Rio Grande do Sul

Educação

Curso Kilomba: espaço de democratização e acesso à educação

Curso oriundo do movimento comunitário ajuda jovens da periferia da Capital a realizar o sonho de cursar ensino superior

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Primeira aulas realizadas no ano de 2019 - Arquivo Pessoal

“Eu sempre quis fazer faculdade, mas era um sonho distante e irreal na minha situação financeira, e como eu não estudava há mais de 10 anos, eu nunca imaginei que pudesse me dar bem com essa empreitada”, relata a atual estudante de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Barbara Machado Saldanha, de 31 anos, formada na primeira turma do curso Kilomba. Fundado pelo Conselho Popular da Lomba do Pinheiro, em 2018, o curso, oriundo do movimento comunitário, vem há dois anos auxiliando jovens da periferia a realizar o sonho de cursar o ensino superior. 

O curso Kilomba está localizado na Lomba do Pinheiro, na Zona Leste, um dos bairros mais populosos e pobres de Porto Alegre. Com uma população de 58 mil pessoas, sendo 32% negras, com rendimento médio de R$ 515,67, está entre os cinco bairros da capital gaúcha que apresentam o IDH abaixo da média nacional. A taxa de analfabetismo é de 4,04%, segundo dados compilados pelo ObservaPOA a partir do Censo de 2010, o mais recente realizado. 

O nome é uma brincadeira entre o nome do bairro, como também uma imersão do conceito quilombo, um lugar de resistência, superação, um lugar para todos, aponta a fundadora, coordenadora e também professora de história, Tavama Nunes Santos. “A gente quis juntar o nome da Lomba do Pinheiro com o termo quilombo, que é um espaço de resistência e de luta. Para refletir, sempre nas primeiras aulas temos a seguinte provocação: que Lomba do Pinheiro nós desejamos, uma Lomba do Pinheiro com jovens universitários. O nome veio desse pensamento da inclusão”, explica a fundadora, destacando que na localidade há um grande déficit educacional de oferta de ensino. “Nós conseguimos uma escola de ensino médio há muito pouco tempo aqui na região”, conta. 

Conforme complementa o professor de português, redação e literatura Luiz Miguel Lisboa Machado, que também é um dos fundadores do curso, o Kilomba tem demarcado a questão da identidade e territorialidade, quesitos que estão presente nas aulas. “Os conteúdos são perpassados por temas transversais. Por exemplo, eu dou literatura, se eu estou falando de escritores eu sempre coloco o José Falero e o Duante Sonte, que são escritores aqui a Lomba do Pinheiro. Em geografia, estão falando em meio ambiente citando sempre o saneamento ambiental”, expõe. 


Distribuição dos materiais durante a pandemia / Arquivo Pessoal

Primeiros passos

A primeira aula do curso aconteceu em 15 de abril de 2019. Ao longo daquele ano todas as aulas foram presenciais, realizadas de segunda à quinta, à noite, nas salas de aulas improvisados no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA), na parada 10 da Lomba do Pinheiro. As aulas são ministradas por professores residentes do bairro e também por convidados. Realizando um trabalho totalmente voluntário, atualmente o curso tem entre 9 a 10 professores, necessitando de uma pessoa para dar aula de biologia.

De acordo com Tavama, o gatilho para fundação desse curso foi o resultado da eleição de 2018. “Nós nos reunimos e nos sentimos desafiados a fazer algo mais como movimento comunitário, reivindicatório, em função de todo contexto que a gente nem imaginava o quão ruim seria. Fundamos em novembro de 2018 e o início das aulas foi em abril de 2019. Para essas aulas se inscreveram 130 pessoas, mas frequentaram, e esse é um problema da maioria dos cursinhos populares, cerca de 30 alunos”, aponta a professora.

Dos alunos que conseguiram permanecer até o final do curso, 12 foram aprovados em vestibulares, sendo sete só na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

Por ser um bairro extenso, com 36 vilas, muitos alunos mesmo dentro do bairro precisam de ônibus para se deslocar. A questão financeira dos estudantes, por conta disso, resultou na evasão escolar. Por ser informal, o curso não tem como promover a carteira escolar e, consequentemente, a meia passagem. Diante disso, os professores fizeram uma vaquinha para auxiliar vários estudantes com a passagem. 

A pandemia 

Em 2020, por conta da pandemia, as aulas presenciais foram suspensas, colocando mais um desafio para que se desse sequência ao ensino. Primeiro, conforme explica Tavama, foi pensado em aula sincronizada, contudo a maioria dos alunos não tinha internet. Foi pensado também em fazer aulas gravadas, o problema aí era que muitos não tinham planos de dados. A solução então foi fazer postagens de aulas escritas no drive que era de acesso aos alunos do ano passado. Conforme comenta a professora, o único contato com os alunos foi na entrega do material. 

De acordo com Luiz, as atividades do curso seriam expandidas, com mais aulas especiais e também com oficinas. “A pandemia suspendeu nossos projetos e escancarou a desigualdade e a exclusão social em que estamos imersos, e que dificulta muito o nosso projeto. Esse novo 'normal' não abarca a educação popular que requer acolhimento, relação afetiva. Isso não cabe em Zoom, em plataforma digital ou Power Point. Apesar disso tentamos manter um laço com os alunos, seja doando os materiais que temos, ou mantendo vivo o nosso canal no Youtube”, explica. 

Em 2021, foi adotada uma nova modalidade, que foi disponibilizar vídeos no Youtube com duração entre 15 e 18 minutos para que os alunos consigam ter acesso. “Resolvemos colocar no Youtube para dar acesso não só aos alunos, mas para todos. Decidimos não fazer arquivos tão pesados porque a exclusão digital é terrível na Lomba do Pinheiro”, aponta Tavama. 

A professora explica que a não realização do vestibular na UFRGS, assim como o desempenho no Enem, fez com que a coordenação resolvesse não abrir inscrições para esse ano. “Tão logo saibamos sobre o vestibular da UFRGS, vamos reorganizar melhor as publicações no Youtube e provavelmente abrir novas inscrições”, afirma Tavama. . 

Resistência e desafios 

Entre os desafios e problemas enfrentados, Tavama destaca a questão da evasão escolar que tem permeado os dois anos de existência do curso. “Muitos alunos desistiram, tiveram que trabalhar. E mesmo os que não estão nessa condição têm uma desmotivação, problemas familiares, insegurança alimentar. Cheguei a receber pedidos de cesta básica. Os cursinhos populares se sustentam no contato direto com os alunos, no vínculo direto, presencial, na camaradagem, no olho no olho, de criar uma 'tribo' de uma galera que quer entrar na universidade. Quando não conseguimos fazer isso, porque no on-line não tem isso, fica bem frustrante”, desabafa.  

“Nesses dois anos, talvez o que resuma o Kilomba é resistência. São dois anos de resistência, construção e reconstrução. A importância do Kilomba se dá exatamente disso, essa criação desse espaço de acolhimento e valorização do estudante, com essa relação horizontal entre alunos e professores”, comenta Luiz. 

O sonho de cursar uma universidade

Bárbara Saldanha, estudante de Letras da UFRGS e ex-aluna do Kilomba diz que o que a motivou a procurar o curso foi a possibilidade de alcançar o sonho de cursar uma universidade. “Eu já tinha desistido porque cursinhos pré-vestibular gratuitos são muito concorridos e sempre longe do meu bairro. Eu estive em depressão por quatro anos e foi o Kilomba que me resgatou. O ambiente, os professores, o empenho em nos deixar confortáveis, saber que era um trabalho de coração deles, porque acreditavam que poderíamos alcançar, os colegas e o companheirismo aqueciam meu coração e foram me resgatando aos poucos para uma nova Barbara”, conta.

Conforme relata a estudante, uma das maiores lutas foi convencer a mãe que não era perda de tempo o tanto de horas de estudo. “Eu sempre amei estudar e tinha perdido esse desejo naquele momento. Mesmo com a pressão social, a cobrança da minha mãe por ser mais presente em casa e com minha filha ao invés de estudar, a dificuldade de não lembrar mais das matérias depois de tanto tempo e todo o peso da depressão em mim... eu venci. Eu fui uma das pessoas nesse primeiro ano do Kilomba que atingiu o objetivo conquistado e me orgulho disso a todo momento”, finaliza.

Cursando o Kilomba atualmente, Estevão Matheus De Souza Castro, de 18 anos, diz que tem sido uma experiência muito boa. “Os professores, apesar de não terem uma renda para ajudar todos esses alunos, proporcionam as tarefas com alegria, com uma disposição única.”

O objetivo de Estevão é servir à Marinha e, para ele, o curso Kilomba vai fazer com que consiga evoluir e realizar essa meta. “O curso vai fazer com que evolua bastante quando eu chegar e fazer a prova da Marinha. Eu pretendo fazer essa prova, entrar na Marinha. Com o Kilomba eu consigo evoluir em algumas matérias, por exemplo, física, português e matemática”, aponta. Além da Marinha, ele conta que também gostaria de fazer faculdade de Música. “Eu ainda estou em dúvida do que eu vou fazer”, comenta entre risos. 


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Edição: Marcelo Ferreira