Rio Grande do Sul

Quilombos Urbanos

Quilombo da Família Silva: "Antes a gente não tinha direito, toda hora queriam nos tirar daqui"

Lígia Maria da Silva, atual liderança, conta a história do primeiro quilombo urbano titulado do país

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Agora, como nós temos o título, graças a Deus ninguém mais nos incomodou" - Foto: Clara Aguiar

“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’.”
Conceição Evaristo.

Em um dos bairros com o metro quadrado mais caro de Porto Alegre está localizado o primeiro quilombo urbano titulado no Brasil: o Quilombo da Família Silva. Entre as Avenidas Nilo Peçanha e Carlos Gomes, em um terreno de 6,5 mil m², na rua João Caetano, o território hoje é lar de aproximadamente 70 pessoas. Os primeiros indícios de sua constituição datam da década de 1940, quando os patriarcas da família chegaram à Capital.

Naura Borges da Silva e Alípio Marques do Santos vieram de São Francisco de Paula para encontrar um lugar onde pudessem perpetuar seus modos de vida. E assim fizeram. Naura e Alípio são os avós maternos de Lígia Maria da Silva, de 66 anos, atual liderança da comunidade. “Meu avô contava que aqui era tudo mato. Eles viviam de plantação. Plantavam milho, amendoim, moranguinho. Meu avô criava porco, galinha, tínhamos uma vaca. Tirávamos todo o sustento da terra, era bem fácil morar aqui”, lembra Lígia. 

De acordo com o Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS, nessa época, a zona Leste da capital gaúcha não era densamente habitada, sendo considerada área rural até o fim do século XX. Na época da chegada dos avós, o bairro ainda se chamava Chácara das Três Figueiras. Originalmente, o local abrigada chácaras ocupadas por negros alforriados, que construíram suas casas com pouquíssima infraestrutura. 

A partir da década de 1980, com a expansão da Avenida Carlos Gomes, a construção do shopping Iguatemi, o bairro começa a se transformar. Essa expansão da urbanização traz consigo uma elitização da região. E assim como acontece com outros territórios, as comunidades negras que viviam na região passaram a sofrer ameaças da especulação imobiliária.

Por ocupar um dos metros quadrados mais caros da capital gaúcha, atualmente custando cerca de R$ 11.159, a história do Quilombo da Família Silva foi marcada por uma forte luta contra os especuladores. Realidade comum a outros quilombos, como o Quilombo Kédi, vizinho dos Silva. Nos dias atuais, o território dos Silva está rodeado por condomínios luxuosos destinados às classes A e B. O bairro Três Figueiras é considerado um dos 20 bairros mais ricos do Brasil. 
 


O quilombo é cercado por condomínios classes A e B / Foto: Clara Aguiar

Titularização foi conquistada em 2009

Apesar das ameaças da especulação imobiliária, os Silva resistiram e receberam a titularização em 2009, pelo então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Graças a Deus que nós recebemos o título, então parou com o assunto, mas antes toda hora vinha um que era dono do terreno. Até cigano apareceu dizendo que era dono desse terreno”, conta Lígia.

Antes desse reconhecimento, o quilombo passou por uma intensa luta pelo direito de existir no local. A primeira tentativa do processo de usucapião aconteceu na metade dos anos 1970. A segunda tentativa foi feita em 1990 e uma terceira em 2001. “Meu avô já tinha perdido o usucapião, e perdeu porque os advogados se vendiam no meio do caminho. A coisa não fluía…” 

Durante a romaria para regulamentar a situação do terreno, Lígia comenta que conheceram um advogado que prometeu ajudá-los. Aproveitando-se de ter um sobrenome igual ao da família, o referido advogado passou-se por irmão mais velho e conseguiu vender uma faixa do terreno sem consultar ninguém do quilombo. Lígia conta que o advogado comprou uma pousada na praia, dois carros e construiu uma casa geriátrica de dois pisos. Um condomínio que começava a construção logo acima do quilombo na época, ganhou área para uma piscina, salão de festas e outra casa.

Um terreno no Morro Santana foi oferecido a eles por R$ 10 mil. “A gente foi lá pra ver só com o dinheiro de ida e volta. Eu não tinha nenhuma moeda”, lembra. 

A luta pela moradia fez com que a família entrasse em contato com representantes do movimento negro do estado, entre eles a Frente Quilombola. E a partir de 2002, os Silva passaram a reivindicar a condição de remanescentes quilombolas. Em 2004, a Fundação Cultural Palmares (FCP) expediu a Certidão de Autorreconhecimento aos Silva. 

Contudo, em 2005, tramitou na 13ª Vara Cível da Comarca de Porto Alegre a Ação de Reintegração de Posse. Foi neste ano que a comunidade passou pela mais violenta e duradoura ação de despejo. “Sofremos várias ameaças, todo dezembro tínhamos despejo. O último aconteceu em junho de 2005. Durou 15 dias, com chuva e frio”, recorda Lígia. 


Condomínio Piccola Cittá ao lado da casa de Lígia / Foto: Clara Aguiar

Quando começou a ação, ela estava no trabalho. Sua irmã, Preta, ligou para ela avisando que iriam tentar despejá-las de casa. Lígia comenta que deixou um bilhete para a patroa dizendo: “Dona Lia, estou indo porque tem despejo lá em casa”. 

“Foi muito difícil, eu não tinha mais esperança, porque eu tinha visto um despejo na vila. Eles quebram tudo o que você tem. Eu já tinha ensacado minhas coisas todas em sacos de lixo, louça enrolada. A gente dava graças a deus quando chegava seis horas e não podia mais ter despejo no dia”, relembra. 


Devido a especulação imobiliária o quilombo perdeu parte do seu território. Novo condomínio sendo construído aos fundos da área / Foto: Clara Aguiar

Durante os 15 dias a comunidade montou uma barricada com pneus e atearam fogo para evitar que a polícia se aproximasse. Moradores de outros quilombos da Capital começaram a chegar para ajudar na resistência, assim como representantes religiosos, políticos e outros movimentos e entidades de dentro e fora do estado. “Era gente assim, que parecia formiga em cima desse terreno.”

Lígia ainda narra que foram várias vezes a Brasília, várias vezes ocuparam o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para poder ser reconhecido como quilombola para ter reconhecido o direito a essa terra. “Só fomos reconhecidos graças ao presidente Lula”, afirma, recordando das duas vezes em que o então presidente esteve no Rio Grande do Sul. 

Na primeira vez, em Porto Alegre, Lígia não conseguiu se aproximar do presidente e escreveu em um papel “Quilombo Silva pede ajuda”. Na ocasião, o bilhete foi passado de mão em mão até chegar em Lula. Ele leu o papel, mas não disse nada. Na vez seguinte, em Sapucaia do Sul, as irmãs de Lígia foram com uma faixa pedindo o título para o Quilombo da Família Silva. No final do ato, Lula disse: ‘Eu vou atender o pedido de vocês porque eu também sou um Silva’”. Naquela mesma noite, servidores do INCRA assinaram o título”, relembra.


Trecho da titularidade / Foto: Clara Aguiar

Tradição e família 

Lígia, filha de Anna Maria e Euclides José da Silva. “Meu pai saiu de Porto Alegre para ir em um baile em São Francisco de Paula, e aí minha mãe estava neste baile. Ela tinha 19 anos e meu pai 40. Meu pai veio a Porto Alegre e pediu a mãe em casamento pros meus avós. O casamento civil foi em cima dessas terras, perto da seringueira e o religioso foi na igreja Auxiliadora”, conta. O casal teve 11 filhos. Entre eles, Lígia, que é a filha mais velha, e Lorivaldino Silva, o Lorico, que faleceu, em 2021. Sete dos irmãos vivem no quilombo atualmente.

Era ele que manteve a tradição dos chás e das beberagens passadas pelos antepassados. “Até hoje nós temos as árvores que o Lorico plantou, ele fazia desde os tempos dos meus avós o alcanfor, que bota álcool, arruda, guiné, manjericão, várias outras plantas. Ele fazia essa infusão e dava pra nós quando tinha uma dor, pra passar. É uma coisa de manter a tradição dos antigos, o Lorico dava também chás de sete ervas pra quebrar inveja, tudo ele fazia. Cada pessoa que vinha aqui o Lorico dava um vasinho de sete ervas. A filha e o genro de Lorico seguem cuidando da horta que ele mantinha.” 

Dos tempos dos avós, ficou no território também um poço construído pelo avô de Lígia, e que até 1998 abastecia a comunidade e outras famílias.


Seringueira no coração do Quilombo da Família Silva / Foto: Guilherme Santos/Sul21

O racismo 

Em 2010, Lígia conta que seu irmão, Lorivaldino Silva, o Lorico, foi interpelado por policiais militares quando brincava na praça com o neto. Paulo Ricardo Dutra Pacheco, cunhado de Lorico, interveio pedindo respeito aos quilombolas. A partir daí, foi perseguido e agredido pelos soldados. Na ocasião, o Capitão Zaniol, do 11° Batalhão da Polícia Militar, disse que Paulo desacatou e desobedeceu à autoridade, além de resistir à prisão, o que justificou tê-lo perseguido até dentro de sua casa, onde Paulo foi algemado e retirado à força na frente da esposa e dos filhos. 

O caso foi denunciado ao Ministério Público Estadual, à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e ao Comitê de Combate à Tortura. Em 2016, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região reconheceu Dano Moral Coletivo sofrido pelo Quilombo da Família Silva, em decorrência de violência praticada pela Brigada Militar em 2010.

Ao falar do contraste entre a comunidade e seu entorno, Lígia pontua que durante um bom tempo os moradores no território não tinham banheiros individuais. As 12 famílias que viviam no território usavam um banheiro comunitário. “Quando vieram as máquinas para abrir caminho, para a Emater entrar com o material para fazer nossos banheiros, o condomínio gritava assim lá de cima, da sacada: ‘Ah, vão levar a negrada embora! Vão levar a negrada embora!’. Eles acharam que era um despejo’”. Contudo, conforme salienta, outros vizinhos respeitam a comunidade.

Reconhecimento como sinônimo de proteção

Quando questionada sobre o que significa ser quilombola, Lígia ressalta a importância do reconhecimento do direito à terra: “Antes a gente não tinha direito nessas terras, porque toda hora queriam nos tirar daqui. Agora, como nós temos o título, graças a Deus ninguém mais nos incomodou. Porque foi pra cá que meus avós vieram há muitos anos, e eu nasci aqui no quilombo, tenho minhas filhas aqui”. Ela tem duas filhas que nasceram e que vivem no quilombo.


"Foi pra cá que meus avós vieram há muitos anos, e eu nasci aqui no quilombo, tenho minhas filhas aqui” / Foto: Clara Aguiar

Para a filha de Lígia, que também leva o nome da mãe, ser quilombola é sinônimo de resistência. “Ser quilombola é a continuação dos meus ancestrais que com muita luta, como agora, nos deu continuação de manter a luta pelo que eles tentaram fazer no passado”, afirma Lígia Leticia Silva de Oliveira.  


Lígia Letícia e seus dois filhos / Foto: Clara Aguiar

“O Quilombo da Família Silva, ao trazer para o contexto urbano a reivindicação territorial negro e quilombola, a partir de referências Civilizatórias de Matriz Africana, tirou o sossego da colonialidade”, afirma o advogado e integrante da Frente Quilombola RS, Onir Araújo.

“Aquelas 12 famílias, apesar de tudo o que passaram, abriram caminho para os outros 10 Territórios Quilombolas em Porto Alegre, e quiçá para milhões contidos nas periferias dos centros urbanos do país. Memória e ancestralidade estão vivas em nós e o Quilombo dos Silva demonstra a potência que possuem quando se territorializam para o bem viver e a necessária construção de um ‘mundo’ que caiba todos os ‘mundos’”, finaliza Onir. 

Vida contada 

A história de resistência do Quilombo da Família Silva está documentada em um filme produzido pelo Coletivo Catarse, Inverso Coletivo e Ponto de Cultura Teia Viva, lançado em 2012. Assista o documentário a seguir:  


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Edição: Katia Marko