Rio Grande do Sul

60 ANOS DO GOLPE

As visitas ameaçadoras dos agentes do Dops à pensão de estudantes da Vasco da Gama

A busca do sargento desertor da Brigada, ligado a Brizola, botava medo e tensão na gurizada do interior

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Pelo menos 379 militantes seriam assassinados por agentes da repressão durante o regime militar" - Foto: Reprodução/Memorial da Democracia

A pensão da rua Vasco da Gama, 403, era uma das mais procuradas do bairro Bom Fim, em Porto Alegre. Tinha gente de várias áreas do estado e até de outras regiões brasileiras. Cheguei ali em 1970, ano do tri da Copa do Mundo, no auge da ditadura. Tempo que milico metia o coturno até no futebol. Os donos eram alemães de origem, Emil e Margareth, não dou sobrenome porque eles andam longe da terra. Simpáticos, queridos. Contavam com o auxílio de dona Georgina. Ela fazia de tudo, mas não gostava de ser incomodada. A rapaziada bagunçava. Ela olhava torto. Os donos estavam no sétimo sono. Eram bem velhinhos.

:: Torturas e listas sujas: como a Mannesmann aliou-se à ditadura para reprimir trabalhadores ::

Conservavam hábitos dos tempos do III Reich. Eram econômicos nas palavras, mas volta e meia soltavam algum desabafo sobre as virtudes da Alemanha nazista e sobre Hitler, considerado um verdadeiro estadista e que colocou o país nos eixos depois da derrota na I Guerra. Sobre a II Guerra não falavam, mas lamentavam, entre dentes, a derrota. Sobre as barbaridades cometidas contra o povo judeu, ciganos, deficientes, não falavam. Para os jovens estudantes e alguns adultos que ali moravam tudo não passava de delírio, motivo até de chacota. A gente não estava nem aí. Mesmo os saraus com música wagneriana – Wagner era o compositor preferido dos concertos de Hitler – organizados pelo casal passavam longe. Naqueles dias, ela visitava cada quarto para avisar do concerto e pedir respeito aos visitantes. Todos de origem germânica. Os moradores não participavam nem do coquetel. A língua falada por todos os convidados destes eventos era o alemão. Só se ouvia de longe, mas não entendíamos muita coisa.

O casarão dos estudantes não existe mais. Foi demolido para ceder o espaço para um prédio e para o viaduto da Ramiro com Vasco da Gama. Mas a memória não deixou passar algumas historinhas interessantes ligadas à ditadura militar. Algumas me assustaram muito. Com 18 anos, a minha noção de mundo e do que vivíamos no país era certamente bem menos madura do que a que temos hoje. Muita carga nas costas já levamos, entendemos melhor as coisas, ganhamos bagagem e consciência, mas aquilo vivido naqueles tempos não vai para a lixeira. Fica em algum cantinho da memória e, volta e meia, nos pega de surpresa. Para recordar. Para lembrar que não podia ter acontecido.

A primeira foi a invasão de seis brucutus armados até os dentes na pensão. Chegaram naquelas caravans do Dops¹ (Departamento de Ordem Política e Social), o órgão máximo da repressão, que prendia, torturava e matava. Na minha santa calma estava fechado no banheiro usado pelos estudantes. Tranquilo, fazendo minhas coisas. Escovando os dentes. Me banhando, enfim dando um toque na higiene para ir para o Colégio Júlio de Castilhos. De repente, batidas forte e gritos. Bufavam na porta.

- Abre a porra desta porta. Ligeiro, vagabundo. A gente não tem tempo para esperar.

Mandei esperar até colocar uma roupa. Novos gritos. "Abre a porra desta porta".

Diante da ameaça, abri. Pensei que alguém estava em apuros. Não era nada disso. Levei um xingão. "Guri, podias levar uns tiros. Já estávamos ficando irritados. Olhei as armas e vi que não eram de brincadeira. Fiquei branco, vermelho, azul, achei que ía morrer por nada. Sem culpa em cartório. Fizeram umas perguntas. Indagaram sobre um morador, um sargento da Brigada Militar desertor que ali morava. Como conhecia vagamente, não disse nada. Disse que morava há pouco na pensão e que não conhecia muita gente. Me deixaram de lado e foram batendo em outros quartos. Não acharam nada.

Fique sabendo depois e acabei conhecendo a fera rebelde. Ele morava fora do casarão, uma espécie de depósito, transformado em quarto para alugar. Ali era mais fácil para fugir, pular o muro, escapar, dar no pé. Mas naquele dia da visita dos "gorilas", ele não estava em casa. Ao falar com o sargento – não recordo o nome – ele contou que era a bola da vez, estavam loucos para pegá-lo e levá-lo para o quinto dos infernos. O militar tivera ligações com o governo de Brizola e vivia fugindo. Não tinha sido pego ainda. Mudava de endereço a todo instante. Era ligado a outro sargento, do Exército, morto no famoso Caso das Mãos Amarradas.

Para quem não lembra, o corpo do sargento Manoel Raimundo Soares foi encontrado boiando às margens do rio Jacuí, em Porto Alegre. Tinha as mãos amarradas e marcas de tortura pelo corpo. Manoel Raimundo era ligado ao ex-governador Brizola e teve sua prisão decretada logo depois do golpe. Por isso, passou para a clandestinidade.

Preso em Porto Alegre por dois militares à paisana em março de 1966, foi levado ao Dops e em seguida transferido para a ilha-presídio existente no rio Guaíba. Em 13 de agosto, retornou ao Dops. Foi morto sob tortura quando estava sob responsabilidade do Estado.

O Caso das Mãos Amarradas, como ficou conhecido, chocou a opinião pública e deixou evidente a violência contra presos políticos praticada nos porões da ditadura. Pelo menos 379 militantes seriam assassinados por agentes da repressão durante o regime militar.


Jornal Última Hora noticiou o Caso das Mãos Amarradas / Foto: Reprodução/Memorial da Democracia

Pouco tempo depois da visita dos agentes à "pensão nazista" do Bom Fim, fiquei sabendo que os agentes do Dops andaram por ali de novo, fazendo uma "visita de cortesia" para ver se encontravam o tal sargento. Georgina, a auxiliar de Margareth, me contou que foram recebidos pela dona, que os avisou de que a pessoa que procuravam não estava mais ali. Tinha ido para outra indefinida freguesia.

Para mim, o caso acabou ali. Só fiquei antenado e aprendi que tinha subido mais um degrau na compreensão do que estava acontecendo e que vivíamos uma ditadura. Todo domingo ía para a esquina da Osvaldo Aranha com Ramiro Barcelos, bem pertinho da pensão, para ver os fascistas de Plínio Correa de Oliveira e suas bandeiras gritando slogans da TFP (Tradição, Família e Propriedade) para saudar o regime que tinha livrado o país do comunismo. Bem como faziam os bolsominions com suas bandeiras e camisas amarelas até bem pouco tempo e que, volta e meia, ressuscitam do nada e para nada.

Que tempos!!!

¹ O Departamento de Ordem Política e Social era responsável por investigar todos os tipos de movimentos sociais, como greves, campanhas contra a carestia, associações de amigos de bairros, bem como fiscalizar a ação dos sindicatos e dos trabalhadores organizados, produzindo inquéritos, relatórios e prontuários de presos e investigar. No golpe militar, suas atividades se ampliaram para reprimir pessoas contrárias ao regime, prendendo, torturando e até matando. O Dops nasceu em 1924 e foi extinto a partir de 1983 quando a redemocratização avançava no país.

* Jornalista, ex-editor-chefe e ex-editor de Economia do Correio do Povo.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira