Rio Grande do Sul

ARTIGO

Culturalizar a Política

'Culturalizar a democracia é garantir uma educação dos sentidos e dos valores éticos e estéticos'

Brasl de Fato | Porto Alegre |
"Não é a primeira vez que Balneário Pinhal aparece em manchetes em nível nacional por motivos de causar vergonha à população local" - Reprodução vídeo

O secretário de Formação Cultural, Livro e Leitura do Ministério da Cultura (MinC), Fabiano dos Santos Piúba, escreve que “Precisamos culturalizar a democracia*. Para além das políticas culturais, a cultura política. A democratização da cultura e a culturalização da democracia.” E prossegue: “ Culturalizar a democracia é garantir uma educação dos sentidos e dos valores éticos e estéticos como dimensões vitais para construção de uma sociedade mais justa e solidária. (...) é garantir o acesso e a acessibilidade aos bens e serviços culturais e artísticos como direitos básicos de cidadania, como parte essencial no imaginário coletivo do povo brasileiro e como vetor de florescimento social e econômico. (...) é compreender que é a própria democracia. Pois a democracia é uma construção cultural, histórica e social. Culturalizar a democracia é incorporá-la como um modo orgânico de ver e de conviver em sociedade. Pois a democracia é também um modo de vida social e comunitário, assim como é a cultura em sua diversidade.”

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Muitas vezes ouvimos frases eivadas de desesperança como “sempre foi assim”, “é melhor não se envolver” e “nunca vai mudar”, vindas de moradores de cidades pequenas. Há que se ter consciência de que o sentimento de impotência e de desesperança, além da desinformação e da falta de transparência são deliberadamente instrumentos para a manutenção do alheamento da população em relação às decisões e aos atos do poder público e da vida política de sua cidade.

É urgente refletirmos sobre esse tema e transformarmos a forma como a política é exercida em cidades menores, e até mesmo nas capitais, onde a elite dominante da política parece desejar que a população viva apartada de informações e de conhecimento sobre o mundo externo, além de seus limites geográficos. E parada no tempo. Há imensos déficits de democracia, de transparência, de cultura e de educação. Que não se confunda cultura com erudição! Trata-se de reconhecer e respeitar a pluralidade da sociedade. E de exercer a humildade para admitir que sempre se pode aprender sobre aquilo que não se sabe. Não é incomum em cidades pequenas o desconhecimento de avanços civilizatórios, como o respeito aos direitos humanos e a liberdade de organização da sociedade civil e da participação da sociedade, sem intimidações e nem coações por parte daqueles que detêm algum poder.

Balneário Pinhal é uma cidade pequena localizada no litoral do Rio Grande do Sul, a aproximadamente 80 km da Capital. E bem poderia ser manchete nacional por bons motivos, como ser a Capital do Mel no RS, se aqui ainda existissem abelhas e fomento à produção e de festivais gastronômicos à base do alimento fornecido pelas abelhas. Poderia ser palco de festivais de cultura, do incentivo à leitura, da boa prestação de saúde, do respeito aos veranistas, do pleno emprego, do respeito ao meio ambiente, etc., se assim fosse a realidade. Mas nada disso existe concretamente, somente na concepção de peças de propaganda institucional.

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Não é a primeira vez que Balneário Pinhal aparece em manchetes em nível nacional por motivos de causar vergonha à população local. O assunto da vez foi o uso da tribuna da Câmara dos Vereadores por um vereador da oposição para atacar a chefe do poder Executivo municipal com a mais virulenta misoginia. Não surpreende que a maioria das notas de repúdio à misoginia do vereador vieram sob a forma de enaltecimento do trabalho doméstico não remunerado, espaço e atividade aos quais historicamente o patriarcado relegou as mulheres.

No ano passado, entre o 1º e o 2º turno das eleições, o mesmo vereador convocou os comerciantes a demitirem funcionários que votassem em Lula. Noutra ocasião, a cidade foi manchete pela Intolerância Religiosa por parte da própria Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Houve o caso de um vereador, da situação, que ocupou a tribuna usando falas de conteúdo nazifascistas para questionar o resultado das eleições.

Não bastasse isso, continua insistindo em usar a expressão racista “Denegrir” – “tornar negro” como sinônimo de “difamar”. Porém não é o único a usar expressões preconceituosas e discriminatórias. Numa performance de intolerância religiosa e racismo religiosos, a única vereadora mulher atualmente, manifestou-se contrária à criação do Conselho Municipal de Povos de Terreira, que busca corrigir a falta de equidade de direitos das religiões de matriz africana, alvo de preconceitos e perseguições. Arguiu sua crença evangélica.

Apesar da escassez de médicos nos postos de saúde, a prefeitura não se inscreveu no programa “Mais Médicos” do governo federal, sem qualquer justificativa à população. Ao mesmo tempo, dissimula uma espécie de privatização local do SUS, ao contratar uma empresa que fornece médicos de modo terceirizado. Um dos médicos foi afastado após protestos da comunidade ante a descoberta que ele respondia a processos por erro médico que resultaram em morte de paciente. A espera por uma consulta nos postos de saúde (Estratégia de Saúde da Família, ESFs) demora meses. É de destacar que a prefeitura culpou os próprios munícipes pela fila tão demorada, porque “muitos faltam às consultas agendadas sem aviso prévio”.

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Balneário Pinhal figura como a última colocada no ranking da educação dentre os 23 municípios do Litoral Norte e é a 456ª posição entre os 497 municípios do RS.

Como se pode notar, posturas políticas toscas, autoritárias e ilegais não são deméritos de umas poucas figuras. É resultado de práticas políticas perpetuadoras do atraso da sociedade. Sabemos que os últimos 6 anos significaram o retrocesso no país, quando a extrema direita perdeu a vergonha de disputar a subjetividade rancorosa das pessoas, a despeito de pensarmos que até então avanços na direção à equidade de direitos se consolidariam.

A pergunta a se fazer é: como mudar essa triste realidade? Qualificar a política, culturalizando-a é um começo.

* O secretário do MINC cita frase da ministra Carmen Lúcia do STF.

** Graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas, defensora de Direitos Humanos, artivista cultural, ativista feminista e LGBTI, foi assessora do deputado Marcos Rolim na Assembleia Legislativa/RS, assessora do mesmo deputado na Câmara dos Deputados, foi assessora técnica na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República em 2003, foi assessora da Liderança do PT na Câmara dos Deputados, trabalhou na Biblioteca Pedro Aleixo da Câmara dos Deputados. Escreve a coluna “Vamos falar sobre cultura", no jornal Voz do Litoral Norte, de Balneário Pinhal, RS.

*** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko