Rio Grande do Sul

Hegemonia do capital

Artigo | Ser governo é o projeto?

"Um governo deve ser visto como uma ferramenta muito potente de mudar certos rumos na história da sociedade"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
ilustração neoliberalismo
"Por que a propriedade privada é um princípio do capital? Ou por que isso não é recorrentemente questionado? Por que a ideia do lucro acima da dignidade humana é aceita?" - Créditos da ilustração : Manual de Codicia

Para muitos - e muitas - talvez esse texto traga obviedades, porém acredito que existem certos assuntos em que deve ser reiterada aquela máxima "às vezes o óbvio precisa ser dito", constantemente, pra que não percamos de horizonte as principais questões e desafios.

Primeiro vamos enquadrar o conceito que será utilizado mais centralmente: hegemonia. É basicamente a legitimação de uma dominação ideológica assumida como condutora da organização social. A disputa de hegemonia - tão bem difundida por Gramsci - requer compreender uma série de fatores, sendo que em cada um deles existe uma gama de camadas sociopolíticas que precisamos ter em mente.

O Estado é um desses fatores. Quando pensamos nas suas disputas, uma dessas camadas são os poderes (Legislativo e Executivo, por exemplo), mas não é a única. Outras camadas em disputa que não podemos perder de vista são a ocupação do aparato estatal, sua forma organizativa e sua concepção enquanto entidade que direciona a sociedade, entre outras possibilidades.

A sociedade também é outro fator na disputa da hegemonia. Quais seus princípios e valores enquanto grupo, quais suas demandas e necessidades, quais podem ser seus direitos e deveres, quais são ou poderiam ser suas percepções sobre diferentes áreas da vida, como família, trabalho, consumo. Enfim, essas, e outras, são camadas do conceito de sociedade que precisamos ter em mente.

Portanto disputar hegemonia não é a mesma coisa que disputar - ou conquistar - maioria. A maioria é temporária, é efêmera, é baseada em interesses de momento. Sob o princípio da maioria, tu poderá vencer algumas batalhas, mas nunca a guerra, e essa é a grande diferença entre ganhar uma eleição ou ter uma maioria na visão de mundo, de ordem social.

O capitalismo, que é baseado em um sistema econômico que organiza a sociedade, detém a hegemonia mundial, incluindo o Brasil. Seus mentores e a classe dominante que o colocou em prática conseguiram instituir uma lógica de perpetuação e preservação do sistema, por meio de diversos instrumentos ideológicos. As leis, as instituições bancárias/financeiras, a ideia de "livre mercado", as convenções e costumes sociais, a educação e com ela os valores, e também, na maioria do tempo, o viés do Estado enquanto um regulador da ordem dominante.

Claro que durante todo esse tempo que o capitalismo está em rota já houveram mudanças, avanços e recuos por parte do próprio sistema, dependendo das correlações de forças postas no país e no mundo. Mas o sistema tem uma nitidez de quais são os seus pilares estratégicos, e mesmo nos seus recuos nunca abriu mão destes, para a própria proteção dos que se beneficiam com essa concepção de mundo, de sistema social.

O capitalismo sabe que sempre haverá uma “doutrinação” nos rumos das sociedades. Por que a propriedade privada é um princípio do capital? Ou por que isso não é recorrentemente questionado? Por que a ideia do lucro acima da dignidade humana é aceita? Por que a tendência ao monopólio é naturalizada ao mesmo tempo que se incentiva que todos se tornem empreendedores?

Todas essas perguntas, na verdade, permeiam o próprio capitalismo em sua contradição, porém poucas vezes são questionadas enquanto contradições estruturantes de um sistema que exclui e oprime. Essa baixa intensidade de criticidade, essa naturalização da existência desse sistema e como ele opera, é parte da sua dominação hegemônica.

Existe uma frase que circula por aí que eu gosto, porque acredito que ela sintetiza bastante, que diz: o mercado transforma tudo em mercadoria. Ou seja, tudo se torna um objeto de valor econômico de compra ou venda. Nossa força de trabalho, que nada mais é que a nossa energia, nossa inteligência e nosso tempo de vida, para o capital, é apenas mais um objeto para sua produção. Por que isso não incomoda a massa trabalhadora? Ou se incomoda, por que isso não a revolta?

O governo não deve ser considerado o fim do percurso, o objetivo final, e acho que muita gente percebe isso, mas ele também não deve ser visto como um suavizador da exploração do capital sobre o seu povo. Um governo deve ser visto como uma ferramenta muito potente de mudar certos rumos na história da sociedade. Pra isso requer nitidez de como atacar, de onde atingir e pra onde queremos avançar.

Instrumentos ideológicos devem ser disputados ou produzidos para confrontar a ideia de que o capitalismo é a única alternativa: aprimorar a regulação de cooperativas, mas também aumentando a fiscalização e o financiamento público sobre elas; aumentar valores de financiamento da imprensa alternativa não apenas com publicidade, dando maior poder em narrativas contra-hegemônicas, assim como da mídia de forma geral; auxiliar na estruturação e financiamento de moedas locais, entre outros exemplos de iniciativas que rompam a lógica.

Estruturar e viabilizar Poder econômico aos oprimidos é o que o capital mais teme, porque esse Poder é a maior ferramenta de opressão da classe dominante. Caminhar para um pós-capitalismo se faz cada vez mais urgente, tanto pelo planeta, quanto pela humanidade. Programas de governo ajudam a mostrar o nosso lado, mas não mudam consciências para uma nova hegemonia, somente a prática ousada de novas formas de construir outra sociedade contribuirá pra superar o sistema financista.

* Servidores público, bacharel em Administração Pública e Social

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira