Rio Grande do Sul

DIREITO À MORADIA

Falta de servidores dificulta andamento da habitação e regularização fundiária no estado

Estimativa é que no Rio Grande do Sul exista entre 168 mil e 300 mil famílias sem habitação

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Surgido entre os anos 1999 e 2000, o Assentamento Portal dos Pinheiros carrega uma história de mais de 20 anos de luta pela regularização fundiária - Foto: Jorge Leão

Em uma área de 23 hectares de uma zona urbana de Gravataí vivem cerca de 380 famílias no Assentamento Portal dos Pinheiros, primeiro território constituído pela luta do (Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Por Direitos (MTD) no Brasil. Surgido entre os anos 1999 e 2000, o local carrega uma história de mais de 20 anos de luta pela regularização fundiária. 

Sem calçamento, saneamento ou ruas definidas, o local tem quase 70% das casas construídas de madeira. Com água e luz clandestinas, essas famílias são constituídas de trabalhadores em sua maioria ligadas ao movimento. 

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Liderança do local, José Alencar, mais conhecido como Dico, conta que inicialmente o local era destinado para 21 famílias de trabalhadores desempregados, mas, com o passar do tempo, outras famílias de trabalhadores precarizados foram se instalando no território ocupado pelo MTD, chegando com mais de 340 famílias em 2016.

No final do governo Olívio Dutra (PT), de 1999 a 2003, foi concedido o termo de uso da área para 21 famílias de agricultores, sendo que a proposta inicial era que cada família recebesse um lote de 20x50 metros e o restante da área seria destinada para a produção coletiva. Após dois anos de ocupação, por reivindicação das famílias, esses terrenos foram aumentados para 20x100 metros.

“Desde 2012, 2013, estamos tentando junto com os órgãos, tanto do estado como da Prefeitura aqui de Gravataí, para a gente trabalhar a questão da regularização fundiária dentro dessa área. Mas a gente não conseguiu progredir nesses debates. Infelizmente está tudo parado. Não há nenhum movimento por parte do governo estadual e nem dos anteriores. Literalmente esquecido. Seria interessante se a gente conseguisse essa regularização até para as famílias ter ali o seu documento da sua casa própria, isso é bem importante”, reforçou Dico. 

Segundo o dirigente, nenhum metro quadrado até hoje foi regularizado. O assentamento é um entre tantos que aguarda sua regularização fundiária, e um dos tantos exemplos da luta por moradia no estado.

Déficit habitacional 

"A situação da moradia no Rio Grande do Sul repete a situação do país. A falta de políticas garantidoras de moradia digna refletem um acúmulo de demanda e situações de irregularidades tanto em Porto Alegre como no Rio Grande do Sul e no país. Nos últimos anos vivemos um apagão das políticas públicas federais além de um avanço nas políticas neoliberais de Estado mínimo e de não garantia dos direitos constitucionais”, aponta o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Fernando Campos Costa.

Na mesma linha, o dirigente do Movimento de Luta nos Bairros (MLB) Luciano Schafer destaca que há grande déficit habitacional, principalmente nos grandes centros urbanos. "Uma grande parte das famílias que compõem o déficit habitacional são as que moram em assentamentos irregulares ou como classifica o IBGE, em domicílios subnormais, são acima de tudo precários, seja com relação à segurança jurídica da posse sob a moradia, seja pela segurança estrutural-ambiental, pois estes encontram-se próximos de encostas de morros e córregos e rios.”

De acordo com levantamento da Fundação João Pinheiro (FJP), o déficit habitacional no Brasil passou de 5,657 milhões, em 2016, para 5,877 milhões, em 2019, sendo 1.483 milhões habitação precária, 1.358 milhões em coabitação e 3.036 milhões de ônus excessivo com aluguel. No RS, o déficit é de 220.927 (65.275 em habitação precárias, 34.073 em coabitação e 121.579 em ônus excessivo com aluguel). Já na Região Metropolitana de Porto Alegre o déficit é de 90.585 (31.619 em habitação precárias,10.116 em coabitação e 48.849 em ônus excessivo com aluguel).

“A gente tem uma demanda gigantesca nos últimos anos. A pandemia agravou essa situação. Surgiram novas ocupações, e as ocupações também aumentaram de tamanho em função do número de pessoas que acabaram tendo que abandonar o lugar onde vivem de aluguel ou algo assim. Tem ocupações em áreas do estado que ainda não conseguiram construir um processo de mediação para uma solução definitiva”, observa a coordenadora do Movimento Nacional Luta por Moradia (MNLM), Ceniriani Vargas da Silva. 

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Além da questão da moradia, destaca a dirigente, as famílias enfrentam a situação de despejo e remoção. No RS são cerca de 11 mil famílias nessa situação. "Se a gente considerar as comunidades regulares consolidadas, o número, obviamente, é infinitamente maior. Só Porto Alegre são mais de 700 comunidades regulares, que também são ocupações. Algumas com possibilidade de regulação fundiária. Mas, naqueles termos, não é uma prioridade do poder público mexer nessas situações. Cada poder está cuidando das suas. O estado focado na regulação das áreas do estado, o município, na regulação das áreas do município, ou a federal na regulação das áreas federais. Mas nas áreas privadas o poder público acaba meio que não querendo se envolver na maior parte dos casos." 


"Desde 2012, 2013, estamos tentando junto com os órgãos, tanto do estado como da Prefeitura aqui de Gravataí, para a gente trabalhar a questão da regularização fundiária dentro dessa área" / Foto: Jorge Leão

Com base nos dados do CadÚnico, do governo federal, e comparação com outras unidades da federação a estimativa de famílias sem habitação no RS está em torno de 168 mil e 300 mil. 

Ainda sem um levantamento oficial, o governo do estado lançou em agosto deste ano o Cadastra RS. “Com a criação da Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária (Sehab), com o desmembramento da Secretaria de Obras e Habitação (SOP), por meio da Lei Estadual 15.934, as políticas públicas referentes à política habitacional estão sendo repaginadas e planejadas para que tenhamos o diagnóstico da situação das áreas de propriedade do estado. Com o lançamento do Cadastra RS, um banco de dados de possíveis beneficiários de atuais e futuros programas e projetos de habitação de interesse social do estado, pretendemos ter esse levantamento. Nessa ferramenta constarão informações dos pretendentes à moradia popular ou regularização fundiária, com dados da renda familiar, quantidade e definição dos moradores na residência”, expõe o secretário de Habitação e Regularização Fundiária, Fabricio Guazzelli Peruchin. 

Além da situação apontada acima, as catástrofes climáticas que atingiram o RS nos últimos meses agravaram a situação. A estimativa é de que 1500 casas foram destruídas ou parcialmente destruídas nas oito cidades mais atingidas.

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“Este relatório ainda está em curso, podendo chegar a 1800 unidades. Tivemos que centralizar nossas atenções no mapeamento de áreas com infraestrutura e topografia adequadas disponíveis, que não fossem de risco, para a construção de moradias temporárias, em conjunto com as prefeituras. Esse trabalho foi árduo, tivemos que deslocar servidores para estarem permanentemente na região durante esse período, cuidando das tratativas com as prefeituras, com as outras secretarias - pois é feito um trabalho integrado -, com o Sindicato das Indústrias da Construção Civil do Rio Grande do Sul (Sinduscon-RS), além das tratativas com o governo federal”, explica o secretário.

Baixo contingente de servidores e enfraquecimento das políticas 

"Os principais entraves em relação a pauta da moradia é a completa falta de política pública do governo do estado em especial também a falta de política municipal e por último a dificuldade também do governo federal de agilizar a política Minha Casa Minha Vida, pois sem recurso público não teremos política pública”, opina o coordenador do MTD Mauro Cruz. 

Para Luciano, um dos principais entraves é a influência das grandes empreiteiras sobre a política urbana e de produção habitacional. "Outro entrave é o ideológico, pois a moradia é enxergada como uma mercadoria e não como um direito. O que falta é vontade política dos governos, a qual se reflete na precarização das políticas públicas e no tamanho do orçamento para moradia popular”, aponta. 

De acordo com Ceniriani, os entraves em relação à habitação e regularização fundiária passam pelo processo de planejamento da cidade como um todo, contudo, ressalta, a questão da cidade “irregular” acaba ficando fora dos planejamentos. “Há um foco de pensar a cidade, de planejar a cidade muito voltado para a questão do mercado, para a cidade regular, para essa cidade possível de gerar receita, inclusive política. De flexibilizar ou pensar a cidade a partir de uma perspectiva do mercado e não a partir da perspectiva das demandas sociais. A demanda por moradia digna é uma demanda gigante em todo o estado, no país inteiro. E acaba ficando de fora disso.”

Para a dirigente, há poucas áreas do estado que são áreas especiais de interesse social destinadas para a moradia, que poderiam ter como objetivo a construção de projetos de habitação. "Temos foco na questão da regulação fundiária muito voltado para suas próprias áreas e, a questão da titulação acaba tendo um foco muito naquilo, digamos, que é o mais fácil de resolver em relação aos processos de ocupação, em relação aos processos de conflitos fundiários. O estado pouco se envolve, pouco tem interesse em estar participando desses debates.”

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Outro fator que impacta a questão da habitação e regularização fundiária no estado é o baixo número de servidores. Responsável pela formulação de políticas públicas para a promoção da Habitação de interesse social e para o combate ao déficit habitacional, executar a política pública habitacional, entre outras ações, a Sehab tem atualmente em seu quadro 12 servidores de carreira, seis servidores contratados emergencialmente, dois servidores Cargos em Comissão, totalizando 20 servidores. 

“Em nossas visitas à Secretaria de Habitação, no setor de regularização fundiária, é possível ver o déficit de servidores. Há uma demanda gigantesca de áreas do estado para regularizar, porém, não há interesse do gestor em melhorar o quadro de servidores e ir sanando os problemas habitacionais”, afirma Dico, do Assentamento Portal dos Pinheiros. 

Para Fernando, do MTST, a situação da Capital reflete a realidade do Interior, aonde a falta de funcionários públicos, de técnicos capacitados e de uma estrutura que garanta recursos para as políticas públicas é ainda maior. "É trocado por favor políticos, onde vemos as isenções de impostos sendo uma prática de governantes a seus apoiadores de campanha eleitoral, setores como da construção civil e grandes empresas geram uma captura e uma dependência a estas empresas que produzem uma precarização cada vez maior destas cidades."


Cerca de 380 famílias vivem no Assentamento Portal dos Pinheiros / Foto: Jorge Leão

Retomada das políticas públicas 

“As pessoas precisam morar, se não conseguem, porque o acesso à moradia é difícil, pois, para morar em um local com o mínimo de acesso a direitos, à cidade e a estrutura, precisa-se pagar valores que a família de trabalhadores hoje não tem. Há essas famílias resta apenas os lugares que o mercado imobiliário considera economicamente pouco interessante ou legalmente inviável para seus empreendimentos”, aponta Luciano. 

Para Mauro, a demora de regularização da área do Portal dos Pinheiros demonstra a falta completa de política pública para ter um Estado atuante nesta área. "Uma visão de Estado mínimo é que norteia o Executivo estadual, com sua visão privatista e mercadológica, pensando que o mercado irá resolver o problema de habitação da população mais vulnerável", ressalta. 

Na avaliação de Ceniriani, o Estado não tem histórico de produção habitacional como os movimentos sociais, de produzir projetos de habitação popular. “Ele acaba, de alguma forma, colocando ali algum recurso, de vez em quando, para alguns projetos em andamento. Não temos possibilidade de diálogo com o Estado há muitos anos em relação a pauta da habitação. Nós tínhamos o Conselho Estadual das Cidades, ele deixou de existir e até o momento não existe nenhum espaço onde a organização popular, onde a cidade civil possa estar tratando de alguma forma sobre esses temas. Temos essa demanda que é a retomada também do Conselho Estadual das Cidades para que minimamente tenha esse acompanhamento, essa construção da política de habitação no Estado, também a partir da perspectiva de quem está na outra ponta.”

Fernando avalia que é preciso um fortalecimento do Estado que garanta direitos com uma estrutura capaz de desenvolver políticas públicas integrais e que vejam a cidade como um espaço de bem viver. “Políticas como orçamento participativo onde a população participa e elege suas prioridades devem ser uma realidade para que a justiça ambiental seja garantida nos territórios. Acreditamos que o governo do estado do Rio Grande do Sul poderia construir uma política de moradia digna, algo como ninguém sem casa. O diálogo com os movimentos sociais deve ser garantido através da cooperação para a elaboração das políticas publicas."

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Na esteira das consequências dos desastres climáticos, Luciano pontua a necessidade de um plano emergencial ou uma força tarefa que sane as demandas emergenciais da população atingida pelas enchentes e eventos climáticos. Para isso, aponta, é necessário desde de agora, a construção de um programa permanente de prevenção aos efeitos das próximas ameaças ambientais. “Um programa para melhorar as condições de habitação e também regularização fundiária, mas com base na efetiva participação popular. É perceptível que os eventos climáticos serão cada vez mais frequentes e não deixarão de acontecer, devido às mudanças climáticas produzidas pelo nosso modo de produção capitalista ecocida."

Para Ceniriani, é preciso ter um planejamento, investimento e comprometimento com a política de habitação e não só "enxugar gelo". “Isso passa pela regulamentação, implementação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, a efetivação do direito à moradia. Passa também pela garantia do acesso à terra, o acesso à possibilidade de um trabalhador ou uma trabalhadora assalariada também adquirir a sua moradia a partir do seu próprio processo de organização financeira. Isso fica inviabilizado pelo alto custo e o alto custo passa por esse fomento à especulação imobiliária. Saiu recentemente dados preliminares do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que apontam que temos um número de domicílios vagos mais que o dobro do déficit habitacional”, expõe.

Para os representantes dos movimentos sociais, é fundamental que a Secretaria de Habitação consiga trabalhar junto com as secretarias dos municípios uma política que coloque a estrutura do Estado de recursos humanos e de recursos financeiros a disposição, além de legislações estaduais que facilitem, garantam e fiscalizem a redução do déficit habitacional do RS. "A garantia do direito à moradia deve ser fiscalizada e metas devem ser alcançadas para que essa realidade mude de forma concreta. E a construção de moradias não são números e sim qualidade, participação e a palavra mais importante, dignidade. O déficit habitacional não acontece somente nas cidades, também está no meio rural. Políticas de saneamento, de garantia de água potável e de um diagnóstico de áreas de risco é fundamental hoje para que a casa, a moradia seja um local seguro”, conclui Fernando.


Daniela Ferreira e sua filha Júlia vivem no Assentamento Portal dos Pinheiros / Foto: Jorge Leão

A questão da habitação e regularização fundiária no estado

Na avaliação do secretário de Habitação e Regularização Fundiária, Fabricio Guazzelli Peruchin, a regularização fundiária é de extrema complexidade, pois envolve questões jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais. "Muitas vezes, estamos lidando com áreas de risco, havendo a necessidade de reassentamento dos moradores, ou que envolvem processo litigioso, além de outros impedimentos legais que travam os processos", aponta. 

Quanto à política habitacional, há a necessidade de um orçamento vultoso, especialmente após a pandemia, quando os valores aumentaram significativamente. "Acreditamos que mesmo com as dificuldades, ambas as políticas causam uma transformação social. Não há dignidade sem a posse de um lar, um lugar com segurança, para onde o indivíduo possa se resguardar, cuidar da família, ter a oportunidade de buscar evolução profissional. No âmbito ambiental, a regularização fundiária promove uma gestão adequada das terras, auxiliando até mesmo no combate ao desmatamento ilegal e o desenvolvimento sustentável."

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Indagado sobre a demora na regularização fundiária como é o caso do assentamento do Portal dos Pinheiros, o secretário aponta como causas questões orçamentárias, jurídicas - diante da peculiaridade de cada Núcleo Urbano Informal - e da necessidade de uma equipe multiprofissional, com profissionais que atuam desde a área social, como assistentes sociais, por exemplo, até àqueles que fazem os projetos urbanísticos - arquitetos, topógrafos, geólogos, entre outros. Para ele, a existência de mais servidores poderia agilizar os processos de regularização. 

Ainda de acordo com o secretário os principais desafios e entraves encontrados no dia a dia para executar as políticas públicas de habitação e regularização fundiária e reassentamento envolvem disponibilidade de recurso orçamentário, contratação de equipe técnica especializada e capacitada, equipamentos (drones/GPS), além dos entraves de questões jurídicas já mencionadas. 

Investimento

De acordo com a Sehab, em 2022, foi feito um aporte de R$ 121,6 milhões nos programas A Casa É Sua, Nenhuma Casa Sem Banheiro, complementação do Minha Casa Minha Vida e indenização às famílias que viviam às margens da ERS 118. Este ano, em agosto, houve o anúncio de R$ 101,5 milhões para habitação e regularização fundiária no estado, sendo quase R$ 100 milhões para a construção de 1238 casas em 23 municípios, pelo programa A Casa é Sua, e 2,5 milhões para o novo “Regulariza, Tchê”, que prevê a inclusão de áreas municipais na regularização, diferentemente do Regulariza RS. "A primeira parcela do A Casa é Sua, de R$ 25 milhões, foi paga em setembro. A segunda será liberada após as licitações, assim que dermos as ordens de início das obras. Quanto ao Regulariza Tchê, o edital está previsto para outubro", informa o secretário. 

* Com a colaboração de Jorge Leão.


Edição: Katia Marko