Rio Grande do Sul

ATIVISMO DIGITAL

'O software livre pode combater o controle que as corporações têm sobre as nossas vidas'

Marcelo Branco e Uirá Porã mostram como os gigantes da internet lucram com os dados pessoais que entregamos a eles

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Os ativistas digitais foram entrevistados no programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato - Reprodução

A proposta do Movimento Software Livre obteve a maioria dos votos na categoria Ciência, Tecnologia e Inovação, do Plano Participativo Plurianual. É o PPA que estabelece as diretrizes, objetivos e metas do governo federal, o que engloba os investimentos em cada área.

Por conta disso, Brasil de Fato RS conversou com dois expoentes do movimento, Marcelo Branco e Uirá Porã. Nas respostas da dupla, muitos temas afloram como, por exemplo, a retomada do software livre como proposta política, o avanço da ultradireita nas redes sociais, a entrega pelas pessoas de seus dados ao Google, a ameaça das fake news, o conteúdo de ódio que ativa o engajamento, o software livre ajudando a construir uma democracia mais participativa.

Neste sentido, está sendo criada a Federação Software Livre Brasil (FederaSol), uma estrutura institucional colaborativa, com o objetivo de fortalecer a Cadeia Produtiva de Software Livre no país e contribuir para a construção de um Serviço Digital Brasileiro de baixo pra cima. A primeira reunião ocorre nesta sexta-feira (21), das 15h às 16h30, em formato virtual. Para participar, acesse o site Plantaformas e confirme sua presença.

A seguir, confira a entrevista com Marcelo Branco e Uirá Porã:

BdF RS - Uirá, falando desse movimento que está ressurgindo das cinzas, o do software livre, como  está sendo essa retomada?

Uirá Porã - Na verdade, o Marcelo foi quem melhor traduziu o momento de re-união para reconstrução. O software livre não acabou. Foi o governo brasileiro que deixou de olhar e priorizar essa pauta. Os movimentos, inclusive, continuaram e avançaram. Agora, nesse processo de novo governo e de nova esperança, foi interessante se criou uma perspectiva de retomada. Ficou parado até esse momento da retomada do software livre no governo federal, que foi a implantação da plataforma do PPA.

Marcelo pode contar esse pedaço da história. Já rolou até uma discussão do quanto o governo agora adotou o Decidim. Você é o cara que acompanhou. Não sei se você fez parte da suruba de ideias que gerou ou se simplesmente foi parteiro do processo...

No governo Olívio Dutra, pela primeira vez o software livre entrou na pauta política

BdF RS - Marcelo, como está essa retomada?

Marcelo Branco - Vou contar um pouco da ancestralidade do software livre no Brasil. Começou aqui em Porto Alegre durante o governo do Olívio Dutra no 1º Fórum Internacional de Software Livre (FISL). Até aquele momento havia o movimento de software livre com programadores, hackers, desenvolvedores, tradutores, mas não tinha uma visibilidade pública. Como a gente deu importância nesse governo, a partir da Procergs (companhia de TI do estado) com o (Marcos) Mazoni - eu era o vice-presidente - construímos o I Fórum e trouxemos o criador do movimento, Richard Stallman. O encontro teve uma repercussão grande. Um projeto de lei do (deputado) Elvino Bohn Gass aprovou o uso de software livre na administração pública estadual. Pela primeira vez o software livre entrou na pauta política no Brasil.

Em seguida, por iniciativa da prefeitura de São Paulo, na gestão da Marta Suplicy, o Sérgio Amadeu assumiu a coordenação dos telecentros de São Paulo. Então, tínhamos dois grandes polos de software livre dentro de governos politizando a questão. Quando nós ganhamos o governo federal (2002), a gente conseguiu ter pessoas em lugares chaves. Sérgio Amadeu passou a ser presidente do ITI, o Instituto de Tecnologia da Informação. Era o cara do governo no software livre, tinha carta branca, enfim.

Todo esse movimento se nacionalizou e o Brasil começou a ser uma referência internacional protagonista, o Brasil e a Espanha. Entre o início no Rio Grande do Sul e os telecentros de São Paulo, uma das regiões mais pobres da Espanha, a Extremadura, também adotou o software livre como política de governo. Então, tínhamos na Espanha o LinEx, Linux de Extremadura, a prefeitura de São Paulo e o governo do Rio Grande do Sul. O movimento passa a fazer pauta dos políticos. Todos queriam apresentar projetos de lei em relação ao software livre.

Essa luta não foi muito fácil no governo federal, nem no governo do estado. Era sempre uma batalha. Havia denúncias vindas de dentro do governo de que estavam comprando licenças, usando software proprietário e a gente conseguiu reverter todas. Nos dois governos do Lula, o governo não comprou nenhuma licença de software proprietário. Priorizou o software livre e usava o software proprietário naquelas licenças herdadas de governos anteriores.

Infelizmente, parte das pessoas que estavam com a gente aderiu ao bolsonarismo

Depois veio a Dilma e isso mudou um pouco. Quando veio o Temer e depois esse governo fascista foi muito difícil se manter atuante em nível institucional. Continuou-se desenvolvendo programas, códigos, criando soluções, mas sem a participação da esfera pública.

O lema que botávamos em todos os e-mails - naquela época não tinha rede social – era "Rio Grande do Sul, território livre do software livre e livre de transgênicos". Criou-se um grande movimento tendo como núcleo os desenvolvedores e teve uma ampliação muito grande no Brasil. O fórum de software livre reunia 10 mil pessoas em Porto Alegre e aconteceu durante 17 anos seguidos. Não conheço um evento que conseguiu se realizar por 17 anos com essa dimensão. Agora, a gente está retomando.

Infelizmente, parte das pessoas que estavam com a gente aderiu ao bolsonarismo. O movimento software livre sempre foi antissistema, sempre questionava as formas de funcionamento das estruturas institucionais fracionais. Dizíamos ´Temos que hackear o sistema, temos que hackear as instituições, temos que hackear o governo`. Fazer com que o governo pudesse agir de forma diferente como sempre agiu e que as instituições fossem transformadas a partir dessa visão da liberdade do conhecimento com ferramentas mais fáceis de participação. Claro que esse antissistema da extrema-direita também estava ali talvez como germe…

Não foram os caras da IBM que construíram o software livre. Foi a contracultura da internet

No governo Lula, neste momento não temos ainda uma porta de entrada. O movimento está tentando se organizar para procurar incidir de fora para dentro do governo. Uma coisa muito importante é que ele começou bem localizado. O principal sistema desenvolvido ou impulsionado para esse governo novo do Lula é o da participação social. O plano plurianual está sendo debatido através da plataforma Decidim.

O orçamento participativo que o companheiro Bira (Ubiratan de Souza) aqui do Rio Grande do Sul está tocando, também vai ser debatido através do Decidim. É uma plataforma (de participação eletrônica) construída por uma comunidade. Não tem um dono, não é de uma empresa. Nasceu em Barcelona. Já foi usado em várias cidades como Madri e Barcelona. A prefeitura de Rio Grande, no interior gaúcho, utilizou o Decidim. As votações no Decidim do gov.br são seguras e certificadas porque usa para autenticação a plataforma oficial do governo federal, essa em que a gente tem as nossas carteiras de motorista, os atestados de vacina. Não há possibilidade de fraude, de dupla votação,etc.

BdF RS – É nessa plataforma do Brasil Participativo que está a proposta `Inovação e liberdade no serviço digital brasileiro, soluções livres para desafiar big techs com ancestralidade, solidariedade e felicidade para todes`. Uirá, conta um pouco dessa proposta?

Marcelo - O software livre é da contracultura da internet. Não foram os caras da IBM de gravata que construíram o software livre. Era a cultura californiana, os hippies. Por isso é que tem uma dinastia hippie. O pai do Uirá era hippie e por ele tem esse nome maravilhoso.... Ele tem essa origem na contracultura, nos movimentos alternativos.

Quem criou a internet foi a cultura colaborativa que juntou hippies, cientistas...

Uirá - Marcelo, foi muito bom te ouvir contando essa história e saber que ela vai estar registrada e que a galera, que está agora retomando e descobrindo o movimento, vai saber dessa ancestralidade. Você colocou que o hacker era contracultura. Tenho uma teoria diferente. Acho que, na verdade, o capitalismo é a contracultura que está dominando a internet.

Quem criou a internet foi a cultura colaborativa que juntou o movimento hippie, o movimento de cientistas, movimentos libertários, e inclusive a galera da inteligência que se misturava ali com movimentos lisérgicos. Se a gente olhar a questão da ancestralidade, ela deveria ser uma questão essencial do design. Esta revolução que a gente vê dos aplicativos e tal, boa parte disso tem a ver com o design. Ou seja, projetar um aplicativo com qual propósito? Fizeram um modelo de design orientado para gerar dependência cognitiva nas pessoas. São modelos de negócios específicos do sistema capitalista naturalmente.

O pessoal fala de economia de plataforma. Para mim o nome disso é hipercapitalismo. A gente tem a possibilidade alternativa do cooperativismo de plataforma. Tem mais a ver com a cultura natural da internet. A internet foi pensada, desde o início, como algo distribuído, como uma rede que interconectava inteligências e pessoas para construções comuns. Até que um dia o infeliz do Bill Gates mandou aquele e-mail...

Até 1995, o Bill Gates dizia que a internet não tinha utilidade nenhuma

Marcelo - Em 1995, o Bill Gates manda um e-mail dizendo que a internet não servia para nada. Três momentos salvaram a internet. Primeiro, quando os militares a descartaram como projeto. Então, a internet não é um projeto militar. É um projeto financiado pelos milicos, mas todos os participantes do desenvolvimento não eram militares. Eram acadêmicos, eram hackers, que estavam lá no início. Descartaram e entregaram para a ITT (International Telephone And Telegraph) e a empresa também disse que não serve para nada. E a terceira vez envolveu o Bill Gates.

Até 1995, o Bill Gates dizia que a internet não tinha utilidade nenhuma. Isso garantiu um processo livre dessas grandes corporações no surgimento inicial da internet. O software livre e a internet são crias dos mesmos criadores. É por isso que a internet existe sem precisar pagar royalties, sem precisar pagar direito autoral. Todos os protocolos, tudo o que faz a internet funcionar não tem dono. O dono é a humanidade. Por isso é que ela se desenvolveu com essa velocidade e com essa inovação porque é tudo colaborativo.

Não estamos vivendo só mais uma onda da revolução industrial e sim a sua superação

O hacker Eric Raymond escreveu uma obra, A catedral e o bazar, que a gente leu bastante. Até o software livre, até a internet, o modelo de desenvolvimento industrial dos programas de computadores era feito de forma hierarquizada. O desenvolvimento de cada parte não se conectava e tal, como se fosse uma catedral. E o software livre, essa linguagem que ele utilizou, é um bazar. Tu sais buscando o código para compor o teu programa que está numa feira. Não existe uma única solução para o mesmo problema. O mesmo problema pode ter várias soluções feitas por várias pessoas. Essa dinâmica da internet, a dinâmica de software livre, proporcionou uma evolução rápida de todo o processo.

Citando Manuel Castells, vivemos hoje em uma sociedade em rede, uma sociedade diferente do modelo industrial, aquele produzido com a revolução tecnológica industrial. É uma mudança de era. Não estamos vivendo só mais uma onda da revolução industrial e sim a superação da revolução industrial por um novo modelo. Como as instituições se reorganizam a partir desse novo patamar, há uma resistência. Mesmo em instituições dirigidas por progressistas de esquerda, existe uma resistência a essa inovação que a internet pode proporcionar. Por outro lado, a direita, principalmente a extrema direita, percebe como isso funciona e hoje dá pra dizer que está na frente, que domina muito essa nova forma de comunicação.

Acho importante essa fala, de que a internet e o software livre são crias dos mesmos criadores. Se não tivesse o software livre não tinha a internet. E, se não tivesse a internet, o software livre seria muito difícil porque as primeiras distribuições do software livre se faziam através de fitas que viajavam de avião.

O Linux para chegar nos Estados Unidos - aquela fita com o sistema operacional -  não tinha redes para fazer o compartilhamento. Quando chegou a internet, chegou a vez do Linus (Torvalds), um estudante finlandês no primeiro ano de ciência da computação, terminar o primeiro sistema operacional livre da história em 1995. Mas que tem parte importante desenvolvida pela comunidade GNU, do Richard Stallman, desde 1985. Não é só o Linux, é GNULinux, que pega todo um trabalho de uma comunidade anterior em que um jovem isolado, sozinho, em casa, termina a obra. A sorte da humanidade é que ele termina essa obra - não era um ativista, era um programador - e resolveu botar a licença do Stallman, a licença GPL, a licença pública geral no Linux, então o Linux deixou de ser do Linus e passou a ser da humanidade também.

No Brasil, vivemos esse processo, o melhor momento do software livre no mundo inteiro. O Brasil era o protagonista. Fomos convidados para conferências internacionais, na Unesco, em todos os lugares para falar da experiência brasileira. Temos uma comunidade de desenvolvedores bastante grande. Não sei hoje a quantas andamos, mas na época do FISL, só de desenvolvedores da linguagem Java, tínhamos 80 mil no Brasil. Imagina a linguagem C, que é mais popular. Somos centenas de milhares de programadores, ativistas não são todos, mas que programam, metem a mão no código e concordam em dividir o seu conhecimento. Não dependemos de ninguém do exterior, colaboramos com as pessoas do exterior, mas estamos construindo uma inteligência própria. Como isso pode gerar emprego, renda, novas empresas que trabalhem nessa perspectiva? Esse era o nosso trabalho quando o Lula estava no governo nos dois mandatos anteriores e é o desafio agora também. 

BdF RS - E essa proposta traz respostas para isso, Uirá?

Uirá - A proposta tem um conjunto de coisas porque é muita história. O serviço digital brasileiro tenta sintetizar isso...

Gilberto Gil foi o ministro (de Lula) que mais assumiu o software livre

Marcelo - No governo da Dilma aprovamos o marco civil, que é a lei mais avançada do mundo em relação à internet.

Uirá - E o marco civil já foi feito numa plataforma colaborativa, num serviço digital brasileiro, no ministério da culturadigital.br, que inclusive saiu do ar.

Marcelo - Era tão hacker o negócio que era um projeto de lei. Não estava no Ministério da Justiça, no Ministério da Ciência e Tecnologia ou no ministério de qualquer coisa, mas estava no Ministério da Cultura. É importante salientar a importância que teve o ministro hacker Gilberto Gil nesse processo. Foi o ministro que mais assumiu o software livre. Nós nos entrincheirávamos no Ministério da Cultura. O Gil teve esse papel. Queria lembrar outra pessoa que também teve um papel importante que foi o José Celso Martinez Correia. O que que tinha a ver esse cara com o software livre? Tudo, ele estava lá. O Jorge Mautner sempre esteve com a gente. Conseguimos botar a tropicália dentro do movimento tecnológico.

Quando vais ali na farmácia e pões CPF na nota, estás entregando os teus dados

Marcelo - Quais os problemas que estamos vivendo na internet? A internet é maravilhosa, a internet livre como foi feita, desenvolvida, ela não tem os problemas das fake news, das bolhas. Eles não estão na internet. Estão nessas plataformas. Estão acima da internet.

Alguma coisa precisa mudar na internet? Não, a internet tem que continuar livre como era. O que precisa regular são as plataformas. Alguém que se instalou em cima da internet e passou a ter domínio. Quatro ou cinco empresas tem domínio sobre a comunicação global. Facebook, Twitter e, agora, o Threads entrando no negócio. Mas tudo isso são serviços prestados em cima da internet. E nós orientávamos lá no início do software livre, em 1999, 2000, que precisávamos conhecer o código-fonte para que não houvesse o que está se passando. Hoje a gente entrega os nossos dados pessoais. Eram temas que estavam lá no nosso primeiro fórum. Mas nunca foi importante. Alguns jornalistas e pessoas pessoas de esquerda diziam assim: "Eu não me importo que me espionem. Não tenho nada a esconder". Era esse o papo. Olha o que esse tipo de comportamento significa hoje...

Quando vais ali na farmácia e pões o CPF na nota, estás entregando os teus dados. Eles fazem uma ponte com o teu consumo do supermercado, com teu plano de saúde, com a tua compra de remédio. Então vendem teus dados pessoais. O grande negócio hoje dessas corporações é a venda de dados privados. Oitenta e nove por cento da receita do Google é em publicidade e as pessoas acham que publicidade é aquela de botar bannerzinho. Não, isso aí é do tempo antigo. A publicidade que alimenta o Google está nesses dados personalizados que ele entrega para as agências de publicidade.

Para o Google, Facebook e Twitter, o coração do negócio é fornecer informações pessoais customizadas para indústria publicitária. E quando isso chegou na política a partir do Brexit - quando a extrema direita consegue ganhar e retirar o Reino Unido da União Europeia – foi através do uso intensivo de dados pessoais armazenados e manipulados. De uma forma que faz essa manipulação de massa que a gente viveu com a vitória do Bolsonaro, a vitória do Vox na Espanha etc.

Podemos estar almoçando e sendo escutados mesmo sem estarmos usando nenhum aplicativo

Tudo isso virou um grande produto. Se a gente fala alguma coisa aqui, daqui a pouco vai estar no anúncio do Facebook. Então, os microfones estão abertos. (O ativista Edward) Snowden anunciou isso: os microfones dos nossos smartphones e as nossas câmeras estão abertas.

Podemos estar almoçando e sendo escutados mesmo sem estarmos usando nenhum aplicativo. Por isso a gente fala alguma coisa na janta e aparece ali na publicidade em seguida. Esses caras estão lendo meus pensamentos? Não, é o microfone do celular que está aberto. Eles abrem e fecham a hora que bem entendem. Tudo faz parte de uma cultura tecnológica fechada em que os usuários não tem direito de ver os programas que estão utilizando. Ou como estão vendendo e comercializando nossos dados pessoais.

BdF RS - E a gente está discutindo agora o projeto de regulamentação que trata das fake news, o PL2630, e as próprias plataformas estão influenciando o debate, com um claro abuso de poder econômico.

Uirá - É interessante isso para nós do movimento software livre. A gente já explicava o quanto era importante construir essa alternativa, um caminho da soberania. Temos feito um debate, incluindo o movimento software livre, os pontos de cultura, de inclusão digital, pautando essa questão da soberania digital.

Marcelo -  O movimento hip hacker em São Paulo, que era o pessoal do hip hop que começou a programar, começou a instalar programas de computadores. A ideia do ponto de cultura ter como base o software livre, a cultura digital, fez com que várias comunidades, que não eram digitais, passassem a ter esse processo de digitalização, como os quilombolas, o movimento hip hop, os sem-terra. Formamos vários sem-terra aqui no início dos anos 2000. A gente fez oficina de formação, chamamos hackers e pegamos sem-terra para aprender. Formamos sem-terra também como pessoas capazes de ser hackers e de instalar software livre. Foi um movimento bem bonito de integração e de massificação do processo.

Com essa ideia do PPA a gente quer chamar a atenção. A proposta foi elaborada inicialmente pelo Uirá. Como da outra vez, a gente está a fim de entrar para discutir em todos os ministérios. A gente precisa penetrar de fora para dentro para que se possa ter o software livre forte no Brasil de novo. Se tivermos uma cadeia produtiva de pequenas e médias empresas, que são as mais inovadoras em tecnologia... A inovação se dá na garagem...

A ideia é criar um ecossistema capaz de fazer com que essa inovação das pequenas e médias empresas sobreviva e crie uma cadeia capaz de oferecer serviços de software livre ao governo e à iniciativa privada de forma bastante consolidada. Também precisamos chegar ao Ministério da Indústria e Comércio.

Não queremos que a Dataprev ou o Serpro assumam todas as empresas públicas. Queremos os padrões abertos

BdF RS - Essa proposta está dentro do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação? Já foi aceita,  ou seja, é uma proposta habilitada para ser analisada pelo ministério?

Uirá - Ela foi enviada ao governo. O ministério da área é o que faz a análise e que vai ter que dar uma devolutiva. Essa devolutiva pode ser "Não tem nada a ver software livre com o governo brasileiro, tchau", ou pode ser, "Tem tudo a ver, vamos conversar". As cinco propostas mais votadas e sugeridas pela população vão ser convidadas pelo governo para ir até o Fórum Interconselhos, que é o momento final desse processo participativo do PPA. Lá os representantes terão um tempo para defender suas propostas. Isso depois segue. Tem mais duas etapas que é para o governo fechar o projeto. A partir dessas escutas todas, o governo submete o projeto ao Congresso.

A gente não quer, como algumas pessoas podem achar, que a Dataprev ou o Serpro assumam todas as empresas públicas. Pelo contrário, queremos os padrões abertos. Ao adotar códigos abertos, softwares livres, você cria um ambiente totalmente possível de interoperabilidade e de redundância. Não queremos que o governo centralize tudo. O software livre não pressupõe isso, e a internet não pressupõe.

A internet é uma tecnologia que, quanto mais dispositivos se conectam, mais rápida fica. Organizar a cadeia produtiva junto com a organização do governo é essencial. Daí o governo precisa de e-mail, de ferramentas de transmissão ao vivo, de videoconferência, de ferramentas de rede social e a gente se acostumou a achar que é normal só ser de grande empresa, sendo que isso pode ser comunitário, local, quanto mais melhor.

Sabe o que é inimaginável? É o Google dominar todas as universidades brasileiras

BdF RS – É inimaginável que um Google, o valor do Google é maior do que o PIB de muitos países. Quer dizer, o domínio que esses caras estão tendo no mundo…

Uirá - Sabe o que é inimaginável? É o Google dominar todas as universidades brasileiras. É uma questão de segurança, inteligência e soberania nacional. As universidades pegaram o serviço gratuito entre muitas aspas do Google e ele faz rapina de dados. Pega aquilo ali para ter uma massa de dados que ele usa. É um processo de libertação que depende de uma quebra aí e, principalmente, de uma consciência tecnopolítica das pessoas e das gestoras e da sociedade como um todo.

Marcelo - O papel do software livre também é importante para esse outro conceito que a gente construiu um pouco depois, que é o da tecnopolítica. É o conceito que acho que até a extrema-direita, de certa forma, se apropriou dele. Essas revoltas que aconteceram em Túnis, a primeira, depois a Primavera Árabe, a Spanish Revolution que virou o Movimento 15-M, o Occupy Wall Street, o Yo Soy 132 no México. Todos esses movimentos que surgiram depois, 2013 no Brasil, muito questionado, mas também é um movimento típico de explosão, e há estudos tecnopolíticos que analisaram o funcionamento dessas redes durante esses processos de revoltas nesses países.

A tecnopolítica tenta compreender e colocar no cenário da política a tecnologia. O Decidim é isso: a gente quer que as pessoas participem mais da vida pública. O presencial é importante e insubstituível. No entanto, as plataformas digitais, no caso o Decidim, possibilitam que mais pessoas participem. Ele é mais inclusivo e todo mundo diz: "Mas nem todo mundo tem computador"... Mas nem todo mundo tem dinheiro para pegar um ônibus e viajar 200 quilômetros para participar de uma reunião.

Pegas um bolsominion na fila do Zaffari ou em qualquer lugar e esse cara acredita em coisas inacreditáveis

A tecnologia limita a participação? Não, ela possibilita que mais pessoas participem. O Decidim, essa primeira experiência do governo em botar na roda o plano plurianual através de uma plataforma digital, dá para ver os números ali, quantas pessoas já participaram. Isso possibilitou o carinha lá no meio do Pantanal, o cara lá na periferia de tal cidade que não tem como se deslocar para uma reunião presencial, participar ativamente do processo. Não há uma concorrência entre o presencial e o online porque há necessidade que haja uma complementação, os dois modelos.

Não dá mais para pensar no mundo em pleno século 21 nas coisas sendo feitas só da velha forma, da forma analógica, onde as instituições pouco a pouco entram no parlamento. É uma forma de hackear também o sistema da democracia, construir uma democracia mais participativa, de que o software livre, e hoje a plataforma de participação social do governo, está dando um exemplo concreto. Imagino isso em todas as áreas.

Existe todo um potencial que o software livre proporciona para combater essa hegemonia, esse controle que as plataformas das grandes corporações tem sobre as nossas vidas hoje. Não é algo pequeno. O que tem sido feito nesse cenário é uma manipulação de massa. Aquelas pessoas ainda estão lá dormindo dentro daquele WhatsApp do Bolsonaro, mesmo que tenha acontecido tudo isso. Que a Globo, o Estadão, o monopólio da comunicação dizendo que os caras estão errados mas ele acredita naquela bolha dele. São caras totalmente fora da realidade. Tu pegas um bolsominion na fila do Zaffari ou em qualquer lugar, na família, e esse cara acredita em coisas inacreditáveis. É uma manipulação de massa construída a partir de plataformas fechadas.

Facebook, Twitter e as redes sociais escolhem o que a gente vai ver e não o que a gente quer ver

Quem escolhe o que vamos ver são os algoritmos e quem escolhe quais são os algoritmos em funcionamento são as plataformas. No Facebook, no Twitter e nessas redes sociais, escolheram o que a gente vai ver e não o que a gente quer ver. Na internet não. Se tu entras na internet vês tudo. Mas as plataformas te limitam porque o algoritmo de aparição decide que eu só vou ver os meus amigos. Só vou ver aqueles que concordam comigo.

Essas câmaras de eco tem produzido e ajudado no discurso do ódio. Nos grupos bolsonaristas que eu acompanho é isso. Os caras passam o tempo inteiro insistindo. São arrogantes e boçais. Acreditam que toda a humanidade é que nem eles porque vivem dentro daquela bolha. Acreditam que o Lula é ladrão. Daí tu perguntas: "Me diz duas coisas que o Lula roubou?" Eles não sabem dizer. Mas é ladrão.

Tem cara que está rico porque propaga discurso de ódio. Quem paga? O Google

Então, a regulamentação das plataformas não é regular conteúdo. Não se trata disso. A regulação das plataformas é o seguinte: o conteúdo que garante a monetização das plataformas, já que elas vão ganhar dinheiro com aquele conteúdo, não pode ser um conteúdo de ódio. Hoje botar um conteúdo de ódio no Youtube ou no Facebook vai gerar engajamento e esse engajamento remunera as plataformas e remunera o cara que fez. Tem cara que vive do discurso de ódio. Está rico porque propaga discurso de ódio. Quem paga? O Google. Então, é óbvio que quando essa lei da regulação das plataformas coloca que em conteúdos patrocinados etc a responsabilidade é dos provedores. Lá no marco civil da internet, a gente foi contra.

Naquela época estávamos reafirmando essa ideia de que quem pode retirar conteúdo da internet do ar é o estado democrático de direito, o poder judiciário, a partir disso aciona a polícia federal, vai lá, ou notifica a empresa e ela retira esse conteúdo. Mas claro que, depois de toda essa manipulação que das fake news, estamos abrindo exceção. Algumas coisas sim precisam ser regulamentadas, em algumas coisas sim as plataformas são responsáveis. Quando que ela é responsável? Quando há uma decisão judicial e ela não retira, ela é responsabilizada. Quando esses conteúdos são patrocinados, a plataforma tem que ser responsabilizada pelos conteúdos.

Se eu fizer um discurso de ódio no Google tem que ter alguma coisa que enquadre isso. Nosso medo era que a empresa privada retirasse o conteúdo por conta própria. Não é o seu papel decidir o que podemos ver e o que não podemos. Custou ao movimento software livre aceitar essa ideia de que tínhamos que abrir mão.

A gente conseguiu destruir a internet mais rápido do que o planeta

BdF RS -  Mas esses pontos já foram retirados do projeto. A questão dos direitos autorais foi para um outro projeto da Jandira Feghali para ser mais discutido. Mas enfim, a gente precisa voltar àquele sonho que se tinha quando estava nascendo a internet de que ela iria democratizar as formas de comunicação e facilitar a nossa vid, e não nos deixar doentes e vivendo num mundo paralelo. Uirá, quem quiser se integrar ao movimento de software livre, tem um grupo? É no Telegram?

Uirá - Temos um grupo no Telegram, tem no Matrix, porque a diversidade é essencial e aí tem várias opções. Mas eu queria reforçar isso que você colocou. Pontuar que a grande rede social que conecta as pessoas é a internet. Ela é a floresta e o planeta e a natureza das ideias que está sendo profundamente devastada e poluída. A gente conseguiu destruir a internet mais rápido do que o planeta.

A internet está virando uma coisa que faz mal às crianças. Tenho que lidar com o fato dos meus filhos usarem a televisão com Youtube, que é uma coisa que faz mal. Você dá bom dia pra pessoa com quem você mora no WhatsApp.  Manda um conjunto de impulsos eletromagnéticos daqui pra Califórnia e volta quando a internet permite coisas muito mais inteligentes.

Marcelo - Vamos hackear o governo. Temos que hackear o governo e botar software livre em todos os ministérios.

Abaixo, você pode assistir a entrevista completa:


Edição: Ayrton Centeno