Rio Grande do Sul

ARTE E CULTURA

'Afro e indígena são as duas matrizes da música brasileira'

Dessa Ferreira fala da produção musical no país e explica gênero que marca o seu primeiro álbum

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Cantora, compositora e percussionista, Dessa Ferreira lança o disco "Pulso" neste final de semana na capital gaúcha - Foto: Luis Ferreirah

Após muitas andanças, Dessa Ferreira volta a Porto Alegre, cidade em que a brasiliense fez morada, para apresentar o seu trabalho autoral. Serão duas noites no teatro com a apresentação de suas canções, reunidas em torno do gênero afro-indígena contemporâneo e do repertório do seu novo disco, "Pulso".

Em entrevista ao Brasil de Fato, a cantora, compositora e percussionista conta um pouco da sua trajetória, que passa por coletivos artísticos, como o grupo Três Marias, até chegar ao trabalho solo. Também fala sobre levantar essa bandeira da música afro-indígena: "são as duas matrizes da música brasileira". E explica: "não é que não tenha atravessamento da música europeia, nem de outros povos que chegaram aqui, mas a música brasileira é essencialmente negra e indígena".

No show, para trazer essas sonoridades ancestrais, contará com instrumentos tradicionais, como os tambores ilu, djembe e dunun, em arranjos mesclados com guitarra, contrabaixo e bateria. A banda será composta por Ìdòwú Akinruli, Thais Lemos, Dona Conceição e Wagner Menezes. Também serão exibidos no teatro três videoclipes que produziu para o projeto Natura Musical.

 

Brasil de Fato RS - Você acaba de voltar de um festival em sua terra natal, Brasília. Como foi?

Dessa Ferreira - Participei do festival Latinidades, que acontece há uns 15 anos. A programação estava incrível. Elas conseguiram fazer uma curadoria bem legal, mesclando gerações, trazendo a Buika, a Dama do Pagode, a Letícia Fialho, a Flora Matos. Esses foram só os shows que rolaram no sábado, mas, ao longo da semana, teve mesas de conversa. O tema deste ano era Bem Viver. A minha mesa foi com a Bixarte, que é uma rapper paraibana trans, e a Brisa Flow, que é uma rapper indígena. Falamos das nossas histórias, do quanto a música nos salva e ajuda a ter expectativas para o futuro, criar futuros, imaginar coisas para além.

BdFRS - Que percepção você traz de encontrar artistas de diferentes cantos do Brasil? Que momento é este da produção musical?

Dessa Ferreira - A gente está num momento pós-pandemia, muitas coisas mudaram. A gente teve que se aperfeiçoar e adentrar um pouco mais nessa questão tecnológica. Porque era isso, ou a gente deixava de trabalhar. Os editais passaram a ser emergenciais e à distância. Então, tinha que filmar um show. Antes, eu não tinha nenhum conhecimento audiovisual. Agora eu tenho algum, porque eu venho trabalhando cada vez mais com isso.

O contexto de uma pessoa que nasce na periferia e sempre viveu na periferia é muito diferente de quem nasceu dentro de um condomínio classe média

BdFRS - Você percebe um aumento na representatividade de mulheres negras e indígenas nos programas de incentivo à cultura?

Dessa Ferreira - Depois que fui selecionada no Natura Musical, fui ver o corpo de curadoria e lá dentro tinham pessoas indígenas, negras, periféricas. Então, faz muito sentido. Aí começa a ter acesso. Porque quando a gente vê no corpo de curadoria as mesmas pessoas, e geralmente são pessoas brancas, acaba que escolhem uma ou outra pessoa negra, mas não traz essa diversidade.

Porque a subjetividade, o contexto de uma pessoa que nasce na periferia e sempre viveu na periferia é muito diferente de quem nasceu dentro de um condomínio classe média. Então, por mais que você tenha abertura e até uma mínima consciência de classe, você, às vezes, não considera o que a pessoa está fazendo enquanto uma arte que tem valor. E esse juízo reflete muito no resultado das seleções.

BdFRS - Como foi o processo criativo do álbum, voltado para o seu trabalho autoral, mas com um coletivo por trás?

Dessa Ferreira - Até eu entender e tomar coragem de me lançar enquanto artista solo, enquanto Dessa Ferreira, foi um processo. Até então, não sentia essa necessidade. O que fez eu realmente parar para pensar nisso foi quando tive a oportunidade de gravar músicas que eu compus, mas que não se encaixavam dentro de nenhum projeto que eu participava. Porque eram de uma trajetória muito pessoal, talvez, que não representava todo mundo dos coletivos.

Outra experiência que me fez pensar mais nisso foi uma residência artística em 2019, do projeto Concha. Foram 15 mulheres selecionadas para pensar sua carreira, criação, composição. E dali saíram vários trabalhos. A Carina Levitan estava, Rita Zart, Nina Nicolaiewsky, Kaya Rodrigues, que foi quem fez a direção do meu primeiro videoclipe, Nina Fola, que é uma das parceiras de composição que está nesse álbum.

BdFRS - Seria um processo artístico mais íntimo, mais seu, e que você acaba colocando como música afro-indígena? De onde vem essa definição?

Dessa Ferreira - Eu venho de uma família que é piauiense, minha família migrou para Brasília nos anos 1970. Eu ainda tenho parentes no Nordeste. Eu cresci nessa família que é católica, mas por muito tempo não me identificava com a religião em si, apesar de admirar muito várias coisas ali. As minhas tias cantando ladainhas, cantando os louvores, também foi um lugar de musicalização para mim.

Com 12 anos comecei a tocar violão, e também já escutava reggae, rock e outros ritmos. Em casa, escutava muita música nordestina, muito forró nas festas de família. Aí eu conheci um senhor pernambucano, o mestre Zé do Pife, que me apresentou as percussões da banda de pífano. Essa convivência e os tambores foram me abrindo para essa consciência de raízes.

A minha família, por mais que também tenha muita conexão com as suas raízes, eu sinto que passou por um movimento, até por certa xenofobia de nordestinos em Brasília, de se afastar um pouco disso, para tentar ser mais aceita. Então, o Seu Zé já foi uma pessoa que me fez parar para pensar e ter orgulho dessas origens. E para além disso, me entendendo enquanto uma pessoa negra, enquanto uma pessoa que tem uma origem indígena também, mas que é pouco falada, que tem vários apagamentos, vários silenciamentos. Para pensar essa sobrevivência dentro de uma sociedade que é racista.

Não tem como não ter nenhuma influência indígena na música brasileira

BdFRS - E no Sul, como é que você conecta essas raízes?

Dessa Ferreira - Chegando aqui no Sul, eu me conecto cada vez mais com pessoas do movimento negro, como a Nina Fola, o mestre Guto, que é meu mestre de capoeira, mestre Iara, mestre Paulinho Romeu, lá do Afro Sul Odomode, Pamela Amaro, Glau Barros, a própria Silvia Abreu, que é minha produtora. Essas pessoas que me acolheram aqui. Sempre troquei artisticamente com elas. E são pessoas que estão dentro das discussões de raça, de cultura, dentro das discussões que trazem essa conscientização e esse letramento. Então, no Sul, eu realmente me aprofundei mais dentro desse conhecimento. Entender o meu lugar. E poder elaborar, refletir e discutir com mais profundidade, com mais base teórica, inclusive.

BdFRS - E a questão indígena, como acontece na sua trajetória?

Dessa Ferreira - É complicado a gente falar das referências indígenas, porque tem muita ignorância em relação a isso. Se for parar para pensar a música brasileira, se perguntar para qualquer pessoa: qual a influência indígena que a música brasileira tem? Ninguém vai saber dizer. Não é? E a gente está falando de uma música feita em um território que foi construído em cima de civilizações, de povos indígenas. Então, não tem como não ter nenhuma influência indígena na música brasileira. Através da minha vivência, principalmente com os tambores, e por ter vivenciado, ter entrado em territórios indígenas, por poder ter amigos indígenas, eu consigo visualizar isso e entender quais são as contribuições.

Os Kariri Xokós, se você for parar para ouvir, têm aberturas de vozes que lembram muito essa coisa sertaneja, claro, com uma característica mais específica, mas que tem essa voz bem impostada, e com essa abertura de terça, às vezes de quinta, que eles chamam de prima. E a cultura indígena também tem tambores, o que a gente costuma associar à cultura africana. Mas os Tupiniquins têm tambores, os Fulni-ôs têm tambores, os Xucurus têm tambores, o samba de coco tem origem indígena e eles têm tambores. Então, acho que o que falta é realmente a gente estudar isso, a gente ter acesso a essas informações.

Show
Pulso - Dessa Ferreira
21 e 22 de julho, 19 horas
Sala Olga Reverbel - Theatro São Pedro (Porto Alegre)
R$ 35 a 80


Edição: Katia Marko