente


Live: Terra Livre: O que há a aprender com os Povos Indígenas, hoje / Divulgação

Como uma atividade que intencionalmente articula esses trabalhos de pesquisadoras, educadores e comunidades indígenas, da escala local para a realidade do país, deixamos aqui nosso convite a mais um encontro que se realiza hoje, 4 de abril, às 19h, do Projeto PoAncestral, iniciativa em co-promoção da ATEMPA (Associação dos Trabalhadores/as em Educação do Município de Porto Alegre) e CPHIS (Coletivo de Professoras e Professores de História da RME PoA) em parceria com o Canal LUDE Comunicação no Youtube (Programa Professores Diáries), e que tematiza justamente a problemática apontada. Trata-se de mais uma live, em caráter formativo, como atividade de um calendário alternativo aos 250 anos da cidade de Porto Alegre.

Estamos todas/todos em comunhão nessa jornada, com a alegria de podermos participar, seja nos debates públicos, seja nas salas de aulas, seja nas muitas lutas por direitos e justiça. Nessa oportunidade, além da presença de algumas de nós, também teremos o privilégio de ter conosco Küna Yporä Tremembé (Raquel Tremembé), pedagoga, da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA), Secretaria Executiva Nacional CSP-Conlutas, Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), de João Maurício Farias (Professor de filosofia e sociologia na Escola Indígena Anhetengua, Indigenista, Mestre e Doutorando em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), produtor e documentarista, co-roteirista e diretor do filme Guatá) e Cláudia Aristimunha (Historiadora e Coord. Projetos Educacionais/Museu da UFRGS e da Coordenação do PoAncestral), com a condução de André Pares (Prof. Filosofia Munic. POA/Jornalista). 

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PoAncestral - Muito além de 250

* Coordenadora Pedagógica EEIEM Anhetengua, Profa. CMET - Centro Municipal de Educação para Trabalhadores Paulo Freire.

** Cacique Tekoa Anhetengua (Porto Alegre), Liderança Guarani Mbya.

*** Professora Substituta de História (IFRS), Pós-doutoranda (PPGH/UNISINOS).

**** Baptista da Silva, 1992; Carle & Santos, 2000; Gazeano, 1990; Gaulier, 2001-2002; Noelli, 1993; Noelli et al., 1997; Pouget & Thiessen, 2002; Zortea, 1995. Para maiores detalhes sobre estas pesquisas ver Dias & Baptista da Silva, prelo.

Referências

https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/ind%C3%ADgenas-viveram-na-%C3%A1rea-do-pontal-do-estaleiro-em-porto-alegre-antes-do-descobrimento-da-am%C3%A9rica-1.678949

DIAS, Adriana Schmidt e BATISTA DA SILVA, Sérgio. Seguindo o fluxo do tempo, trilhando o caminho das águas: territorialidade Guarani na região do Lago Guaíba. In  Revista de Arqueologia; Vol 26, No 1, 2013.

https://revista.sabnet.org/index.php/sab/article/view/368/267

GASPAROTTO Alessandra; TELÓ, Fabricio (Orgs.). Histórias de lutas pela terra no Brasil (1960-1980). São Leopoldo: Oikos, 2021.

IMAFLORA. Sustentabilidade em debate, n. 10, 2020. Disponível em: https://www.imaflora.org. Acesso em: 04/04/2021.

SOUZA, José Otávio Catafesto de; FRIZZO, Rafael ; GUARDIOLA, C. L. Relatório Antropológico, Histórico e arqueológico Circunstanciado sobre o Assentamento Yjerê de Famílias da Etnia Indígena Mbyá-Guarani na Ponta do Arado, Porto Alegre/RS. 2019.

SANTOS, Raquel Aguiar (Künã Yporä Tremembé). Gestão Ambiental e Territorial e sobre a importância da formação de base como maneira de fortalecer ainda mais as nossas lideranças

https://www.brasildefato.com.br/2021/05/11/comunidade-mbya-guarani-pindo-poty-denuncia-destruicao-de-plantio-em-seu-territorio

https://www.brasildefators.com.br/2021/06/21/apos-3-anos-retomada-mbya-guarani-de-porto-alegre-tem-acesso-a-agua-potavel

https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/acampamento-terra-livre-divulga-seu-manifesto-final

https://apiboficial.org/atl2022

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor e das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko