Rio Grande do Sul

MEMÓRIA

Lupicínio Rodrigues ganha releituras genuínas

Biografia em livro e exposição multimidiática revalorizam um dos grandes compositores da música brasileira

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Até o próximo final de semana, está aberta para visitação em Porto Alegre a exposição “Lupi: pode entrar que a casa é tua” - Foto: João Vicente Ribas

"De dia me lava a roupa/ De noite me beija a boca/ E assim nós vamos vivendo de amor". Lida hoje, a letra dessa canção causa indignação. Se acaso você chegasse foi composta por Lupicínio Rodrigues e lançada por Elza Soares em 1960. A inevitável denúncia de uma visão de mundo machista é pertinente. Volta-e-meia, este tipo de releitura vem acionando os autores da música popular brasileira.

Os vivos veem-se às voltas com explicações, desculpas e reconhecimento de que os tempos são outros. Chico Buarque passou por um episódio recente, foi instado a vir a público em 2022 comentar o porquê de não poder cantar mais Com açúcar e com afeto.


Exposição tem HQ que reconta episódio de racismo que Lupicínio sofreu e denunciou em 1966 / Foto: João Vicente Ribas

Já os mortos, que não tiveram a oportunidade de ver a sua própria obra ser recontextualizada e sofrer críticas, podem não ter como único destino o esquecimento. Podem, sim, vir a ser objeto de revalorização franca. Foi o caso do gaúcho Lupicínio Rodrigues, neste 2023 ordinário. Mesmo não marcando nenhuma data em especial (seu centenário, por exemplo, já passou), foram produzidas duas iniciativas que recolocam vida e obra do sambista gaúcho em validação.

A biografia assinada por Arthur de Faria e a exposição produzida por Carlos Gerbase reposicionam nos holofotes pixelados da atualidade o conterrâneo que mais circulou Brasil afora em meados do século passado. Tarefa espinhosa para quem propusesse um revisitar evitando tocar na incompatibilidade de certos tratamentos amorosos e igualitários de outrora com a vigilância bem-vinda de feministas e antirracistas que atuam em rede nos tempos de hoje.

A franqueza em apontar expressões machistas e racistas acaba por jogar limpo com o público contemporâneo, desarmando-o e convidando-o a apreciar uma obra fora da curva. Lupicínio Rodrigues certamente cunhou nas estradas da super informação, num gesto inaugural ainda em sulcos de vinil, canções que perseguem a imortalidade.

Uma exposição imersiva sobre Lupi


Exposição acontece no Farol Santander / Foto: João Vicente Ribas

Até o próximo final de semana, está aberta para visitação em Porto Alegre a exposição “Lupi: pode entrar que a casa é tua”, que oferece uma imersão multimídia na vida e na obra do compositor. Andando pelo salão principal do Farol Santander, pode-se ter contato com objetos pessoais nunca antes expostos, a exemplo do radinho para ouvir jogos de futebol que o autor do hino do Grêmio usava.
    
Com curadoria do cineasta Carlos Gerbase, a exposição traz uma produção audiovisual original de impacto, a exemplo do holograma do ator Álvaro Rosa Costa no palco de um barzinho cantando o repertório de Lupi. Também mostra arquivos preciosos. Entre eles, um programa especial da TV Cultura em 1972, em que o compositor, já na idade madura, interpreta com sua dicção precisa quatro de suas canções tematizadas na dor-de-cotovelo.

Uma delas, a mais famosa, Se acaso você chegasse, que ganhou um aviso aos visitantes na entrada da sala expositiva, informando que a letra foi escrita em 1937 e "contraria a maneira como hoje vemos o necessário equilíbrio de direitos e deveres numa relação conjugal". O texto ainda afirma que a questão era pouco problematizada na época e que a decisão da curadoria de manter o conteúdo na forma original se deu em respeito tanto à obra quanto às pautas atuais que "buscam ampliar a igualdade e equidade de gênero, raça e orientação sexual".


    
Tal compactuação se faz mais evidente em outra sala escura de projeção, onde se pode sentar para assistir a releituras exclusivas de suas canções por cantoras da nova geração. Em performances inéditas, arranjadas e produzidas por Arthur de Faria, quatro dos maiores sucessos de Lupi revivem na voz de Andréa Cavalheiro, Cristal, Denizeli Cardoso, Glau Barros, Pamela Amaro e Paola Kirst. Cada uma com uma sonoridade particular.

A partir de uma proposta estética disruptiva, letras como a de Vingança ("Eu gostei tanto/ Tanto quando me contaram/ Que lhe encontraram/ Bebendo e chorando/ Na mesa de um bar"), ganham novos sentidos. Nesta, a interpretação de Andréa Cavalheiro, de vestido vermelho, gestos e olhos cortantes, elevam o protagonismo do eu lírico com uma performance feminina intensa.

Além da presença vultosa das intérpretes, os arranjos das canções passam por diversos gêneros musicais, incluindo samba, soul e até rock. O mesmo arranjador e produtor musical desses vídeos é o autor da mais nova biografia que Lupi ganhou.


"De dia me lava a roupa/ De noite me beija a boca/ E assim nós vamos vivendo de amor" / Foto: João Vicente Ribas

Uma biografia musical sobre Lupicínio

Arthur de Faria assina um texto mais franco do que o jornalismo costuma fazer e menos hermético que um pesquisador tem por costume escrever. A narrativa de "Lupicínio: uma biografia musical" também é um tanto menos intimista que a da exposição. Isto porque sua releitura guarda um afastamento crítico que não desmerece a grandeza do cancionista.

O autor vale-se de uma variedade de fontes para esmiuçar mitos sobre a trajetória de um ícone. Cita obras literárias, por exemplo, para situar o leitor no espírito e na geografia de uma época, fazendo imaginar uma Porto Alegre de um século atrás, quando havia um bairro chamado Ilhota.

Sempre guarda uma cuidadosa desconfiança em relação aos documentos, deixando muitas dúvidas em aberto, ao mesmo tempo em que oferece um número impressionante de informações e possibilidades. Persegue assim as pistas de fatos extraordinários, como o encontro entre Lupicínio Rodrigues e Noel Rosa.


Arthur de Faria lança uma biografia rica em detalhes, que sintoniza a trajetória de Lupicínio Rodrigues / Foto: João Vicente Ribas

Também procura valorizar a palavra do próprio compositor, transcrevendo trechos de entrevistas e de textos publicados na imprensa. Ainda mostra versos de letras inteiras, em forma de prosa, para evidenciar o lado cronista de Lupicínio.

Como estratégia para revisitar uma obra distante no tempo, enfrentando conteúdos que hoje são mais identificados como controversos, Arthur de Faria não investe na denúncia pura. Procura apontar sim as contradições, mas se atendo a levantar inúmeras variáveis que ajudam a registrar fatos na sua complexidade.

Por exemplo, quando identifica em letras e explicações do próprio Lupicínio um "encanto" pela malandragem que marcava a cultura masculina do bairro onde se criou, contextualiza. O Brasil daquele tempo passava pela Era Vargas, que estimulou a música popular no rádio, perseguiu a malandragem e queimou as bandeiras estaduais. Assim, no cotejo com as estórias narradas por Lupicínio, descreve um artista que ora se aproxima ora se afasta do estereótipo boêmio.


Livro procura valorizar a palavra do próprio compositor / Foto: Divulgação

Além do machismo, há racismo em declarações da época, registradas em jornais e revistas. Após descrever um trecho de entrevista, o biógrafo comenta: "É impressionante o quanto expressões absurdamente racistas como essa não causavam estranheza nem quando eram usadas por uma pessoa negra, como Lupicínio". Por isso, recomenda olhar com certa desconfiança quando, naquele contexto, negros comentam que nunca ou quase nunca sofreram racismo.

Também narra um caso memorável, quando Lupicínio ganhou o concurso musical do centenário da Revolução Farroupilha, promovido pela prefeitura de Porto Alegre, e a organização resistiu em pagar o prêmio. O próprio compositor conta o episódio: "quando souberam que o autor era um neguinho, não queriam! Queriam anular o concurso".

Assim, Arthur de Faria lança uma biografia rica em detalhes, que sintoniza a trajetória de Lupicínio Rodrigues com as histórias periféricas do país (muitas delas deram origem ao samba). Remonta à ocupação de áreas precárias nas grandes cidades, por escravizados e descendentes. No caso da capital gaúcha, a extinta Ilhota, de onde emergiu um talento sem igual, que ascendeu ao sucesso e conquistou todo o país.


Com curadoria do cineasta Carlos Gerbase, a exposição traz uma produção audiovisual original de impacto / Foto: João Vicente Ribas

Exposicão

Lupi - pode entrar que a casa é tua
Curador: Carlos Gerbase
Farol Santander (Porto Alegre - Centro Histórico)
Até 23 de julho
R$ 17,00

Livro

Lupicínio - uma biografia musical
Autor: Arthur de Faria
Editora Arquipélago
R$ 79,90
 


Exposição oferece uma imersão multimídia na vida e na obra do compositor / Foto: João Vicente Ribas


Lupicínio Rodrigues / Foto: João Vicente Ribas


Edição: Katia Marko