Rio Grande do Sul

CULTURA

Primeiro desfile de Llamadas em Porto Alegre comemora o Dia Municipal do Candombe

Os grupos Candombe Porto Alegre, La Brasa Lunera e Tambor Tambora inauguraram a tradição do Dia do Candombe na Capital

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A região escolhida para a celebração não poderia ser outra, a clássica Cidade Baixa, território historicamente negro da Capital - Foto: Maí Yandara

“Quando o tambor começou a golpear-se a si mesmo, todos os que estavam mortos há cem anos levantaram-se e vieram testemunhar como o tambor tocava o tambor…”

Amos Tutuola

“Ta-ta-ta, tata!”: O som seco da baqueta na madeira vem chamando; é dia de tambores. O primeiro desfile de Llamadas da cidade, no último sábado (03/12), consagrou o que já se sabe: Há Candombe em Porto Alegre.

A região escolhida para a celebração não poderia ser outra, a clássica Cidade Baixa, território historicamente negro da Capital. Ao som dos tambores Chico, Repique e Piano, desfilam bandeiras, estandartes, lua e estrela, corpo de baile, mama vieja, gramillero e escobero - elementos da tradição uruguaia que servem de referência para o movimento de resgate do Candombe na Porto Alegre dos últimos 4 anos. Totalizando mais de 60 tambores, os grupos Candombe Porto Alegre, La Brasa Lunera e Tambor Tambora passaram pela João Alfredo, antiga Rua da Margem, inaugurando na Capital a tradição do Dia do Candombe.


Totalizando mais de 60 tambores, os grupos passaram pela João Alfredo, antiga Rua da Margem, inaugurando na Capital a tradição do Dia do Candombe / Foto: Maí Yandara

O ritmo de origem Bantú, com significativa influência das nações provenientes de onde hoje estão localizados Congo, Angola e Moçambique, vem aparecendo de maneira tímida há mais de uma década na cidade. Mas foi somente em 2019 que o Candombe começou a ser resgatado como movimento cultural organizado em Porto Alegre.

“A partir de conversas informais entre frequentadores do bar Guernica, na Cidade Baixa, começou a mobilização no sentido de criar um projeto permanente de Candombe no Rio Grande do Sul, com a pretensão de resgatar, difundir e enraizar essa cultura”, conta Pepe Martini, tamboreiro da Candombe POA e um dos idealizadores do movimento.

De lá para cá, o ritmo floresceu na Capital através de toques permanentes em espaços públicos, oficinas com tocadores uruguaios, encontros semanais de agrupações em ruas e parques da cidade e projetos como o Candombe no Areal, que realiza oficinas abertas e gratuitas na sede da escola de samba mirim Areal do Futuro, no Quilombo do Areal - território remanescente do antigo cinturão negro de Porto Alegre.


Movimento realiza oficinas abertas e gratuitas na sede da escola de samba mirim Areal do Futuro, no Quilombo do Areal / Foto: Maí Yandara

3 de dezembro é o Dia Municipal do Candombe

Em reconhecimento às iniciativas citadas, a cidade ganhou, em 2022, uma lei que estabelece o dia 3 de Dezembro como Dia Municipal do Candombe no calendário de datas comemorativas, um passo importante para consolidar a cena que já contabiliza três comparsas (agrupações) ativas em Porto Alegre.

A data, que já é comemorada no Uruguai como o Dia Nacional do Candombe, da Cultura Afro-uruguaia e da Igualdade Racial desde 2006, relembra um evento comovente: Quando, pela última vez, soaram de maneira espontânea os tambores do cortiço Mediomundo, antes localizado no clássico Barrio Sur em Montevidéu, dois dias antes do seu despejo e demolição pela ditadura militar uruguaia, em 1978.


Ao som dos tambores Chico, Repique e Piano, desfilaram bandeiras, estandartes, lua e estrela, corpo de baile, mama vieja, gramillero e escobero / Foto: Maí Yandara

“Mais de 30 tambores, liderados pelas Lonjas de Cuareim, se juntaram para dar adeus ao cortiço com uma última sessão de baile e percussão. A festa transbordou o pátio do edifício e chegou até a rua. Ninguém esteve ausente, e todo Palermo (bairro colado ao Barrio Sur) se uniu à esta última jornada”, conta o historiador Reid Andrews em seu livro “Negritud En La Nación Blanca: Una História de Afro-Uruguay”.

:: Tambores que falam: antirracismo e feminismo no candombe afrouruguaio ::

Para além da justa homenagem à efeméride montevideana, a lei municipal serve também como tributo aos extintos Candombes porto-alegrenses e gaúchos. No Rio Grande do Sul, há registros da cultura em regiões como a do Alto-Taquari, do Litoral Norte e das Charqueadas.

Já em Porto Alegre existem registros de diversas ocorrências da Festa do Tambor, sendo a mais notória, sem dúvidas, o famoso Candombe da Mãe Rita, líder espiritual e comunitária que possuía seu terreiro nas imediações do Beco do Firme, atual rua Avaí. Por ali reuniam-se aos domingos negros de diferentes nações africanas para dançar e tocar tambor em ritmos que, pela falta de registros, só nos cabe imaginar.

Restou, portanto, romper a fronteira imaginária do pampa do sul da Terra, para beber da fonte do Candombe uruguaio, que nunca secou. Esse, tocado com os três tambores que juntos formam uma cuerda, popularizou-se de forma massiva nos últimos anos e chegou a ser reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.


As vestimentas clássicas também foram vistas na João Alfredo / Foto: Maí Yandara

Os desfiles de Llamadas consolidaram-se como alguns dos eventos mais importantes do Uruguai, ocorrendo em diversas datas comemorativas. Neles, as comparsas - equivalentes às nossas escolas de samba - saem pelas ruas com seus elementos tradicionais.

No evento do último sábado, em Porto Alegre, foi possível ver esses itens em algumas comparsas. Além das bandeiras e estandartes, estavam presentes a meia-lua e a estrela, que significam o respeito e a presença dos antepassados que já se foram; a mama vieja, que representa a rainha das antigas salas de nação, as amas de leite, as lavadeiras, as cozinheiras, as costureiras e as mães sábias e bondosas que cuidam não somente de seus filhos, mas de todos; o gramillero, que representa o rei das salas de nação na figura de um curandeiro, como um bruxo de idade avançada, é, também, guardião das histórias e saberes; e, por fim, o escobero, que traz em sua vestimenta uma escova para “varrer” os maus augúrios dos caminhos das comparsas.

As vestimentas clássicas também foram vistas na João Alfredo: chapéu de palha, bombachudo - uma espécie de bombacha mais curta, dominó - jaleco que imita um traje de gala, alpargatas, meias pretas e as cintas (fitas) entrecruzadas nas pernas que simbolizam as chicotadas às quais os escravizados eram frequentemente submetidos.


O último 3 de Dezembro deixa a certeza de que o coração de Porto Alegre apenas voltou a pulsar no toque do tambor / Foto: Maí Yandara

Tudo isso comprova que o Candombe vai muito além da música produzida por Chico, Repique e Piano. É uma tradição ampla, rica e viva. São tambores que cantam, corpos que dançam. É cultura popular e ancestral, na qual a vida em comunidade é elemento central para consolidação e construção de grupos e comparsas. Tal qual o pampa que une Uruguai e Rio Grande do Sul, o Candombe gaúcho é também repleto de horizontes infinitos. O último 3 de Dezembro deixa a certeza de que o coração de Porto Alegre apenas voltou a pulsar no toque do tambor.

* Jornalista, fotógrafa e candombeira na @candombepoa

Edição: Katia Marko