Rio Grande do Sul

Quilombos Urbanos

“Era maravilhoso viver aqui, até a gente se autodeclarar, aí vieram os assédios e perseguições”

Desde 2016 o Quilombo dos Alpes, localizado no alto de um morro de Porto Alegre, aguarda sua titularização definitiva

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O Quilombo dos Alpes está localizado entre os bairros Glória, Cascata e Teresópolis - Foto: Clara Aguiar

“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’.”
Conceição Evaristo.

Com pouco mais de um século de existência, o Quilombo dos Alpes, maior quilombo urbano em termos de territorialidade de Porto Alegre, vem resistindo pela manutenção do seu espaço. Localizado entre os bairros Glória, Cascata e Teresópolis, o quilombo fica em uma área com uma vista privilegiada da capital gaúcha. A história que começa com a matriarca Edwirges Francisca Garcia da Silva é marcada pela especulação imobiliária, invasões e a lentidão pela sua titularização definitiva. De um território de 120 hectares, hoje o Alpes possui cerca de 58, onde moram cerca de 120 famílias. 

Por volta de 1920 a matriarca Edwirges e seu segundo marido, Antonio Ramos, saíram fugidos de uma fazenda da cidade de Charqueadas, após Antônio ter quebrado a guampa de um boi. Temendo represálias, eles vieram caminhando até chegar a Porto Alegre. Se instalaram em uma das áreas mais altas da cidade, entre o Morro da Glória, com altitude de 279 metros, o Morro do Teresópolis, 262 metros.

“Ela contava que quando chegou aqui, estava sem o couro dos pés embaixo, de tanto que caminhou. Quando ela chegou, nada tinha, não morava ninguém, era só mato, era só ela e uma onça que atacava as pessoas. Ela vem com um bebezinho, e esse bebezinho, que é o tio Wilson, deixa todo um legado para nós”, narra Rosângela da Silva Elias, a Janja, 54 anos, neta de Edwirges. 

Nascida entre os anos de 1890 e 1895, Edwiges foi casada três vezes e teve cinco filhos. Wilson, João Carlos, Arminda, Paulo e Jane. Para ganhar o sustento trabalhava como cozinheira nas casas do bairro. Ela faleceu em 1998, aos 108 anos. 

Até o ano de 1896, o acesso ao local só era possível por poucas vias, quando foi inaugurado um trecho da linha de bondes da Cia. Carris Porto-Alegrense, com seu ponto terminal neste arraial. A delimitação oficial do bairro aconteceu somente em 1963. Atualmente vivem ali netos, bisnetos e tataranetos da matriarca. 

"Resistir, não por cédula, mas sim por raiz” 

“Quilombo é uma história. É uma palavra que tem história. É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico, mas o território a nível duma simbologia. (..) Nós temos direitos ao território, à terra”, escreveu a historiadora Maria Beatriz Nascimento. 

É nessa simbologia que, apesar de ter um território físico, constitui-se o Alpes. O quilombo urbano ainda preserva a primeira residência de Edwirges, o Capão da Vó, localizado a poucos metros da sede da Associação Quilombola dos Alpes Dona Edwirges. O local também traz resquícios da Caverna da Tia Jaci. 

Conforme descreve o Atlas da presença Quilombola em Porto Alegre, Edwirges representa a relação profunda com o território dos Alpes. “Seu movimento pelo alto do morro a manteve protegida e garantiu sua sobrevivência. Pela oralidade, transmitiu, aos seus descendentes, a sabedoria de andar pelo espaço, a fim de manter práticas e vivências territoriais, desde a sua chegada, e tem na filha Jane e na neta Janja, as guardiãs da memória do quilombo.”

Filha de Jane da Silva Elias e Valdir Garcia Elias, Janja nasceu e cresceu no quilombo juntamente com seus nove irmãos. Além das lembranças trazidas pela oralidade da avó, Janja narra as suas, da infância distante do “asfalto”, de subir nas árvores e se dependurar nos cipós. Ela fala com saudade dos locais onde brincavam na infância, as antigas moradias. E da luta para manter viva a vegetação ali existente, que ainda contém resquícios de vegetação nativa e original da Mata Atlântica. 


 Janja nasceu e cresceu no quilombo juntamente com seus nove irmãos / Foto: Clara Aguiar

Aos oito anos, Janja começou a trabalhar em casas de família e até hoje nunca parou. Mãe de quatro filhos, sendo uma adotada, diz que a prole é ainda maior. “Junto com minha mãe criamos mais de 30. A gente criou, auxilia e continua auxiliando. Bate na porta aqui e a gente divide, a gente acolhe, a gente... até os bichos, essa cachorrada que vocês cruzaram aí, nós cuidamos.”

Ao intercalar passado e presente, a liderança afirma que  a existência no quilombo é ato de resistir, não por por cédula, mas por raiz, por memória. “A avó que chega aqui, uma resistente da escravidão, vinha como escrava mesmo a abolição ter chegado. E ela se aventurar, caminhar, chegar até esse ponto aqui, foi por medo do castigo. Hoje a gente recebe ele, mas não é no chicote, é na caneta. É negado o tempo todo os nossos direitos. Somos excluídos o tempo todo. A gente sabe que tem leis que protegem, mas elas ficam lá só no papel, e de preferência não é divulgado, e quando é não chega até ti, porque eles botam um monte de empecilho pra ti poder acessar, que é justamente pra se perder mesmo”, contemporiza. 

Legado e religiosidade 

Além do legado da avó, Janja cita também o do tio Wilson que, segundo ela, tinha conhecimento irreparável sobre as ervas, sobre os bichos que poderiam comer de caça e tudo. “Inclusive curou muita gente aí de bronquite, de asma, tudo com garrafas com os xaropes que ele fazia, e ele passa esse legado pra gente”, diz. 


Os Pretos Velhos são conhecidos por sua especialidade em prestar auxílio em questões de saúde, seja física ou emocional / Foto: Clara Aguiar

O território dos Alpes ainda guarda trilhas sagradas, espaços de oferenda e de representação de orixás. “A gente é de Jeje com Ijexá, é da umbanda, somos batuqueiros, palavra bem popular. Aqui a gente tem uma diversidade bem bonita, uma aliança bem divina e a ancestralidade. A gente tem os pretos que a gente cultua, eles nos protegem, nós protegemos eles. Se não fossem eles nós não estaríamos aqui, Bará e Oxalá, todos de mão dadas aí. Temos grande respeito pela senhora mãe que é Oxum. Eu como amo as pedras e sou rodeada por elas, sou de Xangô, é o cara ali que bate o martelo, é da justiça, não aceito injustiça, e a gente resiste aí, estamos aí”, conta Janja.

À espera da Titularização 

Em 2005 o quilombo dos Alpes recebeu a certificação da Fundação Cultural Palmares. Também em 2005 foi construída a primeira sede da associação. Foi também neste ano que o quilombo teve acesso à luz elétrica. O processo pela regularização fundiária  da terra teve início em 2007. Somente em 2016 a área foi demarcada pelo Incra e decretada como interesse social para fins de indenização e desapropriação de terceiros. O processo encontra-se interrompido. 

Conforme ressalta Onir Araújo, advogado da Frente Quilombola RS, a área já tem um decreto de desapropriação por interesse social desde 2016, quando em uma reunião com o Incra foi informado de que havia sido empenhado recursos para a indenização. “De lá para cá não temos informação nenhuma porque eles têm que agendar a vinda no território para fazer a avaliação de matrículas e esse fluxo ainda não ocorreu. Uma outra demanda que ficou em aberto em relação ao Incra e que tem a ver com segurança da comunidade era a colocação de placas na comunidade informando que se trata de um quilombo reconhecido e até agora estamos aguardando”, expõe.

De acordo com Janja, assim que se autodeclararam vieram os assédios e as perseguições. “A gente acaba se autodeclarando e se autorreconhecendo, e daí quando absorve a consciência tu sofre muito. Automaticamente tu pega uma identidade, que tu tem, de que não existe racismo, não existe preconceito, todo mundo é igual, e isso muda. Toda a especulação imobiliária chega junto nesse processo”, aponta. 

Para ela, o valor do quilombo não está na sua vista ou no potencial imobiliário que possa ter, mas sim em sua preservação. “Eles olham assim: que vista linda. Não, vista linda pra mim é aquele capão ali, aquele mato ali. Eu não quero que ele suma. Eu quero mostrar para os meus netos, quero mostrar para meus bisnetos. Já vieram várias organizações, várias etnias, se deparam ali com a cidade, olha aqueles prédios e dizem ‘meu Deus, ô gente, vista bonita é aquela ali”. A  gente tem que lutar pra aquilo ali (vegetação e fauna) não se acabar, ali tem chá, tem bichos, tem remédio, tem vida.”


Para Janja, o valor do quilombo não está na sua vista ou no potencial imobiliário que possa ter, mas sim em sua preservação / Foto: Clara Aguiar


Localizado entre os bairros Glória, Cascata e Teresópolis, o quilombo fica em uma área com uma vista privilegiada da capital gaúcha / Foto: Clara Aguiar


O Quilombo dos Alpes possui cerca de 58 hectares / Foto: Clara Aguiar 

O conflito fundiário no território

No dia 26 agosto de 2022, o Quilombo dos Alpes vivenciou uma violenta invasão. Era sexta-feira quando 20 indivíduos adentraram o território e marcaram com um “X” algumas das 50 casas não concluídas que integram o projeto habitacional da comunidade. As moradias fazem parte do programa do Governo Federal Minha Casa, Minha Vida Entidades.

Dois dias depois, de acordo com Janja, quatro homens realizaram uma ronda no local e, após isso, veículos com famílias chegaram com lonas. Nesse momento a Brigada Militar foi acionada para dispersar o grupo.  Em 2018, o Quilombo dos Alpes tornou-se o primeiro quilombo do Brasil a formalizar uma parceria com a Caixa Econômica Federal.


O projeto para a construção das casas foi elaborado pela associação Quilombo dos Alpes, que contou com o apoio técnico de professores da UFRGS e de um coletivo de engenheiros / Foto: Clara Aguiar


Em agosto de 2022, 20 indivíduos adentraram o território e marcaram com um “X” algumas das 50 casas que integram o projeto habitacional da comunidade / Foto: Clara Aguiar

O projeto para a construção das casas foi elaborado pela associação Quilombo dos Alpes, que contou com o apoio técnico de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de um coletivo de engenheiros. “Isso aí é outra coisa que a gente lutou muito, batalhamos, nos esforçamos e a gente conseguiu. Amanhecemos, anoitecemos, o pessoal da universidade ali, sem palavras, apoiou demais, acreditou no sonho, abraçou a causa e estão aí auxiliando a gente”, comenta Janja. A obra foi iniciada em 2019, no entanto, foi interrompida durante a pandemia de covid-19. Quando estavam prestes a serem reiniciadas, houve a invasão. O projeto aos poucos vem sendo retomado.

Onir conta que ainda há um clima tenso, pois as investigações ainda estão acontecendo acerca de quem foram os autores das ameaças e da invasão. Ele destaca que, com muita luta da comunidade, o Ministério Público Federal abriu inquérito junto à Policia Federal.

"A comunidade tem um pleito que permanece que é a questão de segurança. Está havendo uma rotina de rondas da Brigada Militar. É uma situação muito tensa em função da situação que está em Porto Alegre, mas minimamente está sob controle”, relata o advogado. Ele ressalta que o Incra, apesar de ter sido informado do que estava acontecendo no território, da invasão e ameaças, só compareceu cinco dias após o ocorrido. 

Esse não foi o primeiro conflito territorial enfrentado pelos Alpes. Em 2008, duas das principais lideranças da comunidade foram assassinadas. Atingida por disparos de arma de fogo, Janja sobreviveu ao ataque. Na época os homicídios foram associados à disputa pela terra. “Esse monstro premeditou tudo, abordou nós, pegou nós de surpresa, assassinou minha mana (Joelma da Silva Ellias) pelas costas, assassinou meu mano (Volmir da Silva Ellias), eu mesmo fui vitimada, mas tô aqui”, relata. 

Em 2010, o Tribunal do Júri de Porto Alegre condenou o autor do crime a 39 anos e seis meses de prisão em regime fechado por homicídio e tentativa de homicídio. Os assassinatos e a tentativa de assassinato teriam sido motivados pela disputa do território. 

Lazer cultural

Entre os projetos desenvolvidos pelo quilombo estão as oficinas de costura e de culinária. Para Janja, as atividades resgatam saberes ancestrais. As aulas são voltadas para as crianças e acontecem na sede da Associação do Quilombo dos Alpes, localizada dentro da comunidade.


Sede da Associação do Quilombo dos Alpes, onde ocorrem as aulas / Foto: Clara Aguiar

“A minha avó pegava as roupas, que nem dizem ‘roupa velha’, e transformava em novo, fazia coberta e distribuía pro pessoal. A nossa culinária, o nosso arroz, o nosso feijão, que o tempo todo ficam brigando: ‘essa aqui é uma receita italiana, essa é uma receita não sei o que…’ Mas quem fez e quem cozinhou foram os nossos. Foram os caras nos porões dos navios que estavam sendo arrastados e arrancados das suas raízes e sendo vendidos nos portos. Então são essas coisas que a gente trás pra não se apagar, pra não ser eliminadas, porque o tempo todo eles tentam eliminar essas coisas. É a religião, os costumes antigos…” 

No território, uma horta comunitária também é cultivada. “Eu gosto de plantar, eu gosto de ter coisas naturais, folha, limão, uma beterraba, uma alface”, comenta Janja. Ela conta que há anos reivindica a instalação de uma pracinha. “Quero trazer benfeitorias para dentro da área, espaços de lazer mesmo, a gente não tem nenhuma pracinha aqui, que vergonha! A gente não consegue trazer uma pracinha pra cá, que tem mais de cento e poucas crianças, porque o plano diretor não concorda, o poder público não concorda, porque é pico de morro.”

"Semente vai crescendo e vai se expandindo"

Vera Maria Rosafortes, 44 anos, nasceu  e cresceu no quilombo. Das suas lembranças da infância, conta que no território havia um pequeno poço onde era possível pegar água. Hoje o mato tomou conta do lugar. Ao percorrer o território, vai apontando para as hortas e chás espalhados pelo caminho.

“Antigamente aqui não tinha casas, lá vivia a falecida vó, eu chamo de vó. A gente nasceu aqui, se criou, brincamos, corremos. Sempre tivemos liberdade, a gente podia caminhar por aqui, correr. A gente queria criar nossos filhos assim também, mas é difícil, mas vamos vivendo”, diz.

Para ela ser quilombola é  ser comunidade, é todo mundo se unir, estar junto, é amizade e união.


Por todo o território do quilombo é possível encontrar diversas ervas / Foto: Fabiana Reinholz

Quando questionada sobre o significado de quilombo, Janja destaca: “É um espaço coletivo, onde um cuida do outro. Sempre tem um que vai atrás de buscar melhorias, mesmo sabendo que se põe em risco, porque automaticamente tu bota a tua cara, tem que botar, se tu não botar ninguém vai saber que tu existe e do que tu tá indo atrás. É de justiça, é de melhorias, é de estrutura, é de direitos, é de moradia, de vida, de saneamento, de luz, iluminação pública, uma pracinha...”

De acordo com ela, quilombola é sinônimo de agregar. “Ser quilombola é isso, é buscar condições, buscar estudo. É saber que tem vaga lá na universidade e que tu pode botar os teus lá. A gente vai evoluindo, a gente vai indo, vai semeando e essa semente vai crescendo e vai se expandindo. Mas é difícil, ser quilombola é a mesma coisa que tu estar taxado, é a mesma coisa que fizeram nas nossas casas, marcaram um “X” ali, tá marcado. Tu fica o tempo todo exposto porque tu tá na mira”, desabafa. 


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Edição: Marcelo Ferreira