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Para planejar, precisa entender como o espaço está ocupado: população e domicílio no Censo 2022

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"Para planejar a ocupação do espaço, é preciso conhecer a demografia e a dinâmica da população. Afinal, são populações (pessoas, cidadãos!) que ocupam o espaço da cidade, não o concreto e o asfalto" - Foto: Diogo ML
Melhorar a vida das pessoas não é a função do desenvolvimento?

Vamos reafirmar aqui o que já foi dito em outros textos nesta coluna: planejar é olhar para frente, tentar organizar o desenvolvimento futuro para que a população possa usufruir de uma cidade que seja agradável de se viver e justa para toda população. E, mais importante: “desenvolvimento” não significa apenas crescimento econômico. Ao contrário: como queremos organizar a economia da cidade para que possa favorecer a maioria da população? Queremos desenvolver a “economia” para apenas um segmento ou queremos que a economia favoreça o bem-estar dos habitantes? Melhorar a vida das pessoas não é a função do desenvolvimento? Isto são decisões de planejamento. É isto que deve nortear um Plano Diretor.

Agora, é evidente que só é possível tomar estas decisões se temos informações. E a principal base das informações são fornecidas pelo IBGE, através dos Censos Demográficos. Então, vamos olhar algumas informações disponíveis, começando com uma comparação entre as capitais do país:

Figura 1: Percentual de apartamentos sobre o total de domicílios particulares ocupados nas capitais - Censo 2022

O que o gráfico sobre a proporção de apartamentos sobre os domicílios totais nos mostra? Primeiro, que Porto Alegre é a capital do país mais “verticalizada”, superando cidades que o senso comum normalmente associa com excesso de edifícios, como São Paulo. Aliás, dos 5.570 municípios brasileiros, Porto Alegre é proporcionalmente o 4º com mais apartamentos, com esta tipologia representando 49,6% dos domicílios totais. O interessante é que esta constatação não é nova: em 2010, Porto Alegre já era a capital com maior proporção de apartamentos do Brasil.

Esta informação importa por uma razão bem simples: fez parte do argumento da prefeitura e das construtoras que precisamos aumentar a densidade e, para isso, a cidade precisa se verticalizar e permitir, cada vez mais, grandes edificações. Desta forma, foram aprovados o “Plano Diretor do Centro” (Lei Complementar nº 930/2021, que Institui o Programa de Reabilitação do Centro Histórico) e o “Plano Diretor do 4º Distrito” (Programa +4D, Lei Complementar nº 960/2022). O que estes Planos permitem? Maior quantidade de edificações nas duas regiões. Faz parte da exposição de motivos que Porto Alegre precisa ser adensada; assim, a permissão de mais e maiores (em altura) construções permitiria que a densidade aumentasse.

Qual o problema deste argumento em relação aos dados que temos? Vamos observar: 1) o Centro histórico já é, há muito tempo, um dos bairros com o maior percentual de domicílios tipo apartamento da cidade. No Censo de 2010, 98,20% dos domicílios eram apartamentos (no Censo 2022, esse dado só foi divulgado para o total da cidade por enquanto).. 2) No 4º Distrito, Floresta é o bairro mais verticalizado, com 86,89% de domicílios tipo apartamento. Ou seja, é falso o argumento de que a legislação anterior impedia a verticalização dessas regiões.

Já que estamos falando de densidade, cabe olhar a figura 2:

Figura 2: Porto Alegre: densidade demográfica (habitantes/km2) - Censo 2022

A figura 2 permite perceber que sim, pode-se dizer que a densidade demográfica da cidade não é particularmente alta. No entanto, também permite ver que os pontos do território mais adensados estão espalhados por diferentes áreas da cidade, inclusive em bairros que as casas superam em muito os apartamentos no percentual de domicílios. O bairro Farrapos, por exemplo, é muito mais denso que Floresta, apesar de em 2010 apresentar apenas 8,06% de domicílios tipo apartamentos! Mais uma vez: simplesmente promover a construção de edifícios cada vez mais altos não garante maiores densidades demográficas.

Agora vamos observar a figura 3, que mostra a média de moradores por domicílios, por setor censitário.

Figura 3: Porto Alegre: média de moradores em domicílios particulares ocupados - Censo 2022

É importante observar esta figura e os números contidos nela porque nos dá uma imagem do que vem acontecendo na cidade, em termos de ocupação do espaço pelos habitantes. A constatação inicial, bastante visível no mapa, é que existe uma relação Centro-Periferia na média de moradores por domicílios: as áreas centrais e mais antigas da cidade tendem a ter moradias com poucos pessoas; quanto mais vamos nos afastando das áreas centrais em direção à periferia, a tendência é de aumento do número de moradores dividindo a mesma residência. Na prática, temos que famílias maiores estão se distribuindo em locais mais longe do Centro, enquanto famílias menores e indivíduos morando sozinho tendem a morar em lugares mais centrais da cidade.

Ora, a média de moradores por domicílio impacta a densidade demográfica tanto quanto a disponibilidade de construções no local em que esta média é considerada. Primeira lição: para planejar a ocupação do espaço, é preciso conhecer a demografia e a dinâmica da população. Afinal, são populações (pessoas, cidadãos!) que ocupam o espaço da cidade, não o concreto e o asfalto.

A próxima figura é um retrato mais preciso da ocupação que temos do espaço construído da cidade.

Figura 4: Porto Alegre: percentual dos domicílios particulares não-ocupados - Censo 2022

Temos, agora, uma visualização do que ocupamos ou não de moradias no território de Porto Alegre. Numa olhada mais geral, certamente se percebe que em todos os bairros existem habitações vazias. Isto acontece em toda a cidade, em parte, como reflexo de algo já constatado aqui nesta coluna anteriormente (ver o texto inicial sobre os números do Censo aqui): os domicílios vagos (não ocupados sequer para uso ocasional) mais que dobraram no intervalo entre os dois últimos Censos: eram 48.394 em 2010 e agora são 101.013 (2022). E mais: de 2010 a 2022, a população de Porto Alegre diminuiu de 1.409.350 para 1.332.570 habitantes (-5,4%). Enquanto isso, o número total de domicílios cresceu de 574.831 para 687.602.

Se o leitor observar novamente o mapa (figura 4), verá que os bairros do 4º Distrito e o Centro Histórico aparecem em tons mais escuros, porque o percentual de domicílios não ocupados é maior que a média da cidade.O Censo 2022 mostrou que 30,3% dos domicílios do Centro Históricos não estavam ocupados; já no 4º Distrito, a média é de 22%. Mas, se olharmos para os bairros desta região (Floresta, São Geraldo, Navegantes, Farrapos e Humaitá) constatamos algo muito interessante: Floresta, que como vimos é altamente verticalizado (com o maior percentual do 4º distrito) apresenta também o maior percentual de domicílios sem ocupação permanente, com 28,4%. Qual conclusão? Não existe relação direta entre verticalização e densidade demográfica. Ou: construir edifícios mais altos não garante, necessariamente, maior densidade de moradores, como já havíamos alertado antes mesmo da divulgação dos dados do Censo (neste artigo)

Logo, se a população diminui, mas os domicílios aumentam, incentivar a construção não aumenta densidade, só aumenta o número de imóveis vazios. Aliás, é só olhar o exemplo do Centro: é bastante denso em termos de edificações, mas isto não se reflete em maior densidade demográfica.

O que podemos concluir a partir desses dados? Primeiro, que o objetivo aqui não é proibir a existência da indústria privada de construção civil e incorporação imobiliária. Não é disso que se trata. A questão é: para que serve o planejamento urbano? Serve para organizar o espaço e a ocupação do território urbano para que os cidadãos possam usufruir a cidade da melhor forma possível? Ou para garantir lucro de poucos segmentos econômicos?

Se a prefeitura quer aumentar o número de moradores das áreas centrais deveria pensar em políticas de ocupação desses imóveis vazios, percebendo que o que impede a maioria da população de morar no Centro não é a falta de prédios, mas a falta de renda para pagar os altos aluguéis. Se aproveitará muito melhor a infraestrutura existente se esta enorme quantidade de imóveis fechados puder, efetivamente, servir como moradia para os porto-alegrenses.

* Mario Leal Lahorgue, professor do Departamento de Geografia da Ufrgs e pesquisador do Observatório das Metrópoles. André Coutinho Augustin, economista e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko