Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

"Quando entra feminicídio numa redação, entra junto o fantasma da passionalidade, e muda tudo"

As jornalistas Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues falam de seu livro sobre a cobertura dos feminicídios pela imprensa

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Autoras fizeram lançamento presencial do livro "Histórias de morte matada, contadas como morte morrida – a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira" nesta semana em Porto Alegre - Foto: Guilherme Solera

Durante a pandemia os casos de feminicídio cresceram no país. No Rio Grande do Sul, em 2021, foram registrados 97 feminicídios, enquanto em 2020 foram 80, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP). Pelo levantamento feito pelo projeto Lupa Feminista contra o Feminicídio, foram registrados 99 casos em 2021, dois destes de mulheres trans. De janeiro até junho deste ano foram contabilizados 55 casos, e 114 tentativas, de acordo com a SSP. 

A forma como a mídia tratou esses casos é retratada no livro Histórias de morte matada, contadas como morte morrida – a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira, que foi lançado nesta segunda-feira (8), na livraria Cirkula, em Porto Alegre. De autoria das feministas e jornalistas Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues, a publicação de 320 páginas é resultado de uma intensa pesquisa que demonstra a distorção da imprensa na forma de narrar os assassinatos de mulheres por motivo de gênero, condenando a vítima.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS as autoras comentam o resultado deste trabalho e o impacto que tiveram ao acompanhar os relatos feitos pela imprensa. “Não esperávamos que a repetição, a exaustão da voz passiva, principalmente, do suposto, dos verbos no futuro do pretérito, da coisa sempre colocar a vítima em dúvida, o crime em dúvida. Só o que não está em dúvida é o homem, o que está sendo protegido é o homem”, apontam. 

Para as jornalistas, tal passividade contribui para a manutenção do status quo da estrutura patriarcal e misógina que se reflete nas salas de redação, mesmo que sejam ocupadas por 70% de mulheres. “Sabemos que todos vivemos sob o império do patriarcado, do machismo, da misoginia estruturais e de outros aspectos (...) O retrato do feminicídio no Brasil é preto, pobre, periférico, e não é essa vítima que está nas manchetes dos jornais. As mulheres brancas vítimas de feminicídio geram mais comoção”, pontuam. 

As autoras desenvolveram a newsletter @todasmortas, onde dão sequência à análise crítica da mídia sobre os casos de violência contra as mulheres. "Mais de 90% dos títulos, subtítulos e textos que reportam feminicídios têm problemas. A maioria desses, quase todos na voz passiva, merecia uma caneta desmisoginadora, uma correção, um refraseio. Ou seja, faríamos apenas isso do nosso tempo analisando a imprensa na cobertura desse e outros crimes de gênero. Mas tem uns que se destacam pelo absurdo", observam


"O abuso do suposto, os verbos no futuro do pretérito: teria, poderia... nunca é nada concreto" / Foto: Guilherme Solera

Abaixo a entrevista completa 

Brasil de  Fato RS - Queria que vocês nos contassem como surgiu a ideia. A produção começou durante a pandemia?

Niara de Oliveira - Foi durante a pandemia, mas na verdade já fazíamos esse trabalho de analisar e refrasear títulos e matérias sobre crimes de gênero, não só feminicídio, numa comunidade virtual chamada Não foi Ciúme, que iniciou em 2015. Lá éramos em torno de 10 feministas, nem todas jornalistas, mas a maioria. Fazíamos esse trabalho cotidianamente, nem sempre eram as mesmas que estavam disponíveis, então quem via o comentário que chegava, quem via a matéria que chegava, quem se indignava com a matéria que tinha visto na imprensa, no portal, publicava. E já sugeria o refraseio, uma espécie de caneta riscando e reescrevendo. 

E a comunidade deu muito certo, ao ponto de bombarmos rapidamente e as pessoas começarem a mandar esses relatos também, indignando-se junto com a gente, dizendo: olha o absurdo que é esse título. E fomos fazendo esse trabalho durante muito tempo. Só que é pesado fazer isso cotidianamente, porque tu está em contato com o crime, tu está em contato com a mulher que morreu, que foi estuprada, que foi assediada e continua sendo desrespeitada, enfim. E aí as outras foram se afastando, porque a vida vai afastando, a vida vai mudando as coisas, e ficamos eu e a Vanessa, e por fim só a Vanessa. 

Depois, quando veio a pandemia, estávamos meio já isoladas em casa, e começamos a conversar, pensamos: por que não fazer um material que ficasse? Um material que não dependesse desse meio das redes sociais, a comunidade parou de bombar, paramos de fazer, e como se tivesse acabado o trabalho, embora esteja lá o registro. E aí pensamos, pensamos, fomos conversar com a editora, e começamos a pensar a estrutura do livro. 

Sempre que a imprensa pode, ela cata nas redes sociais da vítima uma foto mais sensual, um decote, um batom vermelho, uma foto mais provocante. E isso faz parte dessa narrativa de que a vítima é culpada ou pelo menos corresponsável pela sua morte.

O que mais nos indignava com relação aos crimes de gênero narrados pela imprensa era justamente o feminicídio, porque a mulher já está morta, ela não tem como se defender, não tem como gritar, não tem como dizer nada. E ela está ali corresponsabilizada pelo crime que a matou. E, às vezes, exposta de um jeito muito desrespeitoso, porque sempre que a imprensa pode, ela cata nas redes sociais da vítima uma foto mais sensual, um decote, um batom vermelho, uma foto mais provocante. E isso faz parte dessa narrativa de que a vítima é culpada ou pelo menos corresponsável pela sua morte. 

Isso vai indignando, saturando. E aí decidimos focar no feminicídio, e escolhemos o período da campanha Quem ama não mata, até a campanha de agora, Nem Pense em me Matar do Levante Feminista, então temos 40 anos de análise de feminicídio. Escolhemos alguns casos, excluímos os mais famosos já muito debatidos, como os casos da Ângela Diniz, da Daniela Peres, que são muito TV. O único caso dos mais famosos que está no livro é o da Eloá Pimentel, que teve um desfecho praticamente na frente das câmeras. Fora esse, escolhemos alguns famosos, mas muitos casos de mulheres anônimas, que quase ninguém ficou sabendo, tão graves quanto, tão desrespeitosos quanto na narrativa. É para dizer que é com todas, esse desrespeito é geral, não é nem só com as famosas, nem só com as pretas que são as maiores vítimas, mas geral, é uma forma de narrar ruim e antijornalística. 


A jornalista e feminista Télia Negrão faz a apresentação no lançamento do livro / Foto: Guilherme Solera

BdFRS - Vanessa, para ti como foi esse processo de começar a pensar o livro e buscar essas informações? 

Vanessa Rodrigues - Na verdade quem está no ativismo já está em contato com esses assuntos, com esses temas, e com essas análises, essas reflexões desde sempre. Mas, assertivamente, eu já fazia esse trabalho, como a Niara adiantou, desde 2015, com idas e vindas, se afastando. Isso faz com que você vá treinando o seu olhar. 

Ainda que nem jogássemos na nossa comunidade e tudo, o assunto estava ali, depois que você abre o seu olhar, nunca mais você consegue ler as manchetes e os títulos da mesma maneira, que é também o impacto que esperamos que tenha nas pessoas. Nunca mais você vai conseguir ler sem prestar atenção nas questões que apontamos. 

Concretamente na produção do livro, conversamos no fim de 2020, e a produção do livro aconteceu toda durante 2021, entre escrita, revisão, edição e publicação. Começamos em janeiro e lançamos o livro em dezembro de 2021. 

Foi um processo duro, primeiro que vivíamos sob a questão da pandemia, com todas as angústias, e dores, e incertezas. Inseguranças e raiva com esse governo que vivemos, da maneira como esse governo lidou com a pandemia. Tudo isso nos mexia obviamente, emocionalmente, psicologicamente, nos dava muita insegurança do futuro, e sobre o presente. E  lidar com este tema, mergulhar com todas essas fragilidades emocionais, mergulhar neste tema que também nos afeta sob vários aspectos como ativista, como militante, como mulher. E de maneira remota, eu em São Paulo, a Niara em Pelotas, como dissemos, o nosso primeiro contato presencial foi ontem, no lançamento do livro aqui em Porto Alegre. Mas fizemos todo esse trabalho durante um ano, nos falávamos todos os dias, e quando uma precisava de um respiro, a outra cobria. Tivemos esses cuidados, com muita delicadeza e muita consciência de também precisávamos nos cuidar, a si mesma e cuidar uma da outra no processo de escrita do livro.

Só que não está em dúvida é o homem, o que está sendo protegido é o homem

BdFRS - O que tu traria de mais impactante dessas histórias, na tua visão como jornalista?

Niara - O mais impactante é que iniciamos o livro meio que sabendo o que ia fazer, sabendo o que íamos escrever, sobre o que íamos analisar e criticar. Mas encontramos muito mais. Não esperávamos que a repetição, a exaustão da voz passiva, principalmente, do suposto, dos verbos no futuro do pretérito, da coisa sempre colocar a vítima em dúvida, o crime em dúvida. Só que não está em dúvida é o homem, o que está sendo protegido é o homem. 

E não fazíamos ideia sobre isso, eu fiquei bastante impactada quando juntamos todos os casos, e olhamos os títulos. E foi aquela coisa: mulher é encontrada morta, mulher é morta, mulher é encontrada morta, mulher é morta… foi nos sufocando a ponto da fazermos um capítulo inteiro só com manchete do Brasil inteiro, de todos os estados. Para dizer: não é só de uma região, não é só do sudeste, não é só do nordeste, não é só do sul, é em todos os estados que a imprensa relata feminicídio do mesmo jeito, e é antijornalístico. 

Do ponto de vista que aprendemos na faculdade, a questão da pirâmide invertida, aprendemos que os títulos precisam ser na voz direta, objetivo e simples, e eles precisam dar conta do fato. Quem lê o título e o subtítulo e vê a imagem, precisa ter ideia do fato. 

E aí quando tu vê um título narrado na voz passiva, mulher é encontrada morta, ele não está te dizendo que foi um feminicídio, ele não está dizendo que essa mulher foi assassinada. E aí tem uma mulher sensual na foto. E aí o subtítulo diz que: pode ser que o ex-marido alguma coisa, ou coloca a possibilidade do feminicídio na voz da família da vítima, nem mesmo na investigação da polícia. Que forma é essa de narrar? 

Ela não faz parte daquilo que aprendemos como se faz, como que se investiga um fato e como que se narra esse fato. Não é objetivo, não é direto, não é simples. Na verdade é uma volta, faz toda uma novela pra não dizer o que é, e ainda corresponsabiliza a vítima pelo crime que a matou. 

Vanessa - O próprio termo feminicídio, faz pouco tempo que a imprensa começou a usar...

Niara - Sim, é um nome novo para um crime muito antigo, que em algum tempo foi inclusive autorizado judicialmente, as mulheres serem assassinadas pelos ex-maridos, pelos maridos. 


"O olhar humanizado é fundamental" / Tomaz Silva - Agência Brasil

BdFRS - Legítima defesa da honra. 

Niara - Sim, essa questão da legítima defesa da honra chegou até 2021, sendo permitido que advogados de defesa de feminicidas usassem essa tese, que não existe no código penal brasileiro. Uma tese inexistente era sacada do nada pelo advogado de defesa para defender um feminicida, e culpando a vítima pelo crime. Então quem é que estava em julgamento, era o assassino ou era a vítima?

É a mulher que está sempre em julgamento. Essa repetição trouxe isso à tona. E aí a revolta que já tínhamos multiplicou, ficamos muito indignada com isso. E trazemos muitos casos atuais, depois da lei do feminicídio. E a lei do feminicídio fala sobre mulheres sendo assassinadas por serem mulheres, e com a qualificação daquilo que caracteriza uma mulher como mulher. 

Então estamos falando de ódio, de desconstituição, de misoginia, e de um agravante do homicídio e um crime que é cometido com muitos tiros, com muitas facadas, com muita violência. Os governos e as secretarias de segurança pública dizem que não classificam feminicídio como morte violenta. Inclusive temos visto seguidamente manchetes que dizem: a redução de mortes violentas, mas aumento de feminicídio. Como assim feminicídio não é violento? A Mariele morreu com cinco tiros no rosto, a Ângela Diniz com quatro tiros no rosto, a juíza Viviane do Amaral com não sei quantas facadas, é sempre muito agressivo. É muito ódio.

E aí nos relatos, inclusive de matérias feitas por veículos que pretendem romper com essa forma desrespeitosa de narrativas, lá pelas tantas dizem: ainda não se sabe a motivação do crime. Como não se sabe a motivação do crime? Qual motivação? Qual motivação está sendo procurada? Que a vítima deu algum motivo pra ser assassinada? Tem motivação para ser assassinada? Existe um motivo aceitável pra assassinar alguém, para matar alguém com tanta agressividade, com tanta violência? 

Fomos percebendo essas coisas todas, o abuso do suposto. Teve um relato que nós encontramos cinco supostos em uma mesma matéria, supostamente alguma coisa. Cinco suposto na mesma matéria. E aí tem aquela questão nas narrativas nos textos jornalísticos não repetir palavras, usar outras, o suposto pode repetir. O abuso do suposto, os verbos no futuro do pretérito: teria, poderia... nunca é nada concreto. 

É como se a imprensa facilitasse demais a vida dos advogados de defesa dos feminicidas

Vanessa - A condenação do ato. 

Niara - É colocar em dúvida o ato, sempre se coloca em dúvida o ato. Diante de um cadáver se coloca em dúvida até o crime, quando a vítima é mulher é sempre assim. E aí tem a voz passiva, o abuso do suposto, os verbos, as justificativas antes do relato do fato: por ciúme, por não aceitar o fim do relacionamento, e depois vem o fato. 

Então é como se a imprensa facilitasse demais a vida dos advogados de defesa dos feminicidas. Ela não está relatando o fato, mas tentando achar desculpas para o assassino e está já antecipando o julgamento da vítima.  

Vanessa - Que é a nossa cultura, essa visão patriarcal da sociedade, que já vem lá desde a inquisição, desde sempre, condenando a mulher simplesmente por ser mulher. 

O retrato do feminicídio no Brasil é preto, pobre, periférico, e não é essa vítima que está nas manchetes dos jornais 

O  que explicitamos no livro, além de toda a análise de linguagem, na análise discursiva, é que todos estamos subordinados ao machismo misógino estrutural. Por exemplo, não salientamos, não informamos o gênero do profissional que escreveu a matéria que a estamos analisando e criticando. Porque sabemos que ainda que o chão da redação, ainda que as redações sejam na maioria das vezes ocupadas por mulheres, quase 70% dos jornalistas que estão trabalhando em redação são mulheres. Sabemos que todos vivemos sob o império do patriarcado, do machismo, da misoginia estruturais, e de outros aspectos. Porque aí várias coisas transversalizam, o racismo estrutural transversaliza, o preconceito de classe transversaliza, o preconceito geográfico transversaliza.

Então fazemos essa leitura, principalmente analítica com relação ao uso da voz passiva e como isso corresponsabiliza a vítima, colocando a mulher como agente da ação. Mas aí quando você vai fazer as outras análises, os outros aspectos a serem analisados, identificamos indignação seletiva. 

O retrato do feminicídio no Brasil é preto, pobre, periférico, e não é essa vítima que está nas manchetes dos jornais. As mulheres brancas vítimas de feminicídio geram mais comoção, principalmente se elas estiverem no sudeste, principalmente se elas forem de classe média, média alta. São recortes reiterativos da sociedade que a gente vive, e que reiteram os preconceitos estruturais que vivemos, racismo estrutural, misoginia estrutural, machismo estrutural, preconceito de classe, preconceito geográfico, e por aí afora. 


"Falta que o Estado como um todo, e a sociedade como um todo entenda que violência contra a mulher é um crime público" / Foto: Guilherme Solera

BdFRS - No lançamento tu falaste que muitas vezes os filhos dessa mulher acabam indo morar com a família do pai, do feminicida. 

Vanessa - Temos poucos dados estatísticos relacionados aos órfãos do feminicídio, isso é um debate muito recente, de um ano pra cá, no máximo dois anos pra cá. Ninguém olhava para o que acontecia com essas crianças e esses adolescentes. Porque a grande maioria das vítimas são mulheres jovens, e mulheres pobres, que são as principais provedoras da casa, mais de 50 % dos lares são sustentados por mulheres. 

Quando essa mulher é assassinada, quando o ex-companheiro ou companheiro dela assassina essa mulher, o que acontece com essas crianças? Quem assiste essas crianças financeiramente, pedagogicamente, psicologicamente? Qual é o apoio? Muitas vezes elas vão acompanhar toda a história de violência doméstica à qual aquela mulher passou, porque o feminicídio é o extremo de todo um histórico de violência doméstica. Ou ela presencia o feminicídio da própria mãe, como as filhas da juíza lá no Rio de Janeiro, e que no mesmo dia uma outra mulher também foi assassinada pelo ex-companheiro no interior da Bahia, com as mesmas características, na frente das filhas pequenas. Ela era uma mulher jovem, ela não tinha nem 30 anos, as filhas acho que tinham 5 e 3 anos e presenciaram o feminicídio da mãe. 

Então o que acontece com essas crianças? Por pesquisas ainda não tão aprofundadas? Mas estão acontecendo, pesquisas feitas na academia, que precisam de vários aprofundamentos. O que se aponta é que a grande maioria dessas crianças e desses adolescentes órfãos de feminicídio vão morar com a família paterna, com a família do feminicida da própria mãe. 

BdFRS - Niara, o livro tem uma diagramação super leve, te convida a ler, a disposição as manchetes, das imagens, a própria questão do texto espaçado, enfim. Como foi pensada essa produção? 

Niara - Temos que agradecer a nossa designer, a designer editora, que é a Sônia Alice, que é espetacular. Ela leu o livro, enquanto ela foi trabalhando ela foi ganhando, ela sabia que o tema era pesado e que tinha a tarefa de dar essa leveza pra diagramação. Era muito texto, muito volume de informação, e uma informação muito triste, muito deprimente, muito pesada. E ela cumpriu perfeitamente o papel. A ideia realmente era essa, que a diagramação não fosse um tijolo e que as pessoas realmente tivessem vontade de continuar lendo, porque é difícil, aí imagina se a diagramação também não ajuda. Mas ela cumpriu perfeitamente o papel dela. 

Vanessa - Eu acho também tem uma prática nossa como profissionais, além de sermos jornalistas, mas atuamos muito na web, temos uma prática de linguagem de web, são textos mais curtos, são parágrafos mais curtos. Sabíamos também que era importante, para que a leitura ficasse mais fluida, tivesse um emparelhamento que fosse agradável, porque é muito pesado realmente. Tivemos muito esses cuidados assim estéticos, para que o livro fosse realmente lido pelas pessoas. 

O Brasil é quinto país que mais mata mulheres cis e o primeiro que mais mata transsexuais e travestis no mundo

BdFRS - Vocês trouxeram um capítulo: humanizar a vítima, ouvir mais e se diversificar olhares. E a minha pergunta é justamente essa: Como o jornalismo pode ajudar nessa desconstrução do patriarcado, uma vez que estamos vivendo na verdade uma pandemia de feminicídios no país. 

Niara - O quinto país que mais mata mulheres, não sei se nós já não estamos ocupando o quarto lugar, porque os últimos dados de feminicídio no Brasil são assustadores. 

Vanessa - São três mulheres por dia.

Niara - Mais ou menos isso. Mas a princípio, ainda oficialmente é o quinto país que mais mata mulheres por serem mulheres, de feminicídio principalmente, não de morte no geral de mulheres. 

Vanessa - É o quinto que mais mata mulheres cis e o primeiro que mais mata transsexuais e travestis no mundo. 

Niara - E aí a gente vai somar isso aos feminicídios, que os dados não juntam essas vítimas. A Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, por exemplo, não soma os transfeminicídios aos feminicídios. A Lupa feminista do Levante é quem faz isso, e vai lá fazer esse recorte e pontuar isso. 

Vanessa - E a imprensa raramente trata o homicídio de mulheres trans como transfeminicídio, embora a lei diga que a lei do feminicídio também contempla as mulheres trans e travestis. Porque se é uma condição de gênero, se elas se identificam como mulheres, é uma qualificadora que lhes abarca também. Mas muito raramente a imprensa trata, e o próprio juiz. Muito raramente um homicida de uma mulher trans é julgado com qualificadoras de feminicídio, mesmo tendo reconhecimento do STF. 

Aí se o Ministério Público, se o próprio juiz, se o próprio feminicida não é julgado como um feminicida de uma mulher trans, a imprensa não vai fazer isso, ela se quer vai colocar isso em questão. O que a gente achou de matéria de transfeminicídio, de uma maneira mais voluntária, foi a imprensa alternativa, a imprensa progressista, imprensa independente, e algumas matérias de grandes portais, mas a partir da declaração do delegado, de um juiz, dizendo: foi um caso de feminicídio. 

Nós temos até hoje identificado apenas um caso de um feminicida de uma mulher trans, que foi julgado qualificadora, e uma tentativa de feminicídio também com uma mulher trans, também o criminoso foi julgado como um potencial feminicida. O resto todo é tratado como homicídio de trans e travestis. 


"Temos poucos dados estatísticos relacionados aos órfãos do feminicídio, isso é um debate muito recente" / Foto: Guilherme Solera

A não ser que o jornalista não reconheça mulheres como humanos, e não é exatamente raro essa situação, tem que ter um olhar diferenciado, tem que entender que precisa olhar para a questão de gênero

Niara - Essa questão da humanização da imprensa, essa parte está na conclusão. Vamos apontar o que a imprensa pode fazer já que corrobora com esse absurdo e com esses dados que vivemos. O olhar humanizado é fundamental, primeiro que é um compromisso ético do jornalista pelos direitos humanos. Então a não ser que o jornalista não reconheça mulheres como humanos, e não é exatamente raro essa situação, tem que ter um olhar diferenciado, tem que entender que precisa olhar para questão de gênero. Esse é um crime diferente, que isso não é um homicídio normal, que é uma qualificadora, e o tanto de violência que transborda desses casos. 

É preciso ter um olhar humanizado, precisa cuidar na escolha das palavras, na escolha dos termos, na imagem, e precisa não ter medo de relatar um fato como ele aconteceu, essa é a parte fundamental. E claro, nós entrevistamos jornalistas da grande imprensa, entrevistamos um editor de jornal, fomos investigar, saber aonde que está esse manual de redação de jornalismo que não está publicado? É uma ordem dentro da redação redigir desse jeito, é uma fórmula pronta, de onde que ela vem? Que na faculdade não está, nos manuais dos grandes veículos não está, onde está isso? Inclusive os manuais são corretos, os manuais falam sobre a questão de como narrar crimes, e se seguissem o manual por exemplo, estaria tudo ok.

Mas não, eu costumo dizer sempre que quando entra um feminicídio numa redação, entra junto o fantasma da passionalidade, e muda tudo. E a forma como se redige, e a forma como se apura muda. E aí passa-se a pensar na vítima como corresponsável pelo crime, e se fica dando volta pra relatar esse fato. 

O caso da Tatiane Spitzner, por exemplo, que foi concluído em maio do ano passado, quando o marido foi condenado finalmente, ela ficou para sempre nas matérias do UOL, como mulher encontrada morta, para sempre, encontrada morta. Ele nunca foi narrado como a mulher assassinada, nunca, e olha que aquele caso além de ser horrendo, ele foi filmado, tinha testemunha dos vizinhos vendo ela ser jogada, ele recolheu o corpo, ele levou ela desfalecida. Fora a agressão anterior dentro do elevador, ele levou ela desfalecida pra dentro do elevador, para dentro do prédio novamente, ele fugindo. Não faz sentido narrar na voz passiva. E a impressão que dava quando começamos a ler a matéria, a primeira, a que deveria narrar o fato, é que ela caiu, foi um acidente, ela foi encontrada morta, como se não tivesse ocorrido violência, não tivesse ocorrido um crime ali. 

A escolha das palavras, a escolha como, e aí tem essa coisa de relatou a primeira vez de um jeito, segue se relatando do mesmo jeito, não se muda isso. É muito parecido com o caso da Cláudia Ferreira, que entrou para história como o caso da mulher arrastada. Ela está no livro como o caso de feminicídio político, ela entrou como a mulher arrastada. Ela nunca teve nome pela imprensa, e até bem pouco tempo atrás, o caso foi de 2014. Bem pouco tempo atrás, teve uma espécie de desfecho o caso, com relação aos PMs, e ela de novo, a grande imprensa comentou como a mulher arrastada. A desumanização, a desqualificação dela não é só como mulher, é como gente. Então assim, não é possível que a imprensa não se repense, não reveja os passos, não reveja o que faz. 

Vanessa - Esse caso dela é um caso emblemático com relação aos órfãos do feminicídio também, porque ela era mãe de quatro filhos biológicos e ela criava quatro sobrinhos. Como ela foi assassinada, quem a matou foram os PMs, que jogaram o corpo dela, ela foi sendo arrastada, é uma história realmente pavorosa, o Estado teve que pagar uma indenização pra família. E aí pagou uma indenização, os filhos foram contemplados pelo minha casa minha vida, os quatro filhos biológicos. Sobre os sobrinhos não se sabe, porque como não eram filhos biológicos dela e não tinham processo de adoção, o que aconteceu com esses sobrinhos? Qual foi a assistência que eles tiveram? E ela era provedora desses sobrinhos, ela cuidava, ela era mãe deles efetivamente, o que aconteceu com eles? Não se sabe, ninguém se fala, não se fala sobre isso. 

Niara - E como que a imprensa não pesquisa isso? Como que a história da vida pessoa não interessa? Não são detalhes, é a história da vida, e não teve ninguém que fosse lá pesquisar, não teve um repórter que tenha subido aquele morro em Madureira pra conversar com a família, e saber quem era a Cláudia, quem era a mulher arrastada? E como ficaram os filhos dela? Ninguém teve curiosidade de saber quem era a mulher arrastada?

Vanessa - E como que eles se sentem sabendo que a mãe deles foi eternizada como a mulher arrastada, uma mulher jovem, ela não tinha 40 anos quando ela morreu, quando ela foi assassinada efetivamente. 


"O Estado entra nas comunidades indígenas, nas aldeias, de uma forma extremamente truculenta" / Foto: Giorgia Prates

BdFRS - Vocês trazem aqui também a história da Daiane, que apresenta um outro elemento que é a questão indígena e do preconceito, e o assassinato dela foi um assassinato selvagem.

Vanessa - Selvagem, e ainda não temos noção de todos os detalhes. É uma cobertura horrível, que absolutamente a culpabilizou, porque ela estava numa festa, porque ela era festeira, que ela gostava de dançar. E era uma menina de 15 anos. 

Tem uma das matérias que a gente analisa sobre o feminicídio da Daiane, que começa descrevendo como ela era... E o que poderia ser uma descrição de uma adolescente absolutamente normal, que gostava de sair, que queria se divertir, que queria viver, é descrito como: tá vendo, se ela não gostasse de ir pra festa, não gostasse de ir para os bailes, não tinha sido assassinada. 

Agora o caso, esse capítulo é um capítulo também que estávamos sem saber como tratar, não sendo nós mulheres indígenas, sendo mulheres não-indígenas, quer dizer, como você lida com a questão não só do lugar de fala, mas com a violência doméstica. Como são mulheres indígenas, tem muitos aspectos a se considerar. O próprio movimento feminista de mulheres indígenas diz que a Lei Maria da Penha não as contempla, porque é difícil chegar nas comunidades, nas aldeias. E o Estado entra nas comunidades indígenas, nas aldeias, de uma forma extremamente truculenta. 

Então as aldeias também se protegem porque também não querem intervenção do Estado lá. E como é que a gente não coloca este assunto, não faz a análise, mas contemplando todas as suscetibilidades que envolvem as populações indígenas no Brasil. E aí fizemos o que a gente achou que seria o mais correto, colocar tudo na voz dessas mulheres, as mulheres indígenas. E capturamos os conteúdos, o pouco de pesquisa que tem, que sequer aparece nos dados estatísticos, elas entram nos números de mulheres não-brancas.

O caso da Daiane foi um caso que capturou muito, que existe um movimento organizado de mulheres indígenas, ativistas, feministas, que temos que apoiar, como mulheres não-indígenas. O caso Daiane trouxe isso para pauta. Está junto com outros dois feminicídios, um feminicídio que foi mais doméstico, que foi o companheiro, e um caso horrível que foi de uma menina de 11 anos, foi um estupro coletivo e um deles era o tio dela e tudo mais. 

A primeira coisa é se questionar, por que a violência contra a mulher é o único crime que não é público?

BdFRS - No domingo passado se comemorou 16 anos da lei Maria da Penha, uma lei que até hoje é contestada, ridicularizada. Como que trabalhamos essa questão? Nós jornalistas que estamos buscando trabalhar de outra forma, com uma outra visão.

Niara - Eu acho que a primeira coisa é se questionar, por que a violência contra a mulher é o único crime que não é público? Que não é investigável pela polícia? Por que violência contra a mulher, que aí vai de tudo, desde a violência psicológica, violência emocional, violência patrimonial… por que que todos esses crimes classificados como violência doméstica, que vão num crescente até chegar em feminicídio, como que esses crimes não são investigáveis por si? Por que é tratado como crime menor? Somos menos cidadãs? Somos menos humanas? É isso que a lei Maria da Penha vem fazer como principal, afora a questão de tirar da invisibilidade todas as violências, ela vem trazer isso. 

Essa discussão especificamente, sobre o crime não depender da própria vítima fazer a denúncia, ou seja, o crime privado, um crime particular, um crime menor, não um crime público, ainda ficou seis anos sendo discutido pelo STF, porque ele foi contestado. O artigo da Lei Maria da Penha que diz que qualquer pessoa pode denunciar ficou em dúvida, ficou sendo discutido. Seis anos depois da promulgação da lei Maria da Penha é que finalmente isso veio à tona, tirou força, inclusive dessa questão, que era o grande diferencial. 

Como não vai ser classificado como crime público? Se a gente sair na rua... Se tu descer na rua e agredir alguém, um estranho, é um crime público a ser investigado, a polícia tem o dever de investigar. Se tu sair e destruir um carro, vai ser investigado. Se tu roubar um celular, tem que ser investigado. Mas se matar uma mulher não. Essa é a questão, e por mais que isso esteja valendo na Lei Maria da Penha, esse artigo esteja valendo, ainda assim a polícia se nega e o Ministério Público também. 

A lei Maria da Penha é uma lei que pegou, popular entre as mulheres, muitas mulheres só denunciaram depois da promulgação da lei. Tomaram coragem de fazer a denúncia, porque agora tinha uma lei que contemplava tudo isso, não era um artigo perdido aqui, outro lá, sobre a questão da violência. Mas ainda falta que o Estado como um todo, e a sociedade como um todo entenda que violência contra a mulher é um crime público, investigável, que precisa ser cobrado, e que não é uma coisa menor, não é um crime privado. 

BdFRS - Vocês lançaram o livro agora em Porto Alegre. Tem alguma outra agenda? Como vocês estão pensando em fazer a divulgação do livro?

Niara - Fomos convidadas para escrever um artigo numa revista acadêmica, e vamos esperar sair pra fazer a publicidade disso. Mas temos um convite prévio já para dar uma aula em São Paulo, assim como fizemos de manhã na Famecos. Então provavelmente a nossa próxima agenda será São Paulo.

Vanessa - Lembrando que lançamos o livro em dezembro, a primeira impressão foi em dezembro, todo o lançamento virtual por causa da pandemia. E e aqui em Porto Alegre, já com a segunda impressão do livro, foi nosso primeiro evento presencial, e como gostamos de contar, a primeira vez que nos encontramos presencialmente também, a Niara e eu. 

BdFRS - E ele tá a venda na Cirkula em Porto Alegre, e no site na lojinha da editora, da Blocos Editora. Vocês têm também um blog que estão trabalhando agora.

Niara - É uma espécie de newsletter, chamada Todas Mortas?, que é uma pergunta, é para instigar realmente, foram realmente todas mortas, encontradas mortas? Apareceram mortas? Não é mortas, são assassinadas. Então fazemos essa provocação já no nome da newsletter, desse trabalho, é uma espécie de continuidade do livro, é uma atualização cotidiana, semanal, que fazemos essa entrega de conteúdo. 

Não exatamente o livro, porque não tem como ficar repetindo cada caso de feminicídio que aparece, mas de vez em quando fazemos a análise completa, exatamente como fizemos com o livro. Mas também abordamos outros crimes de gênero, e tentamos sempre pautar o assunto que tá em alta no momento com relação à questão de gênero, dos crimes de gênero. Já falamos sobre a questão do aborto, já abordamos de outras formas, porque isso também tem a ver com a misoginia estrutural. A nossa ideia não é ficar vinculados só à questão do feminicídio, mas sobre manter em alta essa questão da crítica à imprensa, de como a imprensa se comporta com relação aos crimes de gênero, porque esse é o ponto.

Assista o evento de lançamento do livro:

 


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Edição: Marcelo Ferreira