Rio Grande do Sul

Agricultura Familiar

Vinho sem trabalho escravo e turismo afrocentrado: conheça a experiência do Sítio Rosa do Vale

Localizado em Poço das Antas (RS), a propriedade oferece uma rota de turismo regional e uma produção local de vinhos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Produção de Vinhos do Sítio Rosa do Vale é feita com base na agricultura familiar; propriedade rural propõe roteiro de turismo afrocentrado - Reprodução

Miriam Krindges conduz, acompanhada de seu marido, as atividades do Sítio Rosa do Vale, uma propriedade rural voltada para a produção de frutas, especialmente a uva que dá origem a sucos e vinhos. Além disso, o local está se estruturando para ser um ponto turístico voltado para a cultura do vinho, o turismo e o afroturismo. Localizada na cidade gaúcha de Poço das Antas, a propriedade rural fica na região conhecida como Boa Vista, zona rural da cidade, cerca de 5 km distante do Centro.

Miriam conta que a produção da uva fica dividida entre aquelas que são comercializadas como "uvas de mesa", e outras comercializadas para uma vinícola. Outro terço fica com eles próprios para a produção de algumas variedades de vinho feitas na propriedade.

"Nós começamos a fazer esse vinho das uvas cujos cachos eram pequenos, não atrativos pra venda. A princípio, era para consumo próprio", explica. Na medida que amigos e visitantes começaram a provar os vinhos, passaram a pedir cada vez mais, surgindo então a ideia de começar a produção comercial do vinho e do suco.

Atualmente, a produção do Sítio Rosa do Vale só pode ser consumida no local, durante as visitas, além de algumas ocasiões especiais como feiras ou eventos em que leva algumas unidades do produto. Miriam relata que a propriedade está no processo de desenvolver uma marca própria de vinho, que será produzida e comercializada pela internet ou em comércios parceiros.

Além disso, estão sendo feitos investimentos na construção de uma agroindústria para a produção de geleias. Além da uva, eles produzem figo, pitaya e bergamota. Porém, nem só da produção vive o Sítio Rosa. O local tem se destacado com o esforço de se tornar um ponto turístico, inserido em uma rota de turismo rural e do turismo afrocentrado.

Rota de turismo regional

Miriam explica que o empenho de construir um ponto turístico conta com a assessoria do programa chamado Acelera Turismo, impulsionado pela construção do Cristo Protetor, na cidade de Encantado, região onde Poço das Antas está inserida.

O enoturismo (turismo voltado para a cultura do vinho) pareceu uma ideia óbvia para um sítio produtor. Apesar de se dedicar à propriedade, Miriam explica que é advogada. Conta que após o nascimento da filha, hoje com 3 anos, passou por um processo de repensar a carreira e buscar oportunidades de viver mais próximo dela.

A partir das oportunidades que surgiram com o aumento do fluxo turista na região, conheceu o programa de aceleração e passou a participar de visitações e assessorias. Foi quando surgiu a ideia de montar o Sítio.

Afroturismo

Um fato, porém, começou a incomodar Miriam durante o processo de formação. Nos encontros promovidos pelo programa de aceleração, ela era a única pessoa negra, não se sentia representada. Também gerava incômodo que as formações fossem voltadas somente para a história das colonizações e tradições europeias, como os alemães, portugueses e italianos.

"Existem pessoas negras e indígenas aqui. O próprio nome do Vale do Taquari, é um nome indígena!", relata.

A partir daí, começou a procurar pessoas negras e comunidades quilombolas para desenvolver um turismo "de base comunitária", voltado para a experiência e a vivência da região. De forma que daí nasceu a ideia de promover o "afroturismo".


O jornalista Guilherme Soares ajudou a proprietária do Sítio Rosa do Vale, Miriam Krindges, com assessorias sobre turismo / Reprodução

Nessa busca de se especializar no turismo afrocentrado é que conheceu o trabalho do jornalista Guilherme Soares, responsável pelo site Guia Negro. A partir desse momento iniciou uma consultoria com Guilherme, para produzir os roteiros e produtos com base na cultura negra.

Segundo Miriam, a ideia é atender a todos os públicos, mas apresentando uma cultura e uma história até hoje bastante invisibilizada, que é a relação da África com o vinho. Ela também destaca a importância da sommelier de vinhos Silvana Aluá, considerada uma pioneira na inclusão de pessoas negras no mundo do vinho no Brasil.

Samba da Uva e Pisa Kemética

Toda essa rede de contatos está contribuindo para consolidar o conceito da experiência que o Sítio Rosa do Vale oferece. Entre as atividades que estão sendo organizadas, inclusive com testes de públicos, está a Pisa Kemética.

A pisa da uva é a etapa inicial da produção do vinho, em que as uvas são colocadas em um tonel para serem esmagadas/pisadas. Já a expressão "Kemética" faz referência à Kemet, antigo nome da região do continente africano onde hoje fica o Egito.

Segundo explica Roselaine Rosa, a sommelier responsável pelo Sítio Rosa do Vale, escavações já encontraram recipientes com resquícios de vinho guardadas em tumbas faraônicas.

"Nas escavações nas tumbas de faraós foram encontradas ânforas com resquícios de vinho branco, rosé e tinto. Então, as evidências mais fortes indicam que os primeiros vinhos foram fabricados na região do Egito. Por isso que fazemos essa referência aqui, temos que resgatar uma cultura que sempre foi nossa", afirma a sommelier.

É desse resgate que surge a ideia de fazer a pisa "Kemética" da uva, resgatando uma origem que remete à quase quatro mil anos antes da era comum.

A Pisa Kemética deve acontecer junto ao Samba da Uva. Miriam explica que realizou uma primeira edição de teste em janeiro. Com o interesse do público, fez uma segunda edição em fevereiro. Com o fim da safra da uva, deve acontecer somente mais uma edição, em março. A possível data será anunciada nas redes sociais.

As pessoas devem conhecer as pequenas vinícolas

Questionada pela reportagem sobre a notícia do resgate de mais de 200 trabalhadores em situação análoga à escravidão que atuavam na colheita da uva em Bento Gonçalves, Miriam diz que ficou impactada. Por ser advogada que já atuou na área trabalhista, afirma saber que essas situações existem, mas não deixa de ficar triste com a notícia.

"Pra gente que é da agricultura familiar, são várias dificuldades para colocar um produto no mercado. As pessoas não devem colocar todos no mesmo saco, tem que buscar conhecer como são feitos os produtos", comenta.

Segundo ela, uma parte da sua produção de uva é vendida para uma vinícola. Miriam afirma ter "acompanhamento total" do processo de produção dos vinhos que se utilizam das suas uvas.

Para Miriam, o público deve se inteirar melhor dos processos de produção daquilo que adquire. Como advogada e produtora, acredita que a exploração de mão de obra análoga à escravidão acaba, além de tudo, prejudicando também a imagem dos pequenos produtores de vinho do RS.

"Eu entendo que a gente tem que valorizar as empresas nacionais, tem muitas vinícolas da agricultora familiar que trabalham como a gente, em pequenas quantidades, para sobreviver e produzir riqueza", conclui.


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Edição: Marcelo Ferreira