Rio Grande do Sul

Educação Pública

Professores e alunos do bairro Restinga constroem Comitê pela Revogação do Ensino Médio

Comunidade de diversas escolas da região propôs definição em seminário realizado no Colégio Ildo Meneghetti

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O seminário contou com painelistas que apresentaram o contexto no qual o Novo Ensino Médio está sendo implantado no país e o retrocesso que ele representa - Foto: Marcelo Passarella

A necessidade de uma intensa mobilização da sociedade em torno da revogação do Novo Ensino Médio foi o tema central do seminário realizado na noite desta quinta-feira (18), no Colégio Ildo Meneghetti, no bairro Restinga, em Porto Alegre. A partir dos relatos de professores, alunos e comunidade em geral, foram definidos os passos iniciais para criação de comitê dedicado a promover o debate contra a medida, realizando ações em conjunto com os agentes políticos e lideranças comunitárias regionais.

:: Mobilização por revogação de Novo Ensino Médio reúne estudantes e docentes em Porto Alegre ::

O seminário contou com painelistas que apresentaram o contexto no qual o Novo Ensino Médio está sendo implantado no país e o retrocesso que ele representa para as classes mais pobres que frequentam a escola pública e buscam oportunidades de acesso ao ensino superior. O evento foi mais uma etapa da articulação organizada pelo 39º núcleo do Cpers junto a diversas instituições de ensino e movimentos políticos e sociais contra o novo currículo.

Um dos painelistas foi o diretor de ensino do IFRS Restinga, Mário Augusto Correia, que apresentou um histórico de gestação desse novo modelo, nascido a partir de um projeto iniciado 2017 no governo do então presidente Michel Temer (MDB), e colocado em prática pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).


O evento foi mais uma etapa da articulação contra o novo currículo / Foto: Marcelo Passarella

Correia explicou que o Novo Ensino Médio não está isolado das políticas de governos de direita e extrema-direita que buscam retirar os direitos das classes mais desfavorecidas. De acordo com ele, o fato de ter sido idealizado e implantado por um governo que sucedeu um impeachment sem embasamento jurídico – como ocorreu com a presidente Dilma Rousseuf em 2016 – torna o processo todo ilegítimo, uma vez que não foi elaborado em conjunto com os educadores.

“É sempre importante lembrar que essa reforma surge sem nenhuma discussão com os educadores. Ela foi desengavetada em 2017 em um governo ilegítimo, após um golpe de Estado, para tentar forçar a implementação de um programa econômico e social que está atrelado à reforma trabalhista e reforma da Previdência, visando atender somente aos interesses das elites e dos grandes empresários”, destacou.

De acordo com Correia, existe uma posição nacional dos institutos federais em todo o país contrária à reforma do Ensino Médio. Um dos motivos é que esse modelo visa formar profissionais para atuar em um mercado de trabalho precarizado, que não garante direitos trabalhistas e explora os trabalhadores, fazendo-os crer que são “empreendedores” – quando na verdade estão perdendo as condições de capacitação profissional e de conhecimento que podem ser prestadas por uma educação pública de qualidade.

Resultados "caóticos"

Outra painelista foi a mestranda em Educação pela UFRGS, Bruna Jardim, que realiza um projeto de pesquisa que analisa os efeitos do novo currículo nas instituições de ensino do estado. Ela salientou as diferenças do modelo anterior para o atual, explicando como os alunos e professores estão sendo afetados negativamente pela medida.

Ela aponta que o novo modelo reduz para apenas dois o número de disciplinas humanas obrigatórias - Português e Matemática – além de diminuir as aulas presenciais e impor aos alunos formatos de “trilhas de conhecimento”, que não estão conectadas com as reais necessidades das classes mais pobres. Destaca ainda que, com a atual base curricular, os professores não têm a devida autonomia para trabalhar conteúdos em sala de aula.


A partir dos relatos de professores, alunos e comunidade em geral, foram definidos os passos iniciais para criação de comitê dedicado a promover o debate contra a medida / Foto: Marcelo Passarella

“A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dita tudo o que temos que dar em aula. Antes existia uma certa autonomia, por meio de nossa formação como professor, para discutir o que seria importante dentro de sala de aula, sempre respeitando as diretrizes da cartilha. Hoje, esse modelo é imposto tanto para alunos como estudantes”, avalia.

Ainda de acordo com Bruna, existem no território gaúcho 264 escolas-piloto que passaram a testar o modelo a partir de 2019, com resultados muito ruins para a comunidade escolar como um todo. Uma das instituições de ensino que recebeu o novo modelo está localizada na zona central de Porto Alegre e possui cerca de mil alunos no Ensino Médio.

“Os resultados são caóticos. Nem os professores nem os diretores têm autonomia para indicar os itinerários formativos. Existe uma pressão da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) para indicar itinerários que não representam as necessidades das escolas. Nesse caso em específico, a Seduc só disponibilizou uma matéria amplamente requisitada pelos alunos, a de Expressão Corporal, se fosse implantada o itinerário de Empreendedorismo. É um desmonte”, avalia.

A professora da Ildo Meneghetti e vice-diretora do 39º núcleo do Cpers, Patrícia Mazoca, faz coro às afirmações de Bruna. Ela destaca que existem muitas dificuldades de adaptação ao novo modelo, pela falta de formação de professores que são designados para lecionar em áreas para as quais não foram contratados.

“Em nenhum momento foi colocada a necessidade de formação dos professores para esse novo currículo. E isso se transfere automaticamente para os alunos, pois ambos ainda não têm a dimensão do que representa o Novo Ensino Médio. Os professores estão tentando se virar como podem, se a devida orientação e sem habilitação para essas disciplinas novas. Isso gera um grande caos”, afirma.

Líderes comunitários e escolas da região reforçam mobilização

Considerada uma das maiores escolas da capital, com mais de 1,9 mil alunos, o Colégio Ildo Meneghetti serve como uma referência de ensino público de qualidade para a comunidade do bairro Restinga. Isso pôde ser visto a partir dos relatos de estudantes e de diretores de outras escolas da região que se somaram aos debates realizados no seminário.

Uma dessas pessoas é a vice-diretora da da E.E.E.M José do Patrocínio, Klymeia Mendonça Nobre. Com mais de 15 anos atuando como docente, ela aponta que uma das principais críticas com relação ao currículo escolar reside na ausência de diálogo com os educadores para a construção desse novo modelo.

“Esse Novo Ensino Médio caiu de paraquedas e deixou perdidos alunos e professores. Não houve qualquer consulta à base de educadores e não acompanha as características de cada comunidade na qual a escola foi inserida, e isso foi esquecido totalmente. As mudanças podem ser bem-vindas e necessárias, mas não podem ser feitas a toque de caixa e unilaterais”, explica.


Líderes comunitários e escolas da região reforçam mobilização / Foto: Marcelo Passarella

Um dos líderes comunitários que esteve presente no evento é Luiz Bem-Hur Pedroso, que atua em movimentos populares na Restinga. Vivendo há 49 anos na região, ele destaca a importância da mobilização social para sensibilizar os mais jovens para encampar a luta contra o Novo Ensino Médio.

“Os meus três filhos estudaram aqui e hoje dois estão fazendo faculdade com muita luta. Gerar uma condição de ensino melhor para todos é muito importante para que toda a sociedade e toda a Restinga deve participar”, afirma.

Uma das lideranças do movimento Ocupe e integrante do Grêmio Estudantil do Colégio Estadual Afonso Emilio Massot, Matheus Vicente ressaltou que um dos objetivos do novo formato é aumentar as diferenças entre as classes mais baixas e os mais ricos.

“O objetivo é criar um abismo entre a escola pública e privada. Enquanto na escola privada eles mantiveram aula de História, Sociologia e Filosofia, na escola pública eles retiraram essas matérias. Eles não querem que os filhos de trabalhadores tenham uma educação de qualidade e saiam da escola alienados, sem pensar e sem olhar crítico”, critica.

Mesmo ainda não sofrendo os efeitos do Novo Ensino Médio de forma mais clara por estar no terceiro ano, o estudante do terceiro ano da Ildo Meneghetti Vitor Matheus busca articular com os amigos e colegas movimentos para reverter a situação.

“Eu tenho parentes mais jovens que vão passar por isso e não quero essa precariedade em nosso sistema. É uma forma de derrubar as classes mais pobres. A gente poderia unir as nossas forças para fazer um grande movimento com as escolas”, destacou.

Professor da Escola Raul Pilla, Alexandre Amaro comentou sobre a comunicação necessária entre os jovens da comunidade do próprio bairro. “Deveríamos, como professores e educadores, construir uma ponte com os gestores das escolas para termos uma proposta em comum contra a reforma. Uma tarefa nossa é ampliar esses conceitos juntos aos alunos também, instigando os grêmios nas escolas.”

Um relato emocionado sobre a percepção dos jovens com relação aos efeitos partiu da mãe de um adolescente que cursa o Ensino Médio na Ildo Meneghetti, a Andresa Ferreira. Ela, que atualmente é diretoria da Escola Municipal de Educação Infantil Dom Luiz de Nadal, conta que o filho vem dialogando os próprios colegas e amigos sobre os efeitos negativos do Novo Ensino Médio.

“Ele chegou com um papel em casa reclamando que era obrigado a escolher uma disciplina, porque tiraram Filosofia, Sociologia, Educação Física e Artes. Ele está indignado. Ele me disse que foi atrás para ver o que representa esse currículo e percebeu que não dá certo. Um adolescente que pesquisou sobre o assunto e está preocupado com a nossa realidade. Ele falou assim: lutar contra o novo Ensino Médio vai deixar de eu ser um escravo do mundo de trabalho moderno”, comentou ela, orgulhosa do filho de 16 anos.

Mobilização para consulta popular e aprovação de Projeto de Lei

O encaminhamento do Projeto de Lei na Câmara dos Deputados, na última terça-feira (16), que prevê a revogação do Novo Ensino Médio, também pautou os debates do seminário. A diretora-geral do 39º núcleo do Cpers, Neiva Lazzarotto, destacou a necessidade de mobilização para que o projeto seja aprovado. Neiva lembrou que está em andamento uma consulta no Ministério da Educação (MEC) para a sociedade avaliar o formato do Novo Ensino Médio, que ocorre até o dia 6 de junho

“Temos hoje um embrião de uma organização de vocês, um comitê pela Revogação do Novo Ensino Médio na Restinga, para que haja uma articulação com as escolas vizinhas em torno dessa pauta. Os alunos então têm dos instrumentos: preencher a consulta e lutar pela aprovação do Projeto de Lei, somando forças. Sabemos que não será fácil pelas barganhas que ocorrem no Congresso Nacional, exigindo cobrança por contas de emendas bilionárias para aprovar leis, mas devemos seguir adiante”, ressalta.

Apesar de destacar que o processo está sendo administrado pelos idealizadores da reforma – grupos e fundações privadas dentro do MEC – Neiva afirma que é importante que todos participem desse processo para rechaçar o sistema e mostrar a união em torno da pauta.

“O MEC está tomado pelas fundações e institutos privados, como a Fundação Lehmann, Unibanco, Bradesco, Itaú e muitos outros. Para vocês terem uma ideia, esses grupos estão assessorando pelo menos 23 das secretarias estaduais da educação de 27 estados do país, incluindo o Rio Grande do Sul. Temos que responder à consulta e pressionar pela aprovação do projeto. Se não existe pressão da classe trabalhadora, eles vão tomar parte do governo.”

Neiva ainda comentou que é preciso mudar o atual cenário para reinvestir recursos do pré-sal na Educação – algo que foi definido nos Planos Nacionais de Educação dos governos Lula e Dilma.

“Antes, 75% dos royalties do petróleo do pré-sal iriam ser usados em educação, o equivalente a R$ 16 bilhões. Porém, isso não foi aplicado, e tomaram empréstimo bilionário do Bird (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento) para financiar a implantação do novo Ensino Médio. Ou seja, isso também faz parte de um projeto internacional com grandes grupos privados. O dinheiro que o Brasil tem é muito superior a isso e pode ser colocado na Educação”, salientou.

Principais mudanças do Novo Ensino Médio

O início do ano letivo trouxe para o contexto das escolas a realidade da implantação do chamado Novo Ensino Médio. A mudança iniciada pelo governo de Michel Temer (MDB), em 2016, e implantada no ano passado pela então presidente Jair Bolsonaro (PL) gerou distorções no método de ensino, sobrecarregando professores e restringindo o acesso ao conhecimento pelos estudantes.

Veja abaixo quais são os principais pontos que motivam a indignação de alunos e de docentes:

• O novo modelo prevê a obrigatoriedade de apenas duas disciplinas - Português e Matemática -, que fazem parte de um currículo integrado que sintetiza todo o conjunto de matérias em quatro áreas do conhecimento: Linguagens e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

• Assim, as demais matérias antes individualizadas - Arte, Educação Física, Língua Inglesa, Biologia, Física, Química, Filosofia, Geografia, História e Sociologia – foram divididas em apenas duas áreas de conhecimento. Na visão de professores e de alunos, a retirada de matérias de formação intelectual e humana empobrece a capacidade de aprendizado.

• Outro motivo de crítica é a redução da carga horária de aulas presenciais de 2,4 mil horas anuais para 1,8 mil obrigatórias e 1,2 mil eletivas.

• A oferta de disciplinas eletivas retira a formação do senso crítico e foca em formação profissional para atividades precarizadas, de acordo com os sindicatos e entidades estudantis;

• A implantação da lei provocou demissão de professores e a imposição que os docentes assumam até sete disciplinas a partir da mudança da matriz curricular – o que causa sobrecarga de trabalho.


Edição: Marcelo Ferreira