Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

Corinto Meffe propõe sistema digital para gestão pública com mais autonomia e sem dependência

Defensor dos softwares livres aponta ferramenta mais econômica para estados e municípios e mais favorável às pessoas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O e-cidade destina-se a informatizar a gestão dos municípios brasileiros de forma integrada - Foto: reprodução

Sabendo que estados e municípios tem baixa oferta de serviços digitais, o defensor do software livre Corinto Meffe apresenta uma solução: a ferramenta e-cidade. Ex-diretor de sistemas de informação do Ministério do Planejamento, ele conta que o sistema – do qual foi um dos idealizadores – já está presente em 64 cidades brasileiras. 

Meffe nota, porém, que, ainda hoje, muitas prefeituras usam sistemas de gestão que rodam num computador somente. Ou seja, só um usuário utiliza. Enquanto isso, o e-cidade é um sistema web que pode ser acessado por qualquer cidadão de qualquer lugar. 

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Aliás, levantamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) indica que um dos maiores desafios para expandir a oferta de serviços públicos digitais no Brasil é esse descompasso tecnológico de estados e municípios.

Meffe coordenou diversos projetos do governo federal, entre os quais Governança de TI, Guia Livre, Portal do Software Público Brasileiro (softwarepublico.gov.br), e Dados Abertos (dados.gov.br). Neste diálogo com Brasil de Fato RS, ele detalha as muitas vantagens, para o município e para o munícipe, modernizando e ampliando benefícios.  

“É uma grande diferença para outros modelos, onde você tem que pedir permissão, fazer acordos, criar modelos de negócio, ou depender da empresa que desenvolve o software”, diz. “E sem gerar dependência tecnológica”, arremata. 

Acompanhe a conversa:

Brasil de Fato RS - O que é o e-cidade? 

Corinto Meffe - O e-cidade é um sistema de gestão integrada. Um sistema integrado significa que a sua estrutura, mesmo que ele trate de temas e abordagens diferentes, você tem um olhar único para esse sistema. É um olhar único que passa por várias camadas do sistema: a camada de acesso, a camada de login, a camada de navegação, a camada de dados.

O e-cidade é um sistema integrado de gestão municipal. Ele agrega 40 módulos diferentes. Só isso já chama muita atenção. Quem se envolve com o uso do sistema costuma dizer que ele vai desde quando você nasce até quando você falece.

Um dos módulos que o e-cidade tem é de cemitério e a gestão de cemitério é municipal. Outra fase é a do nascimento. Também tem módulo de saúde, escolar, de assistência social, tributário, de geração do pagamento dos impostos e assim sucessivamente. É uma solução livre que está disponível para que os municípios brasileiros possam usufruir dessa ferramenta que possui essa característica dos módulos integrados. 

O e-cidade é uma ferramenta integrada da gestão pública municipal

BdF RS - Quando se fala em módulos integrados é porque o gestor consegue acompanhar o tratamento de todos os dados que são inseridos ali no sistema? 

Meffe - É isso. O e-cidade é um sistema web. Infelizmente, ainda hoje no Brasil, muitos municípios usam sistemas de gestão que rodam num computador somente. É o que a gente chama do mono usuário. Só um usuário utiliza. Muitas vezes esses sistemas rodam só em redes internas. Então, na rede do município X, somente quem está na rede X consegue acessar esse sistema.

O e-cidade é um sistema web. Então, assim como estamos acostumados a navegar na internet e entrarmos em alguns portais, o e-cidade possibilita que você o utilize na rede interna da prefeitura e, ao mesmo tempo, ele possa ser acessado por qualquer munícipe em qualquer lugar. Ele tem um cadastro único do usuário, então aquele mesmo CPF, aquele mesmo CNPJ, vão transitar pela ferramenta inteira. O usuário que pede a matrícula para o filho na escola, é o mesmo que vai fazer a geração de um IPTU. Ele usa um banco de dados livre, um banco de dados relacional.

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O que isso significa? Significa que uma série de eventos que se queira construir a partir do acesso dessa base, para tomada de decisão, para georreferenciamento, entre outras questões, você também consegue fazer. O e-cidade é uma ferramenta de governo integrada - a empresarial chama-se de RP e o e-cidade é um GRP, esse G é de ´government`, significando é uma ferramenta integrada da gestão pública municipal. 

BdF RS - E ele faz alguma conexão com o sistema e-GOV do governo federal? 

Meffe - Para fazer conexão com o sistema e-GOV, a solicitação tem que ser feita pela prefeitura. Ainda está em curso uma possibilidade das empresas também fazerem esse tipo de solicitação. Pode ser feito um contato ente público e ente público. Não há nada que impeça essa integração. Obviamente, uma ferramenta dessas integrada possibilita a prestação de uma série de serviços públicos. Além dela resolver uma questão de gestão, também traz embutida a modernização, a maior oferta de serviços para a sociedade e uma série de benefícios. 

É uma conquista estar funcionando em 64 municípios

BdF RS - E ele já está inserido em quantos municípios hoje no Brasil? 

Meffe - Como a atuação dele é em comunidade, confesso que não temos alguns municípios devidamente mapeados. Neste ano, a comunidade fez um esforço até para poder apresentar dados ao governo federal. É um projeto que já tem mais de 10 anos. Foi concebido no primeiro mandato do presidente Lula e, com o terceiro mandato do presidente, gerou-se uma série de expectativas das empresas, das prefeituras, dos desenvolvedores.

Neste ano, a comunidade fez um grande levantamento, mas posso te afirmar que os dados são maiores do que aqueles que vou te apresentar. Oficialmente, são 64 municípios que o utilizam. São de todas as regiões do Brasil, embora mais concentrados no Sul e no Sudeste. Às vezes, parece pouco, mas é um modelo completamente diferente dos outros. Então, é uma conquista estar funcionando em 64 municípios. 


"Há uma torcida enorme para que o governo federal volte a investir nesse tipo de modelo. O que falta para isso explodir pelo Brasil? Muito pouco", avalia Corinto Meffe. / Foto: Serpro

BdF RS - Ele é construído por meio de uma comunidade. Como se dá esse desenvolvimento conjunto, essa construção, principalmente em relação ao aperfeiçoamento do sistema? 

Meffe - Existe no Telegram a comunidade e-cidade. É só você entrar. Ali, por exemplo, têm pessoas que já disponibilizaram instaladores automáticos, fáceis. Você consegue com poucos comandos e em poucos minutos. Ainda continua em contato com o repositório oficial do softwarepublico.gov.br. Você baixa essa ferramenta, instala de forma automatizada, e depois pode ser somente um usuário. Uma prefeitura que decide fazer por conta própria consegue. Você também consegue contratar empresas.

Hoje são 11 empresas distribuídas pelo Brasil que prestam serviço para a ferramenta. Já gerou um mercado. Existem empresas que trabalham com o software há mais de 10 anos. A única dificuldade é que o repositório não tem sido atualizado por uma questão de interface de usuário no ambiente do portal do software público. Mas, na comunidade, você consegue conversar com as empresas e com os desenvolvedores que têm versões mais atualizadas. É o interesse da comunidade. Eles têm mantido diálogo com o governo federal para que possibilite, pelo menos, atualização do código no ambiente público.

Independente disso, existe todo um trabalho colaborativo, um fórum disponível para tirar suas dúvidas, consegue-se conversar com qualquer prestador de serviço nesse ambiente. Não há preferência, não há direcionamento. É uma estrutura completamente livre em todos os sentidos. Você tem acesso ao conteúdo do código, pode participar da comunidade, manifestar-se na comunidade, ter contato com as empresas, pode usar por conta própria. É a característica do modelo. 

Imagine que a prefeitura precisa gerar o IPTU e não consegue porque depende da empresa

BdF RS - Além da vantagem de ter esse suporte, quais as outras vantagens do sistema? 

Meffe - Inúmeras. Quando a gente olha só para o sistema, ele já traz benefícios. Você pode dizer: vários outros sistemas trazem. É verdade. Mas a diferença dele está no modelo. Ele é mais competitivo. Mas não num olhar da competição que, às vezes, é oligopolista, monopolista, as big techs, questões que afetam a nossa soberania através do uso indevido dos nossos dados. Às vezes, a gente não percebe os benefícios maiores que um modelo como esse pode proporcionar. Um deles é que é muito difícil oligopolizar um mercado onde 11 empresas prestam serviço. É uma grande diferença para outros modelos, onde você tem que pedir permissão, fazer acordos, criar modelos de negócio, ou depender da empresa que desenvolve o software, então essa é uma primeira característica importantíssima.

Segundo, você não gera dependência tecnológica. É muito comum nesse meio. Uma empresa privada sai da prefeitura e aí sabe o que acontece? Ela fecha o acesso ao software, fecham o acesso ao sistema. Houve acordos dos órgãos de controle para impedir esse tipo de prática no mercado. Imagine que a prefeitura precisa gerar o IPTU e não consegue por conta própria porque depende da empresa. A empresa perde o certame, perde o edital, perde o contrato, vai lá e prejudica a prefeitura. E, ao prejudicar a prefeitura, prejudica o cidadão.

No caso do e-cidade, o código não é só do prestador de serviço da comunidade, o código é do usuário também. É outro benefício. O que significa isso? Você pode contratar quem quiser, pode usar por conta própria, pode depender menos. Quando a prefeitura percebe que o e-cidade é dela, passa a ter outra relação com o software. Pode até ser um colaborador ou uma colaboradora, pode ter protagonismo, pode se servir de uma forma diferente do software. Ou seja, ter mais autonomia. É uma grande característica desse modelo que gera autonomia para todos aqueles que participam dele.

Qual a prefeitura pequena que tem capacidade de contratar um banco de dados por R$ 1 milhão?

BdF RS - E qual o reflexo econômico disso para a gestão? 

Meffe - Tem dois tipos de impactos que são imediatos. O primeiro é que a maioria das modalidades através das quais você consegue fazer a contratação é por pregão eletrônico. Significa que o custo desse serviço tem uma tendência a cair, economizando para os cofres públicos. Por outro lado - e aí considero um grande ganho - é você desenvolver a tecnologia nacional, a empresa nacional, sem nenhum tipo de dependência com outras empresas. Se você pode usar uma solução como essa, mas usa um banco de dados proprietário haverá contratos de banco proprietário na casa de R$ 1 milhão ou R$ 2 milhões.

Então, pergunto: qual a prefeitura pequena que tem capacidade de contratar um banco de dados por esse valor? Quem conhece como funciona esse mercado sabe do que estou falando. Não vai contratar o banco ou vai cometer uma ação de pirataria. Vai criar um nível de dependência. No caso do e-cidade, não existe nenhum tipo de dependência. A linguagem é livre, as tecnologias são livres. A prefeitura terá um nível alto de autonomia.

Do ponto de vista econômico, desenvolve a economia local - porque pode contratar empresas da sua região - e, ao mesmo tempo, reduz o ônus da prefeitura. Mas é muito importante criar o hábito de pagar por isso. A gente paga por muita coisa ruim e precisa se habituar a contratar serviços de qualidade para essas soluções que são livres e públicas.

BdF RS - As pessoas têm uma preocupação também com a segurança dos dados. Esses dados ficam seguros?
 
Meffe -
Ficam totalmente seguros, a tecnologia é a mesma. A decisão da prefeitura, onde ela coloca, é dela, também é outra característica. Se quiser que o banco de dados esteja numa estrutura nacional, ela vai contratar o serviço para que esteja numa estrutura nacional. Se quiser que esteja na empresa que presta serviço, vai estar na empresa que presta serviço no Brasil. Se quiser que esteja no ambiente da prefeitura, estará no ambiente da prefeitura.

Quando se cria um ambiente desses, um ecossistema digital, aberto e livre de verdade, a palavra-chave se chama flexibilidade. Vai na mesma linha do consumo consciente. Qual é a força que o consumidor consciente tem? Ele tem a força do poder de aquisição dele. Eu quero pagar mais caro por quem faz produção orgânica, então vou pagar. Quero pagar melhor para quem produz algodão 100%, então eu vou pagar. Se quero contratar um serviço é preciso conjugar o meu poder de compra com o que quero fazer. 

O que falta para isso explodir pelo Brasil? Muito pouco. Mas a decisão não é minha

BdF RS - E, neste cenário que estamos vivenciando hoje, quais são os desafios para que o sistema seja utilizado em todo o Brasil?

Meffe - Há uma torcida enorme para que o governo federal volte a investir nesse tipo de modelo. O que falta para isso explodir pelo Brasil? Muito pouco. Mas a decisão não é minha. Sou só um estudioso do assunto. Mas é importante que vocês saibam que o portal continua ativo, que está no ar, que a solução e-cidade faz parte desse acervo como mais de 80 soluções. Hoje em dia tem, pelo menos, 10 comunidades ativas.

Comecei a ser procurado por empresas e órgãos federais querendo informações sobre ecossistemas digitais. O e-cidade, quando tive contato com ele pela primeira vez, estava em sete cidades e hoje está em 64. O Educar, quando tive contato com ele, estava em quatro cidades e hoje está em 108. É a realidade desse modelo. O código é nacional, está tudo na nossa mão, e movimentando a economia. Falta muito pouco, talvez - não sei se seria o termo adequado - boa vontade. Está tudo pronto para fazer uma verdadeira transformação digital no Brasil. 

BdF RS - Uma colocação final?

Meffe - Parece um tema árido comentar sobre gestão municipal. Mas ela passa por coisas do cotidiano, tipo ´tenho que fazer a matrícula do meu filho`. Quando tomo esta decisão, a informação da escola tem que estar disponível num sistema, a informação dos professores tem que estar lá nesse sistema.

Então, você se cadastra com seu CPF, traz os seus filhos para essa estrutura, essa informação começa a circular, você matricula automaticamente o seu filho no ano seguinte, o gestor escolar consegue te informar qual a melhor escola para seu filho, você controla a presença do seu filho, tem o diário de aula. Estou falando de um módulo. Isto resolve a vida das pessoas. É um tema que parece complicado, mas que, aqui, ficou fácil de demonstrar para as pessoas.

Assista a entrevista na íntegra:


Edição: Ayrton Centeno