Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Os beira-trilhos: 200 mil pessoas vivem com o trem passando na sua porta em 55 municípios

Agora, sob risco de despejo e sem documentação, elas experimentam uma situação ainda pior

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"As pessoas têm direito à moradia adequada; o direito à moradia é um dos direitos sociais assegurados pela nossa Constituição" - Foto: Gerson Lopes

Um total aproximado de 200 mil pessoas acordam, vivem e dormem com os comboios ferroviários passando a poucos metros de suas cabeças. São os beira-trilhos. Milhares de famílias que, sem ter onde morar, se instalaram há muitos anos à margem das estradas de ferro que cortam o Rio Grande do Sul. Com o tempo, além de moradias, surgiram lojas e até escolas nesses lugares.

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Agora, porém, a Rumo, concessionária da malha sul das ferrovias brasileiras, que são propriedade da União, ingressou com ações para retirar as famílias. Brasil de Fato RS conversou com o advogado Leandro Scalabrin, que integra a Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e está tratando do assunto. Confira: 


"Há um grande desafio para os moradores que é o de se organizarem em nível estadual" / Foto: Arquivo Pessoal

Brasil de Fato RS - Quantas famílias moram na faixa de domínio beira-trilho do Rio Grande do Sul, em que municípios estão e onde está o seu maior contingente?

Leandro Scalabrin - Não possuímos um levantamento preciso, tampouco os órgãos públicos. A Famurs (Federação dos Municípios/RS) afirma que 55 municípios gaúchos possuem famílias que exercem seu direito à moradia nessas áreas de risco que são as faixas de domínio beira-trilhos no estado. 

A Defensoria Pública do estado estima que são 200 mil pessoas, pois existe a faixa de domínio – que seria da União – mas há também a faixa não edificante, que não poderia ter construções mesmo se for propriedade particular. Em Santa Maria, se considerada a faixa não edificante, existem três mil famílias nesse contexto. Em Passo Fundo, na faixa de domínio, existem 1,5 mil famílias, ou seja, aproximadamente 10 mil pessoas vivem nessa situação. Cruz Alta, Ijuí e Erechim possuem 500 famílias em cada uma delas nessa realidade, sendo as cidades com o maior número de pessoas, mas existem muitas outras como Tupanciretã, Alegrete, Bento Gonçalves, Carlos Barbosa, Muçum, de modo que seria necessário um levantamento mais preciso em todos os 55 municípios. 

As famílias não têm segurança de sua posse e grande parte delas está em área de risco

BdF RS -  O que reivindicam as famílias?   

Scalabrin - As pessoas têm direito à moradia adequada; o direito à moradia é um dos direitos sociais assegurados pela nossa constituição, sendo dever do poder público – União, Estado e Municípios – assegurá-lo. As famílias reivindicam isso; seja nos locais onde já vivem através de regularização fundiária, seja através de reassentamento e de políticas públicas em outros locais. Em Passo Fundo, uma ação civil pública exige da União, Estado e prefeitura o reassentamento das 1,5 mil famílias, como condição para qualquer despejo das mesmas e como forma de assegurar esse direito.

BdF RS - Quais estão mais ameaçadas?

Scalabrin - Todas estão ameaçadas. Como se trata de área de propriedade da União, da alçada do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), as famílias não têm segurança de sua posse e grande parte delas está em área de risco, naqueles lugares onde os trechos de trilhos ainda são operacionais. Mas a situação em relação à ameaça de despejo é diferente em cada município.

Em Erechim, por exemplo, a ferrovia não está operacional – então o grau de ameaça é diferente de outras cidades. Já nos municípios em que os trilhos são operacionais, a situação varia de local para local até num mesmo município.

Em Passo Fundo, há uma situação grave na ocupação Pinheirinho Toledo, na qual há pedido liminar de despejo que será decidido nos próximos dias em razão de desabamento causado pelas fortes chuvas decorrentes da emergência climática que enfrentamos. Levantamento realizado em 2019 pelo Sistema de Conciliação do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região (TRF4) indica que existem 1,3 mil ações de reintegração de posse aqui no Rio Grande do Sul. 

A concessão iniciou em 1997 e terminará em 2027. Quantos km novos a concessionária fez? Nenhum!

BdF RS - O que reivindica a Rumo e a quem pertence a concessionária?

Scalabrin - A Rumo surge da fusão da operadora de ferrovias ALL com a Cosan. A Cosan possui ações na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), controla a Rumo e atua em vários setores (gás, petróleo, logística) – é a empresa que adquiriu a (ex-estatal gaúcha) Sulgás em 2022.

A Rumo é a concessionária da malha sul das ferrovias brasileiras, que são propriedade da União, e o exemplo de quão perniciosas são as privatizações.

A concessão da ferrovia iniciou em 1997,  terminará em 2027, e o que vimos nesses anos todos? Quantos quilômetros novos de ferrovia durante a concessão? Nenhum! E dos 7,2 mil km concedidos, 2,1 mil estão sem tráfego e 1,2 mil subutilizados. Há transporte de passageiros do Rio Grande do Sul? Não. Além de não ter havido investimentos ou ampliação da malha, há notícias de que a empresa não paga o valor que deveria pagar à União pela utilização da ferrovia. É uma empresa que somente se preocupa com os seus lucros e os dos seus acionistas. Sua responsabilidade social é zero. As prefeituras do Rio Grande do Sul denunciam que não são atendidas pela empresa. Os moradores beira-trilhos são ignorados por ela. É uma empresa irresponsável socialmente com a situação e com a realidade dessas milhares de famílias que moram na sua porta.

Não protegeu o patrimônio público, não enfrenta a situação, não colabora com o poder público e simplesmente ingressou com ações judiciais para fazer de conta que fez algo em relação a essa realidade.

Na maioria dos processos, as pessoas não foram sequer identificadas e citadas


Em Passo Fundo, uma ação civil pública exige da União, estado e prefeitura o reassentamento das 1,5 mil famílias / Foto: Gerson Lopes

BdF RS -  O que, no âmbito judicial, está fazendo a defesa das famílias? 

Scalabrin - A situação é diferente em cada cidade. Em alguns casos, os próprios moradores contrataram advogados/as; em outros, fizeram isso organizados em associações ou grupos, com o apoio de ONGS, com o auxílio da defensoria pública estadual nos casos onde isso foi possível. Em pouquíssimos casos atua a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal. Os moradores, que são réus nesses processos, estão sem acesso à justiça, pois na maioria dos processos as pessoas não foram sequer identificadas e citadas, de modo que não lhes está sendo garantido o direito à ampla defesa e ao contraditório, o direito de ser ouvido nos autos. 

BdF RS - Qual o contato que a defesa das famílias teve (se teve) com os poderes municipal, estadual e federal?

Scalabrin - Existem várias iniciativas da Assembleia Legislativa/RS, de congressistas, da Famurs, do Conselho Estadual de Direitos Humanos e de outras instituições para tratar do assunto, mas de forma descompassada no tempo e sem a participação dos sujeitos que tem seus direitos ameaçados e violados. Existe no âmbito do TRF/4 o Fórum Regional Interinstitucional do Direito à Moradia e nele o grupo temático “Ferrovias”, sobre a situação dos beira-trilhos, que poderá trazer bons resultados. No qual, infelizmente, os sujeitos que tem seus direitos violados não têm tido assegurada sua participação, o que certamente é algo que precisa ser superado com urgência, pois sem a participação prévia e informada dos mesmos não poderão ser propostas soluções adequadas aos problemas que eles vivenciam.

A mídia já divulgou que o governo federal estuda uma “normatização” que possibilitaria a devolução de 20 mil quilômetros de ferrovias, os quais são chamados de “verdadeiros passivos para as atuais concessionárias” e que hoje não interessam para as mesmas. Essa “normatização” permitiria “novos projetos de investimento”. As famílias beira-trilhos também não estão sendo ouvidas nessa normatização. O que esperam é que essa normatização não viole seus direitos humanos e que o interesse social ande junto e acima dos interesses econômicos.

Os moradores têm que se manifestar no processo de renovação, exigindo  audiências públicas


Assembleia em Passo Fundo / Foto: MAB

BdF RS - Está tramitando na ANTT o processo de renovação antecipada pedida pela Rumo com base em lei aprovada pelo governo Bolsonaro. O governo Lula já foi contatado ou será contatado? 

Scalabrin - Está tramitando o processo de renovação antecipada da concessão da “malha sul” (PR, SC e SC) requerida pela Rumo, com base em lei feita no governo Bolsonaro e que inegavelmente lhe favorece. De tal modo, que essa empresa já conseguiu renovar “antecipadamente” a concessão que possuía da “malha paulista” e, pelo que se tem notícia, não está cumprindo os compromissos que assumiu lá. Apesar disso, essas obrigações que foram impostas à empresa em São Paulo são um começo do que deveríamos exigir aqui para a renovação no estado, com a devolução de trechos, regularização fundiária, obras de segurança e reassentamento das famílias.

Temos defendido que os moradores, junto com seus apoiadores, têm que se manifestar no processo de renovação da concessão, exigindo da ANTT e do governo federal que realize audiências públicas em Santa Maria, Cruz Alta, Passo Fundo e Erechim, para assegurar a participação das pessoas que são um grupo dos principais interessados e atingidos com essa renovação. Os empresários, prefeitos e outros setores estão sendo ouvidos nessa renovação da concessão. Aquelas milhares de pessoas que moram dentro das áreas que serão concedidas para uma empresa por mais 30 anos não estão sendo escutadas...

Até o governador se manifestou no sentido  de que iria vetar a renovação da concessão


"As famílias não têm segurança de sua posse e grande parte delas está em área de risco" / Foto: Gerson Lopes

BdF RS - Em que base é solicitada a renovação da concessão uma vez que a malha ferroviária não recebeu investimento da concessionária e sequer é plenamente utilizada? 

Scalabrin - Com base nesse modelo pernicioso para a sociedade que são as privatizações e serve para maximizar os lucros de grandes capitais - que sequer são do estado - e socializar os prejuízos, levados a cabo por empresas sem compromisso social. E que prestam serviços de duvidosa qualidade a preços que não contribuem com o desenvolvimento dos transportes no Rio Grande do Sul pois, se assim fosse, não teríamos tantos caminhões em nossas estradas... Sobre esse assunto até mesmo o governador do estado (Eduardo Leite, do PSDB) se manifestou recentemente no sentido de que iria vetar a renovação da concessão para essa empresa em razão de seus parcos e esfarrapados investimentos. É o mínimo que esperamos.

BdF RS -  O reassentamento das famílias constará desta possível renovação antecipada? 

Scalabrin - Não consta. Essa é uma proposta viável, junto com a de regularização fundiária nos trechos da ferrovia que estão abandonados pela Rumo e certamente serão devolvidos ao governo federal na renovação da concessão. Existe uma ACP (ação civil pública) que pede isso especificamente para as famílias de Passo Fundo. Precisaríamos que a DPU (Defensoria Pública da União) e o MPF ingressassem com outras ACPs nos demais municípios.

BdF RS - Quais serão os próximos passos da defesa das famílias?

Scalabrin - A Renap atua com o MPF, CDHPF (Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo) e UPF (Universidade de Passo Fundo) em ações que tramitam na Justiça Federal relativas ao município de Passo Fundo. Temos contato com a advogados/as, lideranças, associações que atuam também em Cruz Alta, Santa Maria e Erechim. Há um grande desafio para os moradores que é o de se organizarem em nível estadual para poder intervir nesse processo de renovação da concessão. Para conquistar o direito à participação nesses fóruns e o direito de acesso à justiça, sendo qualificados como parte nesses processos que envolvem o despejo de suas moradias.


Edição: Katia Marko